terça-feira, 14 de novembro de 2023

Análise: O Segredo da Força Sobre-Humana

O Segredo da Força Sobre-Humana, de Alison Bechdel - Relógio D' Água

O Segredo da Força Sobre-Humana, de Alison Bechdel - Relógio D' Água
O Segredo da Força Sobre-Humana, de Alison Bechdel

Depois de, em 2012, a editora Contraponto ter editado a multipremiada obra Fun Home - Uma Tragicomédia Familiar, da autora americana Alison Bechdel, os leitores portugueses estiveram muitos anos sem que nenhum lançamento da mesma autora por cá fosse feito. Diga-se que Alison Bechdel não é propriamente uma autora que lance muitos livros, mas, ainda assim, a verdade é que havia obras de relevo por editar. Uma delas era este O Segredo da Força Sobre-Humana, originalmente editada em 2021, e que, em boa hora, a Relógio D'Água trouxe para o mercado português há coisa de umas semanas.

Se em Fun Home e em Are You My Mother? a autora nos dá, em jeito auto-biográfico, um relato acerca do relacionamento complicado que teve com os seus pais, neste O Segredo da Força Sobre-Humana continuamos a acompanhar a vida de Alison Bechdel. Como tal, quase que diria que este novo livro funciona como uma terceira parte da trilogia autobiográfica lançada, até agora, pela autora.

O Segredo da Força Sobre-Humana, de Alison Bechdel - Relógio D' Água
Mesmo que, e olhando apenas para o nome, capa e sinopse da obra, isto possa não ser muito claro, à partida. Com efeito, olhando ao viés para esta obra, parece tratar-se de um livro que fala sobre os vários tipos de desporto e de como os mesmos podem mudar a vida de quem os pratica. E, de facto, isso também está presente no livro. Mas, acaba por ser uma parte menor deste livro. O que, quanto a mim, até lhe retira o appeal comercial da obra, tendo em conta que se trata de um livro da conceituada autora Alison Bechdel. Acredito que se a capa, o título e até a própria sinopse fossem mais fidedignos ao facto de esta ser uma obra muito mais profunda do que a prática de numerosos desportos – não obstante o facto de ter um corpo são também contribuir, seguramente, para uma mente sã – acredito que o livro seria mais badalado. Mas são opções autorais/editoriais, claro.

Ainda assim, há que dizer que Alison Bechdel volta a dar-nos uma obra bem à sua imagem: segura – embora a autora ache que não o é – singular e com um estilo muito próprio. Não admira que o livro tenha ganhado vários prémios internacionais. Até porque o nome de Alison Bechdel já tem a sua própria força devido à autora ser uma ativista pelos direitos do género.

O Segredo da Força Sobre-Humana, de Alison Bechdel - Relógio D' Água
A história começa na infância de Alison, nos anos 60, e vai até aos dias de hoje, passando até pelos tempos da pandemia de covid-19. Ao longo da sua vida e tendo um claro gosto pelos desportos – e por mergulhar em novas modalidades – a autora sempre foi ávida para experimentar um novo desporto. Mas não o fazia de ânimo leve. Pelo contrário, mergulhava de forma radical no mesmo. Fosse o esqui, a bicicleta, as corridas, o karaté, entre muitos outros. Ainda que, e isso é um ponto sempre constante na obra, o desporto parecesse, pelo menos durante a infância e juventure de Alison, ter sido pensado para os homens e vedado às raparigas. Mesmo assim, Alison não se coibia de experimentar novas modalidades. E, à medida que ia mudando de um desporto para outro, essa mudança também acompanhava, normalmente, uma mudança na sua própria vida e na descoberta de si mesma. Primeiro, a infância, depois, os tempos de escola, os tempos de jovem universitária, os tempos de jovem adulta, de meia idade, e por aí fora. Até ao período do menopausa.

Mas a auto-descoberta é algo que, muitas vezes, está envolta em muitas camadas que pressupõem que as retiremos de forma gradual, no seu próprio tempo. Como tal, à medida que vai crescendo e desenvolvendo a sua consciência, Bechdel passa a procurar a sabedoria de filósofos orientais ou de figuras literárias marcantes, como Jack Kerouac, William Wordsworth, Ralph Waldo Emerson, Margaret Fuller ou Samuel Taylor Coleridge.

O Segredo da Força Sobre-Humana, de Alison Bechdel - Relógio D' Água
E é neste ponto que, infelizmente, o livro mais falha, quanto a mim. Compreendo que a autora tente homenagear e/ou reciclar as ideias e espírito destes autores que a marcaram, à semelhança do que também fez em Are You My Mother?. Mas ao fazê-lo de uma forma tão aleatória e quase sem nexo, faz com que o ritmo da história que nos está a contar sobre a sua vida seja, constantemente, interrompido por estas deambulações narrativas que resgatam apenas, e de forma avulsa e algo aleatória, algumas das ideias dos autores. São trechos narrativos que acabam por ser forçados na obra. Compreendo que a autora, se foi influenciada pelos autores, queira falar deles, mas não me parece que tenha introduzido esse tema da melhor forma da obra. Ou, se quiserem, acho que se estas menções aos autores não existissem nesta obra, a mesma seria muito melhor. Seria mais linear, sim, mas melhor.

Acho que é na própria vida de Bechdel que a obra apresenta mais força, nomeadamente na relação da autora com o álcool, na sua relação complexa com o trabalho e com os prazos de entrega, nas várias relações amorosas que teve e na terapia que acabou por se ver forçada a fazer. Outra coisa boa é que o facto de o livro acompanhar a vida da autora, sendo separado por capítulos que complementam uma década, permite que possamos tomar contacto com as mudanças socio-culturais que a sociedade norte-americana foi vivenciando nos últimos 60 anos.

O Segredo da Força Sobre-Humana, de Alison Bechdel - Relógio D' Água
Os desenhos de Alison Bechdel mantêm-se no registo algo “cartoonesco” a que a autora já nos habituou, havendo depois espaço para que, em termos de planificação, sejamos presenteados por vinhetas que diferem bastante de dimensãoe que subvertem algumas regras ditas "clássicas". E isso torna a leitura menos repetitiva e, portanto, é uma opção bem-vinda. Desta vez, as ilustrações são a cores – feitas por Holly Rae Taylor, a companheira de Alison – o que dá um ar mais leve e descontraído à obra que, a meu ver, funciona bastante bem.

A edição da Relógio D’Água é em capa mole, com badanas, e apresenta bom papel brilhante no miolo. A encadernação e impressão também são boas em qualidade.

De resto, e continuando a falar na editora portuguesa, é com bons olhos que vejo que a Relógio D’Água parece estar a apostar cada vez mais no lançamento de boa banda desenhada. É verdade que, até agora, a editora apenas tem lançado adaptações para banda desenhada de obras da literatura mundial, como Mataram a Cotovia, Fahrenheit 451, 1984, O Grande Gatsby, A Amiga Genial ou Duna, mas a aposta da Relógio D’Água tem vindo a ser maior e a apresentar livros com mais qualidade. E este O Segredo da Força Sobre-Humana é a primeira banda desenhada que não é uma adaptação, mas sim uma obra originalmente pensada para a banda desenhada. O que também é sintomático da aposta da editra. E não esqueçamos que, ainda em 2023, é esperado que a Relógio D' Água lance a muito aclamada obra Patos, de Kate Beaton. Tudo bons sinais por parte da editora, portanto.

Em suma, e apesar de ficar aquém de Fun Home e de Are You My Mother?, revelando alguma anarquia de enredo, este O Segredo da Força Sobre-Humana, nova obra de Alison Bechdel, é uma livro bem interessante, que vale a pena conhecer, e que revela com justiça que a aposta da Relógio d’Água em banda desenhada parece cada vez mais séria.


NOTA FINAL (1/10):
7.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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O Segredo da Força Sobre-Humana, de Alison Bechdel - Relógio D' Água

Ficha técnica
O Segredo da Força Sobre-Humana
Autora: Alison Bechdel
Editora: Relógio D'Água
Páginas: 248, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 19 x 25,4 cm
Lançamento: Setembro de 2023

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