Desde que a obra do autor consagrado George Orwell passou para domínio público que, expetavelmente, os lançamentos e relançamentos dos seus romances têm acontecido assim “meio de enxurrada”. E em termos de banda desenhada, o fenómeno tem sido o mesmo. Só em Portugal já se contam 3(!) edições de 1984, a obra-prima de Orwell, e mais umas quantas versões de A Quinta dos Animais. As duas versões em banda desenhada de 1984 – uma pela Alfaguara, outra pela Cavalo de Ferro (20|20 Editora) - já aqui foram analisadas. Resta-me então elaborar uma análise à terceira versão da obra em banda desenhada que me chegou às mãos, há uns meses. Neste caso, falamos da versão de Xavier Coste, editada por cá pela Relógio D’Água.
Não procurarei fazer comparações entre edições pois tenho em mente fazer um comparativo, daqui a alguns dias, entre as três adaptações. Por ora, interessa apenas o enfoque na versão de Coste que é, comummente aceite pela crítica, como uma adaptação excelente, tendo recebido muitas nomeações para prémios estrangeiros e, até mesmo, tendo vencido o Prémio Uderzo.
A meu ver, estamos perante uma versão de grande fôlego visual, onde o autor se transcende no universo austero e totalitário de Orwell. Afirma-se como uma quase carta de amor à obra original, num trabalho que acaba por ser mais uma homenagem do que uma “adaptação”, no sentido lato da palavra. E porquê? Porque o livro que Coste nos dá parece ter sido feito para aqueles que já conhecem 1984. A esses, o autor brinda com um piscar de olhos ao mundo de 1984, com ilustrações bonitas e inspiradas, de classe superior, e que ainda recebem belas e artísticas paletas de cor, que nos permitem mergulhar – ao de leve – em 1984, por intermédio de uma breve reflexão nos pressupostos político-sociais que a obra original levanta.
Não obstante, para os que não conhecem a distopia original criada por Orwell, esta adaptação acaba por ser algo parca. E bastante superficial. Estão a ver quando alguém vos conta uma história “por alto”, não vos dando muitos pormenores?
Portanto, se me perguntarem: “Achas que para alguém que nunca leu 1984, a adaptação de Xavier Coste funciona para captar o essencial da obra original?” A minha resposta será um redondo “não”. E explico porquê: 1984 é uma obra complexa onde parte – para não dizer o todo – da sua genialidade é na explicação do modo de funcionamento dos procedimentos desta sociedade autocrática, onde são subvertidos todos valores basilares das sociedades contemporâneas ocidentais. O processo de explicação de uma distopia costuma ser, convenhamos, algo obrigatório. E este 1984 de Coste não perde muito tempo com a tal explicação desse universo, que considero ser crucial para a boa compreensão e imersão na história. Conceitos como a novilíngua, o duplo-pensamento, o tele-écran, os Ministérios da Verdade, do Amor, da Riqueza ou da Paz, a Oceania, a Eurásia e a Lestásia, entre muitas, muitas outras coisas, essenciais à total compreensão da obra original, obviamente marcam presença nesta adaptação mas sem qualquer explicação/introdução. Funcionando apenas como referências para quem já entende o universo Orwelliano. Sim, é por isso que 1984 será uma das obras mais difíceis de adaptar para banda desenhada. Ou se coloca muito texto, como Fido Nesti fez na sua adaptação, ou colocando pouco texto, como Xavier Coste aqui faz, perde-se muito daquilo que tornou a obra célebre.
E, sendo verdade que a ausência de texto neste 1984 de Coste nos remete para uma boa reflexão na história e – principalmente – no ambiente da mesma, a sensação assume-se como algo vaga. Embora marcante. E para isso contam as fantásticas ilustrações que são, sem sombra de dúvida, aonde esta adaptação mais brilha.
Olhando, pois, para os desenhos, e sublinhando o que já referi mais acima, o trabalho de Coste é muito bem conseguido e impressiona em muitos pontos. O ambiente por si criado é frio, desolador, destruído e, ao mesmo tempo moderno e próximo da nossa realidade, quase dando a impressão da obra ter sido escrita e elaborada no tempo presente. Porém, o autor também teve o bom senso de não levar esta ideia à letra. Ou seja, dá-nos apenas essa sensação de contemporaneidade, mas sem se comprometer com a mesma.
Os edifícios, os cenários e as próprias personagens estão muito bem recriados pelo autor. O seu traço cru, lembrando esquissos, é depois pontuado por uma paleta de cores, em tons monocromáticos, que vai sendo alterada ao longo do livro, como que para acompanhar o percurso de Winston, o protagonista. Deveras bonito de se observar.
Em termos de planificação, também é uma obra muito airosa que dá tempo a que certos momentos narrativos possam respirar bem, recorrendo a ilustrações bastante grandes, que, por vezes, até ocupam duas páginas. E se há vinhetas que são autênticas obras de arte! Com um trabalho de desenho e cor magníficos!
Quanto à edição, quer parecer-me que este livro mereceria uma edição em capa dura, por parte da Relógio D’Água. Não obstante, há que dizer que, ainda assim, esta é uma edição com boa qualidade, com um excelente papel – com o brilho certo – e um formato quadrado, que faz com que o livro pareça um álbum de fotografias ou um livro-catálogo. Bem feito.
Em suma, 1984, pelas mãos de Xavier Coste, é de uma beleza gráfica muito grande que os conhecedores da obra original de Orwell apreciarão certamente. No reverso da medalha, há que dizer que a adaptação da história peca por defeito, já que a trama, não sendo contextualizada, acaba por perder muita da sua genialidade e complexidade racional.
NOTA FINAL (1/10):
8.9
-/-
1984
Autor: Xavier Coste
A partir da obra original de: George Orwell
Editora: Relógio D’Água
Páginas: 248, a cores
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Agosto de 2021
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