Não Me Esqueças é uma das bandas desenhadas que a editora ASA lançou nas últimas semanas e marca a aposta da editora portuguesa num registo de BD mais direcionado para um público maduro, a que várias vezes, e também por isso, se tende a chamar de “novela gráfica”. A autoria desta obra pertence a Alix Garin, uma jovem autora belga que se estreou enquanto autora com o lançamento deste livro.
A história centra-se em Clémence, uma jovem adulta que após verificar que a sua avó, Marie-Louise, se encontra a definhar num lar de terceira idade, decide "raptá-la", levando-a a fazer uma longa viagem de carro, com o intuito de regressar à sua casa de infância. Isto porque, com uma galopante doença de Alzheimer, Marie-Louise parece ter apenas algumas memórias difusas e dispersas, nomeadamente a dos seus pais. Não há volta a dar: Marie-Louise sente-se uma criança e teme que os seus pais lhe ralhem por chegar tarde a casa. Clémence decide então embarcar com a avó nesta viagem inusitada.
É claro que esta road trip resulta de uma decisão tomada por impulso e, como tal, acaba por ser mal preparada pela neta, Clémence. E isto vai criar algumas situações delicadas - e outras divertidas - que fazem com que esta viagem, movida por sentimentos de compaixão, acabe por trazer vários momentos de tensão e medo. Peripécias.
É certo que Alix Garin nos apresenta uma história que assenta na doença de Alzheimer e como é difícil e desafiante lidar com a mesma. Mas os intuitos narrativos da autora não se findam apenas aí. Como tal, Alix Garin explora a relação da própria protagonista Clémence com a sua mãe. Porque se há coisas certas na vida, é que todos nós caminhamos para a velhice. Alguns não chegam lá, é verdade, mas a cada dia, cada semana, cada mês, cada ano que passa, estamos mais velhos e vividos. O tempo não deixa de avançar e não tem qualquer complacência por tudo aquilo que não é eterno. Como nós. E se nos deixarmos distrair, essa passagem do tempo pode minar as nossas relações e as nossas vidas. Parece que foi isso que aconteceu a Clémence e à sua mãe. A vida adulta - rápida, implacável e prática - foi criando um fosso entre elas. Poderá, então, a avó Marie-Louise servir como uma lembrança para o quão efémera é a vida e a sanidade mental? As perguntas deixadas pela autora e as reflexões que as mesmas nos incentivam a fazer, fazem de Não Me Esqueças uma obra muito madura em termos narrativos.
Por outro lado, está sempre muito presente uma ponte entre a infância e a velhice. E como os pais e os avós começam por ser uma âncora para as crianças que, mais tarde, desempenharão esses mesmo papel para os seus avós e pais. A vida é um ciclo e, como dizem os ingleses, what goes around, comes around.
A viagem levada a cabo por neta e avó ainda permite que a primeira reflita sobre alguns momentos da sua vida, nomeadamente ao nível de relações abusivas que teve no passado ou na busca pela sua sexualidade. Se a princípio me pareceu que a introdução destes momentos era forçada, por serem meros fillers, sem grande propósito, depressa percebi que estes momentos servem para que Clémence nos mostre que todos temos a nossa caminhada e as nossas vivências, mas que, por vezes, nos esquecemos que os mais velhos já percorreram esses mesmos caminhos. E se nos lembrássemos disto mais vezes, talvez pudéssemos encontrar mais compaixão ou preciosos ensinamentos nos mais velhos, que já passaram por situações semelhantes às que vivemos. Acompanhando a sua avó, Clémence também parece mergulhar nas profundezas do seu ser, para melhor se conhecer. Enfim, o livro é de uma gigante riqueza interpretativa.
E deixem-me dizer-vos que nunca senti que a autora nos desse um relato lamechas, de lágrima fácil. Nada disso! Se ficamos melancólicos ao longo desta leitura, não é bem por vermos coisas tristes na história, mas sim por esta nos fazer pensar e, só depois disso, encontrarmos esse amargo travo da melancolia.
Os desenhos de Alix Garin são bastante belos. O seu traço é muito simples, mas extremamente eficaz, fazendo com que, muitas vezes, os cenários sejam desprovidos de detalhes. Mas a autora parece jogar com essa mesma valência a favor da história que nos quer passar. E no tratamento das emoções faciais, a autora demonstra-se especialmente exímia. São muitas as vinhetas que, mesmo sendo silenciosas, sem qualquer balão de fala, conseguem passar-nos tanta informação e emoção.
A maneira como através desse traço simples e direto, sem grandes apetrechos visuais, Alix Garin oferece emoções às faces das suas personagens e, particularmente, à da avó Marie-Louise - especialmente naqueles momentos em que esta parece meio alienada e a olhar para o vazio - é um verdadeiro tratado e uma inegável força da autora. Basta-nos a observação da avó a contemplar esse mundo distante que já só parece existir no seu próprio mundo, para que baixemos a guarda e fiquemos aturdidos com a força narrativa aqui empregue. Verdadeiramente sublime!
Gosto especialmente de como a autora desenha os interiores e, em vários casos, como "não os desenha". É que isso parece funcionar a favor da narrativa, pois concentra o olhar do leitor naquilo que realmente importa: nas personagens e naquilo que elas estão a viver.
Por vezes, há momentos em que os desenhos assumem um estilo mais caricatural e ainda mais rabiscado. São ocasiões mais divertidas onde se procura dar uma certa leveza a uma história que, naturalmente, é pesada no assunto que trata. Leveza também é aquilo que as belas cores, a aguarela, atribuem à história, contribuindo para que as ilustrações sejam muito elegantes, suaves e bonitas.
Quanto à edição da ASA, o livro apresenta capa mole, com badanas, e bom papel brilhante. A impressão e a encadernação são boas. Há um pequeno erro na primeira página do livro, em que se veem linhas vermelhas a circundar a mancha de impressão. Mas, de resto, o trabalho de edição parece-me bem feito. Não obstante, e tendo em conta o tipo de obra em questão, acho que, ainda assim, a obra merecia capa dura como julgo ter sido a opção do lançamento original na Bélgica/França. Acho também que o tipo de ilustração de Alix Garin teria funcionado melhor em papel baço. É uma questão bastante pessoal, reconheço, mas não tenho dúvidas que, olhando para o traço da autora, o papel mate seria melhor opção. Seja como for, a edição da ASA cumpre.
Em suma, não esquecerei o quanto Não Me Esqueças é uma belíssima obra de banda desenhada. A história, os desenhos e as cores são belas, sim, mas a bomba de emoções que a obra perpassa para o leitor, onde imperam sorrisos, mas, acima de tudo, lágrimas e um nó na garganta, são o que de mais marcante fica connosco. Ventos novos parecem vir dos lados da ASA, no que ao lançamento de banda desenhada diz respeito, e este livro é uma clara prova disso. Um dos melhores livros do ano e absolutamente recomendado.
NOTA FINAL (1/10):
9.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Não Me Esqueças
Autora: Alix Garin
Editora: ASA
Páginas: 224
Encadernação: Capa mole
Formato: 268 x 203 mm
Lançamento: Outubro de 2023
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