Nem sempre, mas - felizmente! - várias vezes, acontece que surge uma obra que parece ter sido feita à nossa medida. Dizendo-nos aquilo que precisávamos de ouvir, mostrando-nos aquilo que precisávamos de ver e fazendo-nos sentir aquilo que precisávamos de sentir. Tananarive pode muito bem ser essa obra! Vou até mais longe e confidencio-vos que, para alguém que está sempre a ler tanta banda desenhada - e ainda que eu seja um confesso otimista que procura o lado positivo de cada obra - nem sempre todos os livros têm a capacidade e aptidão de nos tocarem de tal modo que, trazem consigo alguma mudança na forma como olhamos para o mundo e, por conseguinte, nos levam a mudar a nossa própria vida. Mas, claro, há obras que ainda nos conseguem surpreender. Tananarive é, pois, perfeito da primeira à última página, da primeira à última palavra. Uma autêntica obra prima. Para aqueles que já confiam nas minha opiniões - e agradeço-vos por serem muitos - até vos posso dizer que podem parar a leitura deste texto por aqui e ir comprar o livro. Se é que já não o compraram.
Esta obra com ilustrações de Sylvain Vallée - um dos autores da obra Era uma Vez em França que, continuo a insistir, deveria ser publicada por cá - e argumento de Marc Eacersall (de quem eu não me lembro de ler nada), conta-nos a história de Amédée, um idoso reformado que passou uma calma vida enquanto notário e que tinha no seu amigo e vizinho Jo, um exemplo de alguém que viveu uma vida plena de aventuras, por esse mundo fora.
Amédée adorava os serões em que Jo lhe contava mirabolantes aventuras da sua vida recheada de arrojo: desde o seu nascimento em Tananarive, Madagáscar, até às lutas que teve que superar na Guerra da Indochina, ou as vezes em que foi gigolo, garimpeiro ou agricultor. Nos tempos em que viveu enquanto rico e nos tempos em que viveu na pobreza. Enfim, Jo é uma daquelas personalidades que enche uma sala e, especialmente, a mente de Amédée que nutre pelo seu amigo uma grande admiração.
Porém, como na vida, tudo muda de um momento para o outro. Jo morre de repente e Amédée fica com a tarefa de fazer chegar os bens patrimoniais do seu amigo aos herdeiros deste. E é então que começa a (verdadeira) aventura da vida de Amédée que, desbravando o passado de Jo, vai descobrir que sabia muito pouco sobre o seu amigo e que talvez as histórias que este lhe contava não correspondessem necessariamente à realidade. Ou será que sim? Afinal de contas, a subjetividade com que olhamos para uma mesma coisa, pode fazer com que vejamos coisas diferentes perante o mesmo acontecimento, não?
Pelo caminho, esta viagem que Amédée achava que era a destinos tropicais mas que, afinal, o leva a vários sítios de França e da Bélgica, permitem-lhe não só descobrir a verdadeira vida de Jo, mas também descobrir-se a si mesmo. Sobre a pessoa que não soube ser e que, talvez, tenha estado sempre escondida com medo de mostrar realmente. A reflexão deste livro magnífico é adulta se soubermos mergulhar no excelente argumento, muito bem elaborado por Mark Eacersall. Embora possamos achar que já sabemos como a história vai acabar, há espaço para novas revelações e plot twists que enchem de dinâmica a narrativa.
A utilização da personagem de Jo enquanto consciência com que Amédée vai tendo diálogos ao longo da sua jornada, embora não seja algo nunca visto em banda desenhada ou no cinema, permite que haja dinâmica no relato, sem que se tenha que utilizar balões de pensamento ou legendas para uma presumível voz off da personagem de Amédée. Funciona muitíssimo bem! Até porque, e às tantas, até os mortos podem dar-nos lições já mesmo depois de terem partido, pois várias vezes as suas frases ressoam em nós e fazem-nos pensar: “afinal, ele (ou ela) tinham razão”. Que belo isso é! E, não raras vezes, isso ainda nos consegue dar alguns murros no estômago.
É uma história que, sendo universal, tem particular interesse para os amantes de banda desenhada, pois há uma subtil homenagem à influência que a banda desenhada pode ter na vida de uma pessoa, pois também era com ela que todos nós nos permitíamos viajar para as mais distantes realidades e peripécias. E um dos grandes tesouros na vida de Jo foi Pinpin, numa óbvia homenagem a Tintin.
Se a história ressoa no leitor e abre questões que acabamos por fazer a nós próprios - e não será isso o maior feito que qualquer criação artística pode almejar? - os desenhos de Sylvain Vallée são um verdadeiro mimo para os olhos! Com um traço semi-realista tipicamente franco-belga - naquele estilo a que eu gosto de chamar "o novo franco-belga" oriundo da escola Spirou - o autor dá-nos uma história belissimamente bem desenhada, em que personagens apresentam uma expressividade a que é difícil ficar-se indiferente e onde a poesia visual de se ter elementos do mundo selvagem - como animais - num ambiente citadino, oferecem muito impacto e beleza aos desenhos. As cores - da autoria de Delf - também funcionam de forma perfeita na obra.
A edição da ASA é em capa dura baça e com bom papel brilhante. Julgo que, tendo em conta o estilo de ilustração de Vallée, a aposta num papel baço teria funcionado melhor, mas compreendo que esta é uma questão de gosto pessoal. De resto, o trabalho de impressão e de encadernação está bem conseguido.
Tananarive acaba de ganhar lugar de destaque na minha biblioteca pessoal! Eis um livro que me comoveu, divertiu e fez refletir como há algum tempo isso não acontecia. Sem dúvida uma obra que merece a minha chancela de “obrigatória” para todos os amantes de banda desenhada! E não só! Quem gosta de uma boa história também pode e deve mergulhar neste Tananarive! A ASA acertou na mouche com a aposta neste livro lindo que, ou muito me engano, ou figurará entre as melhores bandas desenhadas lançadas em Portugal durante o ano de 2024.
NOTA FINAL (1/10):
10.0
-/-
Tananarive
Autores: Sylvain Vallée e Mark Eacersall
Editora: ASA
Páginas: 116, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 20,5 x 27,4 cm
Lançamento: Junho de 2024
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