Embora de espírito e trato jovial - e até de idade - Diogo Carvalho é um autor de banda desenhada que eu já considero "veterano". Pelo menos, a julgar pelo simples facto de o autor já se ter iniciado na publicação de banda desenhada há bastantes anos. Especialmente, no lançamento de histórias curtas em várias antologias, mas também nas obras a solo Cabo Connection e em Obscurum Nocturnus.
Há umas semanas, ainda durante o Maia BD, foi lançada aquela que é, até à data, a obra de maior fôlego de Diogo Carvalho e que dá pelo nome de Sol. E posso dizer-vos que este livro me conquistou a vários níveis!
Se as ilustrações de Sol são belas, isso já não seria uma grande surpresa para aqueles que acompanham o trabalho de Diogo Carvalho. O que foi uma surpresa para mim neste Sol, foi a qualidade do argumento do livro que se assume, desde já, como um sério candidato a melhor argumento nacional de 2024. E quando falo na "qualidade do argumento" - e convém refrescar a memória de todos aqueles que se esquecem disto - não me refiro a uma “história bonita” ou “história filosófica” ou “história intelectual”… Refiro-me, isso sim, a uma história bem arquitetada, bem montada, bem pensada. E Sol é isso tudo. Simples e até expetável, concedo, mas muito bem construída.
Mesmo sendo uma história (aparentemente) pensada para o grande público, que parece remeter-nos para filmes blockbusters - assim, de memória, enquanto lia este livro, vieram à minha memória filmes como Star Wars, Mad Max, Avatar ou Blade Runner - e que, por esse motivo, pode dar a falsa ideia de que se trata de uma "mera historiazinha comercial", Sol é uma história comercial, ou com appeal comercial, sim, mas sem o "mera" e sem o sufixo "zinha", pois está carregada de pormenores deliciosos e numerosas camadas que a tornam "complexamente simples" - ou "simplesmente complexa", como preferirem. E isso é algo típico nos filmes de culto que marcaram eras. Nos quatro que já mencionei e em muitos outros! Como tal, considero que Sol conquistará, com a passagem dos anos, a etiqueta de “BD de culto” nacional. No momento presente, esta afirmação pode soar a exagero, mas daqui a uns 10 anos, veremos se não tenho razão.
Para este construto de diversas camadas contou, imagino, o longo período que o autor tomou para construir este épico. É que, como Diogo Carvalho teve longos anos a trabalhar neste livro, vê-se que houve tempo e oportunidade para repensar e incluir novos detalhes que contribuíram para a riqueza narrativa da obra. Dito por outras palavras, houve tempo para amadurecer a história, as personagens, os diálogos e o ritmo narrativo. Exemplifico esta ideia recorrendo à música. Tal como na música existem canções em que, independentemente de serem boas ou más, fica perceptível que o processo de construção foi simples e linear, quase em torno de uma inspiração genuína do momento, como Yesterday, dos Beatles, por exemplo, também outras músicas há, onde fica visível que o processo de escrita musical foi complexo, amadurecido, planeado e refletido como Bohemian Rhapsody, dos Queen, God Only Knows, dos Beach Boys ou, para voltar a citar Beatles, Strawberry Fields Forever. Sol não é uma Yesterday, mas sim uma Strawberry Fields Forever. E, repito, trata-se de uma história para o grande público e que não tem medo de ser comercial.
Sol é, aliás, a prova sumária do que para se ser comercial, não é necessário ser-se simplório ou básico. Ao invés, importa, a partir de uma génese simples, unir bem as pontas entre si e ter uma história e um conjunto de personagens suficientemente apelativos para um grande número de pessoas. Se conseguirmos isto, talvez possamos almejar ser comerciais. Não é para todos, é para quem pode. E Sol tem essa valência de conseguir ser adequado para os miúdos de 13 anos que desejam algo que os remeta para um mundo longínquo de aventuras, e ser igualmente adequado para os os graúdos de 53 anos, que têm aqui uma homenagem aos melhores livros e filmes de aventuras que marcaram várias gerações. Se pusermos a soberba e o pseudoelitismo de fora, Sol não só é um dos livros do ano, como é um dos livros dos últimos anos na produção de banda desenhada nacional. Não há como evitá-lo: é obrigatória a sua leitura.
Mesmo assim, nem tudo são rosas. O livro não é perfeito, embora esteja muito bem feito. Mas já lá irei.
Voltemos um pouco atrás.
Já me estou a alongar muito e ainda nem sequer falei da história de Sol, que decorre num futuro longínquo, em planetas distantes. À boa maneira de um western clássico, a história arranca quando uma jovem misteriosa de nome Sol chega ao planeta Eve 979183, à cidade de East of Eden. A xerife Nia, que controla os desígnios dessa localidade, olha com desconfiança para Sol. E toda esta desconfiança resulta da forma como os humanos têm estado a explorar os planetas. De um modo usualmente humano, os recursos dos planetas vão sendo explorados sem eira nem beira, sendo depois, quando já não são bons assets para os humanos, votados ao esquecimento. Alguma parte da população desses planetas permanece nos mesmos, ousando resistir e encontrar uma forma de vida. Neste caso, o planeta principal, ou central, é Ithaca e é aí que residem as classes mais ricas com mais capacidade para explorar os restantes planetas.
Tentando não contar mais do que o necessário, a personagem Sol encontra-se numa luta pessoal para alcançar um recurso natural que, aparentemente, tem propriedades curativas. Toda a restante história, onde não faltam momentos de ação, anda à volta disso.
Há espaço para vilões, para personagens que funcionam como comic relief, para uma personagem que, parecendo inicialmente antagónica, acaba por se revelar companheira de Sol... enfim... temos direito a todos os clichets, sim, mas reformulados e renovados. Diogo Carvalho não imita diretamente nenhuma obra e, ao mesmo tempo, presta homenagem a um sem número delas.
E se, tratando-se de uma distopia, a história pode parecer complexa, devo dizer que Diogo Carvalho faz um ótimo trabalho em explicar como funciona todo este universo futurista de ficção científica. Digo-o muitas vezes - e até já o escrevi aqui no Vinheta 2020, estou certo - que uma boa ficção científica resulta muito melhor se conseguir, ela própria, explicar os seus próprios pressupostos e ideias. E, também nesse ponto, Diogo Carvalho protege bem a sua criação, dotando-a de credibilidade. Coisa que, acreditem, e mesmo em termos de autores internacionais, é muitas vezes esquecida em obras de ficção científica.
Como nota menos positiva sobre a história, não sei se seria necessário que, já depois da ação principal da história terminar, houvesse um “segundo final” em que nos é mostrado o que aconteceu à população local, passados seis meses. É algo muito advindo dos filmes e séries dos anos 80, lá está, mas que, quanto a mim, acaba por ser redundante e possivelmente desnecessário. Mas reconheço que é uma questão subjetiva e uma opção que também se aceita.
O desenho do autor é fiel ao estilo a que já nos habituámos. Chega a impressionar em muitos momentos, brilhando especialmente em cenas de ação ou perseguições em alta velocidade que, felizmente, há com fartura. Em termos de concepção de personagens, de cenários, de veículos e, portanto, ao nível do world building visual, é notável o trabalho do autor.
Mesmo assim, também é verdade que, em alguns momentos, se sente uma certa rigidez física de algumas personagens e que, aqui e ali, pode ser encontrada uma ou outra expressão visual ou construção anatómica que necessitariam, por ventura, de algum aprimoramento extra. Mas mesmo não sendo perfeito em todos os momentos, são igualmente muitos os outros em que Diogo Carvalho nos dá um trabalho verdadeiramente inspirado e em bom nível em termos de desenho.
A utilização da planos em primeira pessoa, à boa maneira de um videojogo FPS, não só está especialmente bem conseguida em termos narrativos, contribuindo para que sejam acrescentadas camadas de personalidade à protagonista, como, visualmente falando, contribui para uma boa dinâmica e diversidade, já que até a própria técnica de desenho, a lápis de carvão, em detrimento da tinta da china utilizada na restante história, permite uma certa beleza visual que é bem vinda e, mais uma vez, acrescenta algo ao todo.
A edição d’A Seita e da Comic Heart apresenta capa dura baça, bom papel baço no miolo, e um bom trabalho ao nível da encadernação e impressão. No final do livro, há uma generosa galeria de extras com 8 páginas, que é constituída por um belo e completo conjunto de esboços e estudos de personagem que, ainda por cima, são complementados com comentários do autor, o que torna os extras do livro em algo muito bem-vindo.
Nota menos positiva, no entanto, para a opção por um formato demasiado pequeno para a edição da obra. Tendo em conta, especialmente, a diversidade e dinâmica na planificação utilizada pelo autor ao longo da obra, que chega a ter pequenas vinhetas quadradas, parece-me óbvio e inquestionável que a opção por um formato maior - e não apenas "ligeiramente maior" mas "bastante maior" - teria feito mais justiça à obra.
Concluindo, Sol é mais uma excelente notícia para a banda desenhada nacional! Podendo não ser perfeita, esta é uma obra de puro entretenimento - sem medo de o ser - e está especialmente bem construída e amadurecida pelo autor. Noutra ocasião, diria que estávamos perante a obra de afirmação de um autor. Mas como, neste caso, falamos de Diogo Carvalho, um autor veterano e bastante experiente na feitura de banda desenhada, digo até algo quiçá mais eloquente: Sol é "a obra de uma vida" de Diogo Carvalho.
NOTA FINAL (1/10):
9.1
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Sol
Autor: Diogo Carvalho
Editoras: A Seita e Comic Heart
Páginas: 160, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 175 x 245 mm
Lançamento: Maio de 2024
Sem comentários:
Enviar um comentário