Tenho a barriga a doer de tantos socos no estômago que a série Sunny, de Taiyo Matsumoto, me deu! Se querem uma série que vos deixe miseravelmente tristes - mas com o coração igualmente apertado - Sunny será a escolha certa! E dou-vos até mais um conselho: quando vos disserem que banda desenhada é “bonecada para putos”, espetem-lhes com este Sunny nas fuças. Não de forma literal, caros bullies.
A maturidade desta série, que a Devir publicou entre nós, é de uma força abrupta, que nos faz questionar o lugar das crianças no mundo, de como pode ser tão difícil e inexoravelmente trágica a sua infância, e de como a felicidade, segurança e sentido de pertença de alguém, são consequências diretas da presença (ou não) dos pais junto de um filho. De uma mãe e de um pai. Ou de um deles, pelo menos.
Vou-vos confessar algo: já tinha lido o primeiro volume desta série há mais de um ano, quando a Devir o publicou em Janeiro de 2023. Gostei, achei interessante, mas mantive algumas reservas, pois não tinha a certeza para onde a série estava a ir. E agora que, há umas semanas, a Devir lançou o terceiro e último volume desta série, não tenho quaisquer dúvidas: isto é da melhor banda desenhada oriunda do Japão que já tive oportunidade de ler. Absolutamente fabulosa!
Dou-vos uma dica, porém: não avancem para a leitura da obra ficando-se apenas pelo primeiro volume. Mergulhem de cabeça nos três volumes, pois estou certo que só assim conseguirão entrar "a sério" nestas maravilhosas personagens criadas por Taiyo Matsumoto.
Sunny é uma obra profundamente emocional e artisticamente distinta que se destaca no panorama dos mangás contemporâneos. Oferece um olhar íntimo e sensível sobre a vida de crianças num orfanato do Japão. O autor, Taiyo Matsumoto, apresenta um estilo muito próprio e diferenciado, quer no desenho, quer no argumento, oferecendo-nos uma história que é ao mesmo tempo triste e esperançosa.
Funciona como se fosse uma "telenovela" que se foca nas experiências diárias das crianças que se encontram no orfanato. O título da obra refere-se a um velho automóvel Datsun Sunny abandonado no pátio do orfanato, que as crianças utilizam como um refúgio onde podem imaginar e criar os seus próprios mundos de fantasia, escapando temporariamente às suas duras realidades. Cada capítulo dá primazia a uma das personagens, levando o leitor a aproximar-se de cada uma delas de forma faseada. Assim, quando chegamos ao final da leitura da série, já sentimos dor e alegria por cada uma das personagens. Todas elas são diferentes na maneira de ser e no percurso que as levou ao orfanato, mas todas têm algo em comum: um enorme vazio pela ausência dos pais. Por muito que os responsáveis do orfanato façam o melhor que podem pelas crianças do mesmo, nada é comparável à presença dos pais na vida de uma criança.
Talvez por isso, os temas centrais de Sunny incluem a solidão, a busca por uma identidade, por uma pertença, a consequente necessidade de aceitação e o poder da imaginação. Matsumoto aborda com sensibilidade a vulnerabilidade das crianças e a resiliência que elas demonstram ao enfrentar as adversidades. Não o faz de um modo demasiado melodramático, com o intuito de chocar gratuitamente, mas com pinceladas de ternura e mágoa, como se a vida assim pudesse ser retratada. Com efeito, ao invés de uma abordagem exageradamente dramática, o autor opta por uma representação mais subtil e realista das emoções das crianças. A série é uma meditação sobre a resiliência humana e a capacidade de encontrar beleza e esperança nas circunstâncias mais difíceis.
Cada uma das personagens é muito rica e diferenciada. Temos a criança rebelde que, estando em negação perante a impossibilidade de viver com a sua mãe, está sempre a meter-se em confusões e a tentar fugir do orfanato; temos a criança introspetiva e sonhadora que só consegue escapar à sua realidade quando se refugia no Datsun Sunny; temos a criança energética que esconde a sua tristeza por detrás de uma certa ousadia; temos a criança sensível que procura cuidar dos irmãos mais novos; temos a criança triste que apenas procura encontrar o seu lugar no mundo... Enfim, como já referido, cada uma destas personagens está ricamente esculpida e cada uma delas causa empatia no leitor. Mais que não seja porque a obra é pródiga em deixar-nos antever que é a influência daquilo que os adultos fazem às crianças que as molda até que estas atinjam a idade adulta. No fundo, a infância e a juventude, são apenas estações rápidas e temporárias para a idade adulta, embora a condicionem irrevogavelmente.
O início de entrada na série não é muito fácil para os leitores, pois a narrativa não é muito linear. Ou melhor, ela é tão linear, baseada nos momentos mundanos das crianças, que parece não ser linear. Dito por outras palavras, o enredo não se foca num desenvolvimento clássico, mas antes na partilha de momentos, estilo slice of life. E, portanto, é a soma de todas as páginas - que são mais de 1000! - que tornam mais inolvidável e maravilhosa toda a experiência que é ler Sunny de forma integral. E, lá está, isto também vai ao encontro do que já referi acima: se lermos apenas um volume, não conseguimos mergulhar verdadeiramente na obra. Esta é uma daquelas obras que ou se leem de forma completa, ou mais vale não ler.
Como ponto menos positivo, embora reconheça que não é bem "defeito", mas sim "feitio", já que se percebe que é uma clara opção estilística do autor, a legendagem é por vezes difícil de acompanhar com uma existência tão grande de onomatopeias que, inseridas em balão de fala, causam alguma entropia na leitura da narrativa.
O estilo de arte de Taiyo Matsumoto em Sunny também é bastante distintivo e altamente expressivo. Estes não são os típicos desenhos que encontramos na maior parte dos mangás. O autor utiliza traços soltos e uma abordagem quase impressionista para capturar a emoção e a atmosfera. Os seus desenhos são detalhados, mas também possuem uma qualidade etérea, de estilo mais autoral, que combina perfeitamente com o tom introspectivo e melancólico da história. É verdade que por vezes podemos encontrar algumas expressões ou posturas das personagens que parecem algo dramatizadas em demasia, o que pode fazer parecer as ilustrações mais arcaicas ou toscas. Por outro lado, também há um bom número de vezes onde o desenho é tão belo que nos deixa ali a observá-lo durante longos momentos.
Sendo uma obra a preto e branco, cada um dos volumes oferece-nos algumas páginas a cores, o que acaba por ser, de certo modo, um "presente envenenado", pois permite-nos ver o quão mais bonita e grandiosa seria a arte visual desta obra se toda ela fosse colorida. Mas, enfim, é algo que infelizmente não acontece apenas neste mangá, é prática comum em banda desenhada japonesa. Com muita pena minha.
A edição da série é em capa mole com badanas e, no interior, os livros possuem um papel decente em qualidade. A qualidade da impressão e da encadernação também são boas.
Em suma, Sunny é uma série que oferece uma exploração rica e comovente das vidas das crianças de um orfanato, através da lente sensível e artística de Taiyo Matsumoto. É uma obra que desafia e recompensa o leitor com a sua profundidade emocional e beleza estética. Que obra fantástica! Isto sim, é mangá a sério! Do melhor que já li e uma série que recomendo (mesmo!) que seja lida. Pelo menos, se tiveres um coração ou consciência social. Se não for o teu caso, talvez possas passar esta.
NOTA FINAL (1/10):
9.7
-/-
Sunny #01
Autor: Taiyo Matsumoto
Editora: Devir
Páginas: 426, a preto e branco, com algumas páginas a cores
Encadernação: Capa mole, com badanas
Formato: 151 x 215 mm
Lançamento: Janeiro de 2023
Autor: Taiyo Matsumoto
Editora: Devir
Páginas: 420, a preto e branco, com algumas páginas a cores
Encadernação: Capa mole, com badanas
Formato: 151 x 215 mm
Lançamento: Novembro de 2023
Autor: Taiyo Matsumoto
Editora: Devir
Páginas: 464, a preto e branco, com algumas páginas a cores
Encadernação: Capa mole, com badanas
Formato: 151 x 215 mm
Lançamento: Maio de 2024
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