terça-feira, 16 de julho de 2024

Análise: A Norte de Sul Nenhum

A Norte de Sul Nenhum, de Fernando Cabrita e João Mascarenhas - A Seita

A Norte de Sul Nenhum, de Fernando Cabrita e João Mascarenhas - A Seita
A Norte de Sul Nenhum, de Fernando Cabrita e João Mascarenhas

Foi ainda no último Coimbra BD que João Mascarenhas voltou a lançar um novo livro, intitulado A Norte de Sul Nenhum. Depois da biografia em banda desenhada de Adriano Correia de Oliveira, intitulada O Perigoso Pacifista, e de uma incursão na banda desenhada humorística, com Burpszila, João Mascarenhas regressa à banda desenhada, desta vez com uma obra de cariz poético que convida à reflexão.

Este trabalho é feito com base nos (ou impulsionado pelos) poemas do poeta algarvio Fernando Cabrita. Se bem que, com esse mote presente, João Mascarenhas acabou por traçar a sua própria história.

A Norte de Sul Nenhum, de Fernando Cabrita e João Mascarenhas - A Seita
Falando na história, esta acompanha o percurso de Khalid, um refugiado de guerra que procura guarida no sul de Portugal, mais concretamente na cidade algarvia de Olhão. Aí, Khalid encontra uma felicidade e uma subsistência que advêm da música que sai do seu alaúde, e das rosas que cultiva e das quais faz perfumes que passa a vender aos habitantes locais. É em Olhão que encontra também um amigo, João, que tem em comum com Khalid duas coisas: o facto de também ele ter fugido para outro país, neste caso França, para fugir a uma guerra (a Colonial) e o facto de também ser músico. Juntos unem esforços e passam a tocar juntos, num estilo de música em que o alaúde e a guitarra portuguesa partilham melodias.

Se a história é de redenção, também traz consigo uma certa tristeza nostálgica pelos amores que ficam pelo caminho e pela sensação de vazio que isso gera. Mesmo que um refugiado encontre a felicidade longe da sua terra, haverá sempre na sua vida uma certa sensação de "plano B", de algo que funcionou como um corretivo, como um escape. E escapar à realidade desavinda é sempre o primordial intuito de um refugiado, já se sabe. Ou dever-se-ia saber. Vão-se sucedendo, portanto, diálogos muito profundos entre João e Khalid que nos fazem parar um pouco para pensar e para refletir. O texto é maduro e bastante inspirado(r).

A Norte de Sul Nenhum, de Fernando Cabrita e João Mascarenhas - A Seita
Esta é uma obra que, mais que contar uma história - no seu sentido mais clássico - nos convida a uma reflexão, a uma espécie de encantamento que tem no belo texto profundo do autor uma âncora, e nas imagens uma embarcação, que permitem que A Norte de Sul Nenhum, apesar do título, chegue a bom porto. É um tipo de banda desenhada contemplativa que, nos dias atuais, não é muito frequente nos lançamentos de banda desenhada portuguesa. E, também por isso, parece reclamar para si um lugar e uma pertinência que é bem-vinda.

Falando ainda no cariz poético da obra, devo até dizer - e, logicamente, com todo o respeito pela obra de Fernando Cabrita - que fiquei especialmente entusiasmado e bem impressionado pelo texto de João Mascarenhas que, sendo em prosa, consegue uma ímpar poesia. Por vezes, sente-se que o texto de Fernando Cabrita, em caixas de texto da cor verde, acaba por ser mais abstrato e, por isso, frio, do que o próprio texto de Mascarenhas, onde a força das palavras atinge mais facilmente o leitor. Quem conhece pessoalmente João Mascarenhas - como é o meu caso - pode dizer com propriedade que o autor, com toda a sua gentileza e uma certa nobreza e classe na postura, está bem presente nas palavras e reflexões que nos vão sendo dadas ao longo desta leitura. Ou seja, e dito por outras palavras, sente-se muito a alma de João Mascarenhas neste livro.

A Norte de Sul Nenhum, de Fernando Cabrita e João Mascarenhas - A Seita
O relato é ainda pautado por várias referências onde até Tintin, Milu e o Capitão Haddock fazem uma curiosa aparição.

Quanto às ilustrações, João Mascarenhas tem o dom de bem nos mergulhar nas ruas olhanenses e de nos oferecer duas personagens com aparência carismática. Os desenhos numa bicromia onde imperam os tons a preto e os tons amarelos esverdeados - ou serão verdes amarelados? - assumem uma estética por vezes mais abstrata e contemplativa que se coaduna bem no pendor poético da obra. 

Por vezes, senti uma certa ausência de continuidade nas ilustrações do autor, já que acontece que logo a seguir a um desenho especialmente belo, possamos encontrar um outro que parece ter sido feito com menos primor e detalhe.

Não obstante, merecem um nota positiva os vários pormenores visuais que embelezam as páginas deste livro, como os frisos arabescos no final de cada prancha ou os belos desenhos das portas que, nas guardas do livro, nos convidam a mergulhar nele. A própria capa do livro, pela sua originalidade de fazer interagir elementos da cultura portuguesa e da cultura arábica, consegue ser bastante intrigante e chamativa.

A Norte de Sul Nenhum, de Fernando Cabrita e João Mascarenhas - A Seita

A edição da editora A Seita está bastante bem conseguida. O livro tem capa dura baça e no interior apresenta bom papel baço e um bom trabalho a nível da impressão e da encadernação. Além disso, traz uma nota introdutória assinada por Fernando Cabrita e, no final, alguns textos do próprio João Mascarenhas, onde o autor nos revela o porquê desta obra, o porquê da cidade de Olhão, o porquê dos alaúdes e mais alguns porquês. Vê-se que é uma edição que recebeu cuidado e carinho por parte dos autores/editores.

Nota ainda - de admiração e de louvor - para o cariz solidário que os autores imprimiram à obra, ao abdicarem do valor dos direitos de autor das vendas, de forma a que essa verba seja entregue a uma associação de apoio aos refugiados. Não só o valor  - maior ou menor - que possa ser amealhado é sempre algo positivo para quem dele possa vir a beneficiar, como este tipo de postura nobre dos autores chama a atenção para o tema da obra, sensibilizando o público. A banda desenhada (também) pode ter um papel ativo na ação social. Os meus aplausos, portanto!

Em suma, A Norte de Sul Nenhum parece ser diferente de tudo aquilo que se publica em termos de banda desenhada nacional e traz-nos um João Mascarenhas inspirado, maduro e reflexivo e, com tudo isso somado, dá-nos um dos melhores trabalhos do veterano autor português.


NOTA FINAL (1/10):
8.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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A Norte de Sul Nenhum, de Fernando Cabrita e João Mascarenhas - A Seita

Ficha técnica
A Norte de Sul Nenhum
Autor: João Mascarenhas, a partir dos poemas de Fernando Cabrita
Editora: A Seita
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 205 x 270 mm
PVP: 13,90€



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