A editora A Seita, em parceria com o Centro Artístico Cultural e Desportivo Adriano Correia de Oliveira, lançou recentemente O Perigoso Pacifista, uma biografia em banda desenhada da vida de Adriano Correia de Oliveira. Este trabalho marca o regresso de João Mascarenhas ao lançamento de banda desenhada e assinala a estreia de Paulo Vaz de Carvalho, como argumentista de bd.
Adriano Correia de Oliveira foi um músico de sobeja importância para Portugal. Não só ao nível cultural, através da sua música, como também ao nível político. Até porque, especialmente no final do Estado Novo, qualquer ímpeto político ver-se forçado, pelas condições impostas, a ter que se mascarar de ímpeto cultural e artístico.
Assim, desde a sua tenra infância em Avintes, até aos tempos de estudante ativista na Universidade de Coimbra, passando pela sua afirmação e desenvolvimento enquanto músico de craveira, O Perigoso Pacifista procura dar ao leitor um quadro geral da vida de Adriano. Tudo de uma forma bastante despretensiosa, que aprecei, e com vários momentos divertidos, em que nos aproximamos tanto do artista como da pessoa que foi Adriano. E de como o mesmo era profundamente estimado por todos aqueles músicos e autores com que conviveu. Falo de José Niza, José Cid, Almada Negreiros, Zeca Afonso, Vitorino, Fausto, Carlos Alberto Moniz, Carlos Paredes e tantos outros nomes relevantes, não só do mundo universitário coimbrense da época, como da moderna cultura portuguesa. E isso é de uma relevância inestimável que, em boa hora, o lançamento deste livro recupera.
A história da vida de Adriano Correia de Oliveira é-nos dada em breves episódios que procuram ser um breve vislumbre para a pessoa – e músico – que foi Adriano. Desta forma, a leitura acaba por ser fácil e acessível, embora pouco profunda, a meu ver. E creio que a divisão da história por episódios poderia ter sido feita de forma mais estanque. Explico: quando falava com o simpatiquíssimo João Mascarenhas a propósito deste livro, o autor fez referência ao facto de a história ser contada por episódios, mais ou menos, independentes entre si. Até referiu os livros do Gaston Lagaffe como exemplo. Mas, num Gaston Lagaffe, os episódios – ou capítulos, ou pranchas, ou "gafes", conforme lhes quisermos chamar – são-nos apresentados de forma estanque. Quase sempre têm a dimensão de uma prancha e há um princípio, meio e fim. São mini-histórias, vá. Isso não acontece em O Perigoso Pacifista. Neste caso, a história, mesmo estando dividida por pequenos capítulos na vida do músico português, apresenta-se como um todo. O que faz, a meu ver, com que a experiência acabe por ficar a meio caminho entre ser uma história completa e ser uma história dividia em pequenos episódios. É que, como história completa, parece-me, que, narrativamente falando, não consegue encaixar em si mesma os vários episódios de uma forma tão fluída assim, ficando, no fim, demasiado compartimentada. Por outro lado, também não adota o género do Gaston Lagaffe (e de tantas outras bandas desenhadas) em que se opta, intencionalmente, por apresentar capítulos independentes entre si.
Diria que esta será mesmo a minha crítica menos positiva ao livro, pois este meio-termo torna o argumento demasiado compartimentado e menos coeso, do ponto de vista narrativo. Exemplificando o que acabo de escrever, é comum que nos seja apresentada uma cena da vida de Adriano e que, logo a seguir, passemos para outra cena, noutro tempo e noutro lugar, e que sintamos que a cena anterior não ficou convenientemente fechada. Paulo Vaz de Carvalho serve-se bastante das legendas temporais para tentar dar-nos uma sensação de continuidade, mas nem sempre isso é usado da melhor forma, quanto a mim. Por exemplo, na página 17, na primeira vinheta temos uma legenda que nos diz “De volta a casa…” e, logo na vinheta seguinte, temos a legenda “tempos depois”. Ou seja, apenas nos é dada uma vinheta para apresentar um evento e logo estamos a saltitar para outro tempo e para outro lugar. No entanto, também são vários os eventos que ocupam várias páginas. Há, portanto, uma noção de tempo e de ritmo muito aleatória.
Olhando para as ilustrações de João Mascarenhas, tenho que dizer que são inúmeros os belos momentos que as mesmas me proporcionaram. O autor é detentor de um estilo de ilustração muito heterogéneo e carregado de diferentes soluções gráficas, que é difícil definir e/ou catalogar. Parece que há espaço para tudo! Por momentos, temos um Adriano bebé completamente "abonecado" em termos de ilustração, noutros momentos temos uma fantástica ilustração citadina, num estilo mais realista. Em certos casos temos um plano das personagens numa perspetiva arriscada, noutros casos temos o desenho meio disforme dos edifícios da cidade, que me remetem para Gaudí, e, noutros casos ainda, somos brindados com uma perseguição policial a relembrar Frank Miller em Sin City! E tudo isto num livro com meras 56 páginas! Numas vezes o seu desenho é muito adulto, noutras vezes parece muito imberbe.
Há, portanto, toda uma dicotomia latente na arte de João Mascarenhas que, possivelmente, também deixará em dois pólos diferentes as opiniões dos leitores. Uns adorarão e outros, nem tanto assim. No meu caso, devo dizer que, sendo verdade que, em alguns desenhos, admito que gostaria de ver um traço mais cuidado nas expressões e linguagem corporal das personagens - bem como na noção de movimento das mesmas -, por outro lado, também admito que fico rendido perante muitas e muitas ilustrações com que o autor nos brinda. Há toda uma poesia e uma musicalidade – que fica sublinhada pela inclusão de elementos gráficos que navegam em segundo plano pelas vinhetas – que muito me atraiu em O Perigoso Pacifista. Portanto, não achando que o trabalho do autor é perfeito, acho que me posso assumir como fã da originalidade e ecletismo dos seus desenhos.
Nota positiva, também, para a forma como o autor conseguiu desenhar de forma facilmente percetível tantas figuras conhecidas. Todas elas são automaticamente reconhecíveis. O que até, sendo algo bom, me leva a uma consideração: é que, se me posso queixar de algo, concretamente n’O Perigoso Pacifista é que, por vezes, me fez uma certa confusão que o estilo de ilustração mais realista das personagens secundárias fosse tão díspar do desenho - mais caricatural - da personagem de Adriano. Quando as mesmas convivem na mesma vinheta, admito que achei que ficava uma experiência pouco natural.
Julgo que uma grande palavra de apreço tem que ser dada à forma como este livro foi lançado. Não só a edição do livro, em si, apresenta a qualidade a que A Seita já nos tem habituado recentemente, como capa dura baça, bom papel mate, boa impressão e boa encadernação, como o livro vem complementado com belos extras que ajudam a que esta obra consiga ter uma relevância verdadeiramente biográfica e com um cariz de documento histórico, também. Assim, temos, no final do livro, um conjunto de notas breves sobre cada uma das personagens que marcaram presença na vida de Adriano Correia de Oliveira. Temos ainda um prefácio de duas páginas escrito por José Barata-Moura, três páginas dedicadas à biografia – em prosa – do músico e uma página que lista a discografia completa de Adriano.
Se a informação já estava bem trabalhada, toda esta edição sai a ganhar com a inclusão de um cd com sete dos maiores êxitos do músico português, nomeadamente, as canções Minha Mãe, Trova do Vento que Passa, Cantar de Emigração, Canção com Lágrimas, E Alegre se Fez Triste, Tejo que Levas as Águas e Vira Velho. Acho que foi uma cartada de mestre por parte d’A Seita e do Centro Artístico Cultural e Desportivo Adriano Correia de Oliveira. Se estamos a ler a biografia em BD de um importante músico português, porque não termos também o acesso a músicas do mesmo? Aplaudo incansavelmente esta ideia. E acho até que faz com que o produto possa almejar públicos maiores: não só o "público da bd" pode passar a ser "público da música", por ter acesso ao cd num livro que compra para ler; como o "público da música" pode igualmente passar a ser "público da bd", por ter acesso a uma banda desenhada num cd que compra em primeira instância para ouvir. E faço ainda uma ressalva: há muito que a música de Adriano Correia de Oliveira não era lançada em cd, o que ainda dá mais relevância a esta bela iniciativa de lançar como bónus do livro, este cd de Adriano Correia de Oliveira.
Em suma, O Perigoso Pacifista é uma aposta ganha enquanto belo produto que, não só presta uma bela homenagem a uma das vozes que cantou o 25 de Abril e que, lamentavelmente, é muitas vezes esquecida, como nos oferece um conjunto de episódios que marcaram a vida de Adriano Correia de Oliveira e que foram testemunhados por todos aqueles que tiveram o privilégio de conviver consigo. Olhando para a banda desenhada em si – e não tanto para o lançamento enquanto "produto" – creio que algumas coisas, especialmente ao nível do argumento, poderiam ter sido melhor limadas para que o livro alcançasse uma maior grandeza. Seja como for, é uma justa e digna homenagem que vale a pena conhecer.
NOTA FINAL (1/10):
7.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Perigoso Pacifista: Histórias de Adriano Correia de Oliveira
Autores: Paulo Vaz de Carvalho e João Mascarenhas
Editora: A Seita
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 215 x 285 mm
Lançamento: Março de 2022
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