terça-feira, 31 de maio de 2022

O meu olhar sobre o Festival de Beja 2022


Depois de terminado o primeiro fim de semana do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, uma ideia persiste: a de que ali se passa algo de especial. É sempre assim com as coisas intangíveis, não é? Aquele certo je ne sais quoi que, ainda assim, nos faz gostar de algo. Estas tais coisas intangíveis na nossa vida são difíceis de explicar mas a sua força acaba, quase sempre, por ser mais marcante, mais absorvente, do que as coisas tangíveis. Afinal de contas, "o essencial é invisível aos olhos", já dizia O Principezinho de Antoine de Saint-Exupéry.

E, naturalmente, o Festival de Beja (também) está carregado de coisas tangíveis: temos várias e boas exposições, temos um programa repleto de ecléticas apresentações e temos uma loja dedicada à banda desenhada. Entre muitas outras coisas. Mais abaixo, falarei um pouco sobre elas e sobre as coisas mais palpáveis. 

Mas, por agora, interessa-me partilhar aquilo que é o mais intangível, isto é, a verdadeira memória coletiva que o Festival de Beja cria em todos os que têm o prazer de o visitar.

Como já o disse no ano passado, o sentimento que tenho em Beja não é bem o de estar num Festival de Banda Desenhada. Assemelha-se mais a uma Concentração de Bedéfilos (semelhante às concentrações de motards, em Faro) pois é um sentimento de partilha, de amizade, de camaradagem aquilo que mais e melhor impera em Beja. Sim, certamente, as exposições, os autores e as apresentações são importantes. Mas é aquele sentimento que se vive por debaixo das arcadas, situadas à porta da Casa da Cultura, que faz deste evento algo tão especial. É simples, é despretensioso, é verdadeiro. Onde o autor e o leitor tomam uma cerveja e onde o autor emergente troca dois dedos de conversa com o autor consagrado. Onde o editor conhece propostas de novos autores que dão os primeiros passos na criação de banda desenhada. Onde se fala português, espanhol, francês e inglês. Enfim, é ali que este sentimento especial que todos nutrimos individualmente pela banda desenhada, ganha uma vertente coletiva, por tantas experiências, histórias e opiniões partilhadas. Toda a gente sai do Festival de Beja mais rica do que quando entrou. 

Ali pude falar com tantas pessoas que já me são queridas como o Paulo Monteiro, o Luís Louro, a Luísa Louro, o João Lameiras, o José de Freitas, o Rui Cartaxo, o Rui Brito, a Vanda Rodrigues, a Maria José Magalhães, o Abílio Pereira, o Ricardo Pereira, o Nuno Neves, o João Mascarenhas, o Jorge Deodato, a Sharon Mendes, o Mário de Freitas, o Carlos Cunha, a Alexandra Sousa, o Diogo Carvalho… e tantos, tantos outros que são em número demasiado grande para aqui estarem a ser todos mencionados. Até porque, para além de todas as pessoas que já admiro e conheço, também ali pude conhecer ou aproximar-me mais de tantas outras: autores, editores, leitores, divulgadores. Podia estar aqui o dia inteiro a falar de muitas mais pessoas, mais ou menos conhecidas do meio, com quem pude estar durante estes dois dias. O tema constante? A BD, claro. Mas, não se fica apenas pela 9ª arte. Fala-se de muitas mais coisas. No fim, o que ali temos já é uma amizade partilhada. Mesmo que tudo isto seja intangível. Mas vamos, agora, às coisas palpáveis. 


As Exposições
A área de exposição deste ano inclui um bom número de interessantes exposições. Em termos cénicos, o espaço está bastante bem conseguido, sendo fácil de ali circular. A iluminação é boa e o próprio design do espaço é apelativo pois, sendo verdade que o edifício da Casa da Cultura já apresenta algumas marcas da idade, ficamos com a sensação de que estamos num museu moderno, tendo em conta a iluminação, as paredes pretas ou brancas, os painéis impressos nas mesmas, o emolduramento das pranchas de bd, etc. Está tudo feito com bom gosto. 

Outra coisa que aprecio quando estou num museu ou numa exposição, é ter uma certa privacidade e serenidade para poder visualizar e apreender aquilo que é exposto. E a área de exposição do Festival de Beja também possibilita isso. Mesmo que haja muita gente no evento, a parte da exposição nunca está a "abarrotar", o que, pelo menos para mim, é uma coisa muito boa.

Falando nas exposições deste ano, concretamente, devo dizer que me deixaram bastante satisfeito. Há uma boa variedade de estilos e géneros, mas destaco, como as minhas preferidas, a de Jean Louis Tripp (autor de Armazém Central), a de Antonio Altarriba e Keko (autores de Eu, Assassino, Eu, Louco e o mais recente livro Eu, Mentiroso) a de Olivier Afonso e Chico (autores de Les Portugais), a de Andrea Ferraris e Ranato Chiocca (autores de Cicatriz e de Churubusco, no caso de Ferraris) e a da portuguesa Joana Rosa, que inclui belas pranchas do seu projeto mangá The Mighty Gang. Mas todas as outras exposições que aqui não menciono – para não ser exaustivo – tiveram coisas que me agradaram.


O Programa de Apresentações

E o que também me agradou foi o programa que, uma vez mais, é bastante condensado e cheio. Isto é, está bastante preenchido desde o início da manhã de sábado até ao final da tarde do dia seguinte. 

Devo dizer que isso, como tudo na vida, tem um lado bom e um lado menos bom. O lado bom é que se ganha diversidade, pois são muitos os temas, obras e autores a serem apresentados, dando-se até espaço aos projetos emergentes. Coisa que sempre defendo. O lado menos bom é que me parece que o tempo atribuído para cada autor, projeto ou livro é apenas de, regra geral, 15 minutos, o que acaba por ser pouco. Sim, é verdade que as apresentações nunca se tornam cansativas, mas também é verdade que, por vezes, é pouco tempo demais. Chega a parecer o “speed dating” da bd. Isto acaba por não ser uma crítica (pois compreendo o reverso da medalha) mas mais uma observação para aqueles que me lêem e não conhecem os moldes destas apresentações.

Infelizmente, falhei algumas apresentações onde queria estar presente, mas posso dizer que das muitas apresentações que, ainda assim, consegui ver, gostei especialmente das apresentações de: Luís Louro e dos seus livros Dante e Os Covidiotas 2; Armazém Central (mesmo sem a presença dos autores); e Olivier Afonso e Chico (Les Portugais). No entanto, devo afirmar também que o melhor momento, relativamente às apresentações a que pude assistir, foi, sem dúvida alguma, aquele que foi protagonizado por Antonio Altarriba e Keko, que ofereceram uma masterclass aos presentes de como bem apresentar um livro (ou melhor, três livros!) de forma sucinta, interessante e bem-disposta. São dois autores que adorei conhecer de perto. Talentosos, cultos, interessantes e carregados de bom humor. Fartei-me de rir com os comentários certeiros e bem-humorados de Keko! Que sejam presença assídua em futuros festivais em Portugal é o meu desejo!


As Ausências

Lamentavelmente, houve duas ausências de peso neste festival. As de David Rubín (autor de Beowulf) que, tanto quanto pude apurar, se encontrava doente. E a de Jean-Louis Tripp, autor de Armazém Central, que, com muita pena minha e de muitos, não conseguiu embarcar de França para Portugal, devido a questões burocráticas de documentação insuficiente para o voo. 

Foram más notícias para os leitores, mas nada há a dizer já que a Organização está inteiramente alheia a estas questões, que não pode controlar. Sei que todos os esforços e opções foram postos em cima da mesa para tentar trazer Jean-Louis Tripp a Beja – nomeadamente, a possibilidade de o autor viajar de Paris para Beja de carro ou de comboio – mas que se acabou por perceber que tal não era possível. É pena, mas são coisas que acontecem.


Os novos lançamentos
Houve um bom conjunto de obras a serem lançadas em Beja.: o último volume da série Armazém Central, de Loisel e Tripp, da Arte de Autor, (composto pelos dois tomos As Mulheres e Notre-Dame-des-Lacs); Eu, Mentiroso, de Antonio Altarriba e Keko, que termina a trilogia “Eu” (Ala dos Livros); Dante, de Luís Louro (Ala dos Livros); Cicatriz, de Andrea Ferraris e Renato Chiocca (Escorpião Azul); Estes Dias, de Bernardo Majer (Polvo); O Caderno da Tangerina – Total, de Rita Alfaiate (Escorpião Azul); Ilha dos Gatos, de Tokushige Kawakatsu (Sendai Editora); Quaresma, o Decifrador – O Caso do Quarto Fechado, de Mário André (Kustom Rats); bem como os lançamentos das antologias Ditirambos #3, Umbra #3, Aurora Boreal em Reflexos Partilhados H-alt #11 (versão digital e impressa).


O espaço para Autógrafos
Desta vez optou-se por colocar a zona de autógrafos noutro local, mais perto da tenda do Mercado de BD. Isto permite mais espaço para as filas de leitores que, caso sejam longas, não deixam uma aglomeração de pessoas tão grande junto ao palco e tendas de comes e bebes, como acontecia anteriormente. 

A mim pareceu-me uma ótima ideia que acho que deve ser mantida em edições futuras.


O Mercado de BD
O evento disponibiliza uma generosa tenda onde há espaço para a mais variada banda desenhada. Novidades, algumas obras mais antigas e onde, se não estou em erro, estão presentes obras de todas as editoras nacionais. Há ainda espaço para algumas excelentes edições espanholas, francesas e inglesas. Muito apetecível. 

Do ponto de vista comercial, acho apenas que seria mais apetecível se se fizessem algumas promoções mais agressivas. Claro que “é fácil falar” e os editores saberão melhor do que eu aquilo que, comercialmente falando, pretendem fazer com os seus livros. No entanto, estou muito certo que os leitores de bd acabam por ficar permeáveis a boas ofertas e, por vezes, até abrir mão de mais dinheiro. Por exemplo, oferecer uma campanha "2 por 1", um desconto de 50% no segundo livro ou destacar um livro com algum tempo de vida, colocando-lhe um preço excelente, aumentará seguramente as vendas de forma direta e indireta. Fica a sugestão.


A Comunicação
Na edição do ano passado sugeri que seria conveniente que, na edição seguinte do evento, o programa completo fosse disponibilizado com maior antecedência. 

E a verdade é que, em 2022, ainda faltava uma semana para que o Festival arrancasse e já conhecíamos quais eram as exposições, quais eram os artistas presentes e as apresentações e lançamentos que ocorreriam no festival. 

Isto é importante porque pode fazer a diferença entre entusiasmar os leitores ao ponto de eles irem (ou não) ao Festival. Ora, quanto mais cedo se conhece o programa, melhor se pode organizar uma ida a Beja. Saem todos a ganhar. 

Portanto, dou os meus parabéns aqui à boa organização do festival.



Sugestões:

Nada de muito dramático da minha parte, já que considero que o festival se desenrolou bastante bem, sem nada de grave a objetar. A única coisa mais negativa foi a ausência dos autores Jean-Louis Tripp e David Rubin mas, como já disse, não é a Organização que é responsável por essas situações. 

- Acho que os soundchecks de preparação para os concertos animados terão forçosamente de passar a ser feitos à hora do almoço ou do jantar, quando não há atividades a decorrer no auditório. Isto porque, mesmo que seja um soundcheck rápido para testar instrumentos e voz, interfere negativamente na harmonia que há na sala das apresentações. Não diria que isto seja o "fim do mundo em cuecas" mas refiro-o porque é uma daquelas coisas que me parece bem fácil de resolver futuramente.

- Creio também que as apresentações deveriam  passar a ser filmadas para memória posterior. Esta não é uma sugestão que veio da minha cabeça. Na verdade, foram várias as pessoas que mencionaram esta ideia. E concordo em absoluto com ela. Pois, se as apresentações forem filmadas, a própria organização terá, futuramente, um vasto acervo de documentação criado por si mesma. 

Não considero, todavia, que seja benéfico fazerem-se live streamings, ou seja, transmissões em direto das apresentações, pois isso pode afastar algumas das pessoas que normalmente se deslocam a Beja. Pode suscitar aquela ideia do: "Ah... se as apresentações, que é o que mais me interessa, são transmitidas em direto, então não vou a Beja e fico em casa a ver tudo no computador". Cuidado com esta possibilidade. Não obstante, acho que, passados uns dias/semanas/meses das apresentações ocorrerem, faz todo o sentido que as mesmas sejam colocadas online, para que todos possam ter acesso a elas, aumentando desta forma o público do festival, mesmo que seja de uma forma virtual. Já todos bem vimos que o futuro e o presente (também) passam por se ter presença online. E a organização do Festival tem aqui uma possibilidade reforçada para o fazer.

-/-

Ainda que o espírito e vida do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja se sinta no primeiro fim de semana do certame, em que ocorrem as principais atividades do mesmo, a verdade é que a exposição estará patente até ao próximo dia 12 de Junho

Portanto, deixo o convite para aqueles que ainda não visitaram Beja, o façam nas próximas semanas. Não tenho dúvidas de que ficarão agradados!

Por último, agradeço ao Paulo Monteiro - e a toda a equipa da Organização do Festival- pela simpatia e amizade, bem como pelo convite que me foi endereçado para marcar presença no evento.

Até para o ano!

2 comentários:

  1. Foi mais grande festival do intangível, com bem referes, sendo que para mim um dos pontos altos foi a noite de sabado em que fechámos a "tasca" às tantas da madrugada 😉. Foi pena a música tão alta ter dificultado um pouco a discussão de alguns assunto que teria sido interessante desenvolver. Fica para o ano...Um abraço. Luis

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    1. Meu caro Luís. Tens toda a razão! Essa noite foi, seguramente, um ponto alto. Gostei muito de te conhecer e de falar contigo! E percebi que sabes muito sobre banda desenhada! Um grande abraço e vemo-nos por aí! ;)

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