Toda a perceção que temos de uma obra, seja ela de que género for, acaba por ser claramente influenciada pela expetativa que temos - ou não - dessa mesma obra. Por vezes, isto gera fantásticas surpresas positivas, impulsionadas por não estarmos com grande expetativa em relação a determinado livro. Noutras ocasiões, como é o caso, há uma certa sensação de desapontamento. Notem que este Don Vega, de Pierre Allary, editado há poucas semanas pela Ala dos Livros, é um excelente livro. O meu “problema” com o mesmo, se é que assim lhe posso chamar, é que tinha grandes (demasiadas?) expetativas perante o mesmo, achando que até poderia ser um dos melhores livros do ano 2022. Mas não o é. Quer dizer, até o podemos conotar, no final de 2022, com fazendo parte de um conjunto alargado dos melhores livros do ano. Mas sinto que lhe falta algo para estar na meia-dúzia dos melhores livros, percebem? Trata-se de um bom livro, sem dúvida, e até está mesmo acima da média. Mas se não estou a falar duma forma tão encantada sobre o mesmo é talvez porque o problema também é meu, ao ter alimentado expetativas demasiado altas para esta obra.
A história passa-se na Califórnia, em 1848, na altura em que arrancou uma corrida desenfreada ao ouro desta região que, nesse tempo, ainda pertencia ao território mexicano. Mas nisto aparece um conjunto de militares, liderados por Gomez, que começam a açambarcar as terras, reclamando-as para si mesmos, enquanto exploram brutalmente a população camponesa, de forma a que a mesma trabalhe nas suas minas em condições próximas às da escravatura. A população, totalmente agastada por esta exploração constante, recorre ao mito de Zorro, o libertador dos oprimidos. Para tal, são vários os camponeses que, vestindo a máscara deste mito local, tentam lutar contra os latifundiários que os exploram. Mas, invariavelmente, acabam mortos devido à sua bravura inocente. Contudo, recém-chegado de Espanha, aparece de forma secreta, Don Vega, a quem Gomez tinha assassinado o pai. Don Vega começa assim a vestir a capa e a máscara do Zorro, de forma a, qual Robin dos Bosques, lutar pelos pobres.
Se este livro fosse o início de uma nova série, parte das minhas observações menos positivas caem por terra pois, nesse caso, Pierre Allary teria muitas oportunidades para melhor desenvolver as personagens, a trama e o mundo em que se movimentam estes peões. Agora se este livro é uma história fechada, um one-shot - e tudo parece indicar que assim o é -, então, em termos de argumento, parece-me que o autor cometeu alguns erros. Nomeadamente ao nível da construção da narrativa. É que, o facto de se pretender (tanto!) contextualizar o período histórico que antecede a ação da história, acaba por se demorar, em demasia, em muitas páginas iniciais. O que faz com que a narrativa se mantenha num impasse durante muito tempo. Essa será, até, a minha principal queixa em Don Vega.
Parece que o autor estava calmamente a fazer o seu livro e, quando deu por si, já tinha ocupado 30 páginas – um terço de todo o livro – com bastantes acontecimentos superficiais que, sim, vão moldando a história e ambientando o leitor, mas que, funcionam como uma certa "palha". Por exemplo, olhando para a história, depois de integralmente lida, deixo uma questão: para quê incluir, sequer, os franceses na história, se eles acabam por ter pouca ou nenhuma influência no desenrolar da mesma? Por um capricho histórico, talvez? Tendo em conta que este é um álbum de aventura, acho que a história teria ganhado mais se o autor se tivesse focado na “main action”, dando até primazia ao protagonista que, na primeira parte do livro, quase não aparece. Com efeito, quando Don Vega se centra no protagonista e na ação principal é que se torna grandioso.
Acho pois, que é a partir do segundo terço do livro que a história finalmente arranca o interesse do leitor, até uma terceira parte, onde a ação nos prende e os momentos se tornam mais inolvidáveis e bem conseguidos. Ou seja, dito por outras palavras, a história é interessante e acaba por impactar o leitor perante tanta malvadeza dos vilões que aqui entram. Se dividíssemos, portanto, o livro em três partes, diria que: a primeira é a "palha histórica" em que se prepara a ação; a segunda parte é a porção em que, finalmente, as personagens e os eventos começam a convergir entre si; e, a terceira parte, é o momento mais cinematográfico, de ação e aventura, que nos dá uma bela urgência e momentos bem conseguidos e épicos por Allary. A sequência final, diga-se com justiça, é muito boa, fazendo com que este livro nos ofereça um belo fim que até pisca o olho à continuação da história.
Já quanto ao desenho do autor, devo dizer que esse foi o primeiro chamariz para que eu me interessasse pela obra. É que, a julgar pelas páginas que fui vendo na internet sobre o livro, ou mesmo quando o folheei, na sua versão francesa, em lojas, fiquei muito agradado com o tipo de ilustração estilizada de Pierre Allary. É que, provido de um estilo muito próprio, o tipo de desenho do autor parecia fazer uma bela ponte entre o moderno e, ao mesmo tempo, o clássico. Por um lado, o desenho é semi-realista mas, por outro lado, as personagens também apresentam algumas expressões mais caricaturais. Diria que é uma mistura que funciona bastante bem.
Em termos de cor, este também é um álbum muito interessante, já que o autor utiliza cores garridas e fortes que lhe dão um toque de modernidade, a fazer lembrar o que Bonhomme faz nas suas duas adaptações de Lucky Luke. Por vezes, parece haver uma bicromia nas ilustrações que, apesar de tudo, vai mudando de cores conforme a cena em questão, mantendo o todo bastante colorido.
Outra coisa que merece destaque é a forma como Allary utiliza o método das tramas japonesas que, basicamente, consiste em fazer as sombras e meios-tons a partir de pequenos pontinhos. É um trabalho hercúleo e minucioso do autor que, certamente, o fez despender horas e horas na conceção deste álbum, como aliás ele mesmo refere, no final do livro, na página dedicada aos agradecimentos. Apenas tenho dúvidas se a arte ilustrativa de Allary não sairia mais beneficiada se o formato do livro fosse menor. Especificamente, tendo em conta este tipo de utilização de tramas por parte do autor que, neste grande formato, tornam as sombras menos naturais. Mas é uma questão subjetiva, bem sei.
A edição da Ala dos Livros está em linha com os seus lançamentos habituais: capa dura, bom papel, boa encadernação e boa impressão. Nada de negativo a apontar. E destaque positivo ainda para a colocação da menção “Edição Portuguesa” na capa, tendo presente que, como o nome da obra é um nome, poderia confundir um leitor mais incauto para o facto desta edição ser portuguesa e não de uma outra qualquer língua estrangeira. Pequenos detalhes que fazem a diferença numa boa edição, diria.
No final, acho que é justo dizer que esta história de Zorro – que funciona como prequela para as aventuras do célebre herói – é um belo livro, com bastante personalidade e que vai deixar muitos leitores satisfeitos – talvez até mais, os amantes do western? E se é verdade que ficou um pouco aquém das minhas expetativas, isso também só aconteceu porque as mesmas eram altíssimas. Assim, mesmo não sendo um livro perfeito, recomenda-se totalmente!
NOTA FINAL (1/10):
9.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Don Vega
Autor: Pierre Allary
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Março de 2022
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