O Homem que matou Lucky Luke, de Matthieu Bonhomme
Há livros cuja capa, de tão
espetacular que é, já conta uma história ou já faz com que
fiquemos interessados num livro, quando passeamos numa livraria. O
Homem que Matou Lucky Luke é um desses casos. Considero a capa - a
original - como uma das melhores capas que já vi em livros de banda
desenhada. Está séria, bem desenhada, soberbamente bem colorida com
os seus tons a azul e uma luz e sombras magníficas mas, talvez ainda mais importante que isso, está dramática e
cinematográfica.
Como se não bastasse, este livro ainda tem um
título que não deixa ninguém indiferente. Chamar a um livro
comemorativo dos 70 anos de Lucky Luke, "O Homem que Matou Lucky Luke"
é audaz, provocador e corajoso. Afinal, será que o autor se propõe
assasinar o cowboy mais célebre do mundo, aquele que dispara mais
rápido do que a própria sombra?
Mas antes de avançar, permitam-me a
partilha do meu background de leitor. Como escrevi há uns dias,
aquando da minha análise a Comanche Integral Volume 3, da Ala dos Livros,
parece que, desde sempre, o público infanto-juvenil da banda
desenhada em Portugal, se dividia por 3 grandes heróis
incontornáveis da bd franco-belga: uns eram fãs de Astérix, outros
eram fãs de Tintim e outros eram fãs de Lucky Luke. É óbvio que
existiam aqueles que eram fãs dos três personagens e/ou de outras
personagens da banda desenhada – como eu! – mas não é exagero
dizer que a, grosso modo, escolhia-se ser fã de um destes
personagens quase como, permitam-me a comparação futebolística, se escolhia ser fã do Benfica, do Sporting ou do Porto. Dentro
destas três personagens, embora, repito, eu gostasse das três, era
de Lucky Luke de quem eu mais gostava. Aquele herói destemido e
cheio de carisma, algo reservado mas totalmente assertivo, que
disparava mais rápido do que a própria sombra, foi meu companheiro
durante horas e horas de leitura. Na minha infância, na minha
adolescência e já na minha idade adulta. O Daily Star ainda é um
dos melhores livros de toda a banda desenhada franco-belga na humilde
opinião deste que vos escreve. E eu não era só fã de Lucky Luke.
Também adorava – e adoro – os irmãos Dalton, especialmente o
inocente Averell e o facilmente irritável Joe. E não posso deixar
de dizer que Rantanplan continua para mim, como sendo a personagem
canina mais estúpida, divertida e amorosa de sempre. O Milu, o
Ideafix, o Pluto, o Bidu e muitos outros animais de estimação que
acompanham célebres personagens da banda desenhada podem ser
amorosos e engraçados também, mas o Rantanplan é o meu cão
favorito de toda a banda desenhada. Não devo ser caso único pois este cão
teve direito à sua própria série de bd.
Mas, voltando a Lucky Luke e
relembrando então que este universo tão inteligentemente criado por
Morris (com a ajuda de Goscinny) me era tão querido, foi com alegria
que soube que, a propósito das celebrações dos 70 anos de Lucky
Luke, a Lucky Comics decidiu dar a oportunidade a outros autores para
recriarem a mítica personagem.
Por vezes estas iniciativas acarretam
alguns riscos para a editora: se os novos livros forem demasiado
próximos da série original, podem ficar aquém do espectável pelos
fãs, devido a faltar-lhe personalidade própria. Do género: “é
igual mas não é a mesma coisa”. Por outro lado, se o autor se
afastar muito da obra original, quer em termos narrativos, quer em
temos de arte, também há o risco de não agradar aos fãs da série,
por ser demasiado diferente. Ora, Bonhomme não fez nem uma coisa,
nem outra. Não desenhou Lucky Luke da mesma forma, bastante
caricatural, de Morris. Mas também não o desenhou de forma
disruptiva, fazendo com que ficasse completamente diferente.
Desenhou-o à sua maneira. Com um aspeto mais realista, é certo,
mas, ainda assim, fazendo uma justa ponte e uma clara homenagem ao
Luke de Morris. Quanto à história, penso que aquela que O Homem que
Matou Lucky Luke nos oferece, poderia muito bem ter constado num
álbum assinado por Morris. Certamente, teria mais gags e teria um
tom menos sério mas, ainda assim, penso que a narrativa aqui
presente poderia ter sido de um livro concebido pelo autor original.
A história leva-nos até Frog Town,
onde o bando dos irmãos Bones dominam a cidade por completo e começam a sentir-se ameaçados com a chegada de Lucky Luke, que desata a fazer
demasiadas perguntas, que põem em causa a idoneidade do bando. Este
Lucky Luke é mais humanizado do que o de Morris e, talvez por isso,
apresenta mais sensações – e até fraquezas – do que o
original. Não obstante, mantém-se fiel a si mesmo e acaba por
demonstrar, através da sua audácia e valores, porque é que é um
herói que tantos leitores apreciam.
Bonhomme além de nos dar um bom livro
de Lucky Luke, dá-nos também um bom livro do género western. Mesmo
se existirem(!) fãs do estilo de banda desenhada western que não
gostem de Lucky Luke, é bem possível que gostem desta obra. Vê-se
que Bonhomme se sente à vontade para desenhar histórias de cowboys,
tendo até já desenhado a série Texas Cowboys. Além disso, as
referências cinematográficas, particularmente aos filmes do género
western spaghetti, de Sergio Leone, são também várias,
especialmente se tivermos em conta todo o dramatismo e suspense que é
dado à cena do duelo. Soberbo trabalho!
Em O Homem que Matou Lucky Luke também
é abordada a razão pela qual Lucky Luke deixa de fumar. Torna-se
curioso e divertido que Bonhomme tenha tocado tantas vezes neste
assunto, construindo quase uma subnarrativa sobre este tema, à volta
da trama principal, se nos lembrarmos que a única exigência que a
Lucky Comics fez ao autor foi que este não mostrasse nunca a
personagem de Lucky Luke com um cigarro na boca.
O único reparo que faço a esta obra,
e trata-se de uma questão meramente de gosto pessoal, reconheço –
é que, por vezes, o autor recorre à aplicação de manchas
monocromáticas em vinhetas inteiras. Percebo que o resultado desta
opção é criar páginas mais dinâmicas e ter um aspecto, por
ventura, mais contemporâneo e moderno. No entanto, por vezes não
gostei desta opção pois pareceu-me tornar algumas páginas quase
num estilo popart que não me parece tão adequado para um livro de
Lucky Luke. Atenção que isto não
chega a melindrar ou a estragar a fantástica obra que nos é dada
mas, a meu ver, retira-lhe a quase perfeição a que poderia almejar,
caso a cor fosse aplicada de forma mais clássica. Como é feito em muitas outras vinhetas, diga-se.
E o que é verdade é que O Homem que
Matou Lucky Luke consegue fazer uma proeza que não é, de todo,
fácil. Consegue ser simulatenamente para míudos (para crianças e
jovens) mas também para graúdos, tendo em conta toda a história
mais madura que apela a uma certa maturidade de quem a lê. Contudo,
também não é um livro demasiado pesado, cuja leitura seja difícil.
É acessível a todos, o que faz dele uma obra muito bem equilibrada.
Parabéns Matthieu Bonhomme, acredito
que Morris estaria orgulhoso deste comeback do cowboy mais famoso de
todos os tempos.
Quanto à nova Editora A Seita, que se
estreia com esta obra no mercado da banda desenhada franco-belga, só
posso dar os meus parabéns e declarar que, quase aposto, os fãs deste tipo de
banda desenhada estão felizes com este lançamento e ávidos por
aquilo que a Editora possa colocar no nosso mercado, que seja do
estilo franco-belga. No final do livro encontramos um pequeno dossier
de estudos de personagem de Bonhomme, que são acompanhados por um
interessante texto de João Miguel Lameiras. Destaque ainda para o
facto de O Homem que Matou Lucky Luke ter duas capas diferentes: a
original e uma exclusiva para a rede de lojas FNAC. Assinalo que,
para o meu gosto, a capa da FNAC está a anos luz da espectacular
capa original – que considero ser a melhor capa de sempre de
qualquer livro de Lucky Luke - mas é bom que haja a liberdade de
escolha para que cada um opte pela capa que mais gosta. Ou então, também é uma boa forma para que se adquira os dois livros, por razões colecionistas, motivadas pela raridade da capa da
FNAC.
Regojizem-se amantes da banda desenhada
franco-belga! Lucky Luke está de volta! E a Editora A Seita promete
dar cartas no mercado da banda desenhada nacional.
Estou certo que se O Homem que Matou
Lucky Luke não for unanimemente considerado como o melhor livro de
banda desenhada do ano estará, pelo menos, entre os melhores álbuns
de 2020. Obrigatório!
NOTA FINAL (1/10):
8.8
-/-
Ficha técnica
O Homem que Matou Lucky Luke
Autor: Matthieu Bonhomme
Editora: A Seita
Páginas: 72, a cores
Encadernação: capa dura
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