domingo, 22 de março de 2020

Análise: Andrómeda ou O Longo Caminho para Casa



Andrómeda ou O Longo Caminho para Casa, de Zé Burnay

Há aquelas obras que parecem diferentes de tudo o que já lemos. Pelo desenho, pela narrativa, pelo mundo criado, pela orginalidade, por algo que a torne única. Andrómeda ou O Longo Caminho para Casa é uma dessas obras. Inquietante e maravilhosamente bela, é um regalo para a banda desenhada nacional. 

Esta é uma obra de arte no sentido literal da palavra, pois está carregada de uma arte maravilhosamente bem concebida, que não parece sequer ter sido feita para os outros. Ao invés, parece feita não só pelo mas também para o próprio autor Zé Burnay. E como uma boa obra de arte, aqui ficamos com a ideia que não há qualquer objetivo comercial por parte do autor, como se em vez de conceber um livro para ser lido pelos outros, Zé Burnay parecesse ter feito o livro para si mesmo e quiçá, partilhar com quem o quisesse ler (e ouvir). 

A capacidade de desenho com que Zé Burnay nos brinda, é majestosa. A meu ver, assume-se como um autêntico virtuoso do desenho em banda desenhada, tal como o Joe Satriani, o Steve Vai, o Eddie Van Halen ou o Yngwie Malmsteen o são, na guitarra-elétrica. A qualidade assombrosa da arte visual do autor é visível na sua capacidade para ilustrar expressões faciais ou na sua capacidade em transmitir emoções através da linguagem corporal das personagens. E também os animais, que abundam em número nesta obra, são desenhados de forma absolutamente linda, bem como as florestas e demais cenários que habitam esta obra. Basicamente, todas as ilustrações aqui presentes estão para lá de brilhantes. 

O seu traço a preto e branco é fino, extremamente detalhado e demonstra um perfecionismo impressionante. Calculo que cada pequeno desenho, devido ao pormenor que apresenta, tenha feito o autor perder muito tempo na sua concepção. Zé Burnay parece-me por isso comprometido com a sua arte como poucos o estão. “Impressionante” é a palavra que mais me ocorre para classificar os seus dotes de ilustrador.

A história acompanha um nómada que faz uma viagem surreal, como se estivesse dentro de um sonho. Embora, diga-se, a certa altura, parecemos penetrar num outro sonho, dentro do sonho original. Tal como Christopher Nolan nos mostrou no seu filme Inception. A paisagem é pós-apocalíptica, com uma peculiar casa, cenários desérticos ou florestas luxuriantes a servirem de pano de fundo a esta história, fruto de um imaginário bastante profundo. Somos então mergulhados numa história carregada de simbolismo e terror. 

Sendo difícil de classificar o género desta obra, diria que “terror”, poderia ser uma classificação possível – embora redutora. O protagonista da história vê-se muitas vezes rodeado por animais e por criaturas monstruosas, dignas de um filme de terror que assombram a existência da personagem. E a nossa.

O livro contém 3 capítulos: Bugonía, Uma Casa no Horizonte e A Nossa Mãe, a Montanha. Esses três capítulos foram reunidos num só volume após uma campanha de crowdfunding bem sucedida na Indiegogo, e lançados em inglês, através de uma edição de autor. Em boa hora, e com perfeito sentido de oportunidade, é lançado em Portugal pela Editora A Seita. 

Algo digno de destaque é que Zé Burnay, não se limitando a ser um ilustador de excelência, ainda nos brinda com uma banda sonora, da sua autoria, e concebida de propósito para Andrómeda, que nos permite uma experiência de leitura mais imersiva. Na minha segunda leitura da obra, fui acompanhado pela banda sonora e devo admitir que a minha experiência beneficiou com isso. Desta forma, se for possível aos leitores, recomendo que a leitura seja feita ao som da banda sonora, para que a experiência ainda fique mais cinematográfica, por assim dizer. A banda sonora pode ser encontrada aqui: andromedamusic.bandcamp.com

Numa obra com uma arte visual de um fulgor tão majestoso, o único problema que a mesma eventualmente poderá apresentar é que, sendo tão onírica, tão metafísica, acabe por ser demasiado aberta e surreal para muitos. Talvez por isso, não seja uma obra para toda a gente. Não é um livro que considere “fácil de ler”. Muito embora tenha pouco texto, obriga-nos a uma leitura cuidada, se quisermos mergulhar bem na mensagem que Zé Burnay nos pretende passar. E mesmo megulhando bem – no meu caso, fiz duas cuidadas leituras da obra – a mensagem e a narrativa estão sempre sujeitas a interpretação pois a conslusão subjacente não é exatamente clara ou óbvia. Podemos ter uma ideia, mas não saberemos se foi isso que o autor pretendeu. Porque, afinal de contas, não nos são dadas muitas pistas. No final da leitura poderá portanto persistir a dúvida: “Aonde me levou esta obra? Que respostas (ou perguntas) me ofereceu?”. Caberá a cada um dizer se estas questões ficaram devidamente bem respondidas.

Sem pôr em causa a excelência desta obra magnífica admito que, no futuro, gostaria de ver uma história mais mundana - porque não um romance? - assente numa narrativa mais acessível e clássica, ilustrada pelos skills extraordinários de Zé Burnay. A sua arte é demasiado boa para se ficar apenas neste estilo mais surreal, atrevo-me a dizer.

A edição da Editora A Seita é de qualidade superior. Um bonito papel baço e de boa gramagem, é tudo aquilo que a arte do autor necessita e é isso que esta edição nos dá. É um livro bonito de se possuir. No final, há ainda espaço para um dossiê com esboços e ilustrações do autor, bem como ilustrações de outros artistas convidados, entre eles a superestrela dos comics, Mike Mignola que, aliás, é um fã de Andrómeda, e classifica este trabalho como “belo e perturbador”. 

Na lombada do livro houve um erro de ortografia, lendo-se a palavra “Andrómneda” em vez de “Andrómeda”. A editora prontamente corrigiu este lapso com a impressão de uma contracapa que acompanha a obra. Na versão que me chegou, o problema já se encontra resolvido. Toco neste assunto, porque li bastantes críticas a este erro nas redes sociais – e embora concorde que é uma situação aborrecida – também acho que se dá demasiada importância a estes erros. Errar é humano e quando a editora prontamente toma ação para retificar um erro, já tem a minha total compreensão. Grave seria não terem feito nada após o lapso. Como gosto de dizer: “foca-te na solução e não no problema”. A Editora focou-se na solução e resolveu o problema. Chega de “sururu” sobre este tema, caros amigos leitores. Foquem-se na qualidade do livro em si, que é o que mais interessa.

Em conclusão, posso afirmar que a arte visual de Andrómeda ou O Longo Caminho para Casa é absurda, de tão boa que é. Uma obra que parece uma mulher perfeita na sua beleza, embora carregada de indefinições ou de mistérios. Zé Burnay é um virtuoso do desenho que nos deixa de boca aberta, da primeira à última página. E a ideia de saber que este livro é fruto de um autor português, faz-me sorrir e manter a esperança que todos saibamos valorizar a qualidade da banda desenhada nacional, que já vai sendo tão boa.

NOTA FINAL (1/10):
9.0

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Ficha Técnica
Andrómeda ou o Longo Caminho para Casa
Autor: Zé Burnay
Editora: A Seita
Páginas: 128, a preto e branco
Encadernação: Capa dura

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