Os Choco-Boys é o mais recente álbum dedicado ao cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra e que A Seita acaba de publicar ficando, deste modo, a par da edição francesa de Lucky Luke Visto Por, que já inclui os dois álbuns de Bonhomme, O Homem que Matou Lucky Luke e Procura-se Lucky Luke, tal como Lucky Luke Muda de Sela, de Mawil; e Jolly Jumper já não responde, de Bouzard. É mais uma coleção que fica integralmente publicada em Portugal – pelo menos até à data da publicação deste texto – o que merece os meus louvores!
Estava bastante curioso com este Os Choco-Boys pois já sabia da temática gay friendly que Ralf König costuma colocar nos seus livros. Aplicá-la a um herói do grande público como Lucky Luke pareceu-me um ato de coragem e audácia por quem quer que tenha avançado com o projeto. E, sinceramente, acho que foi uma aposta ganha já que este livro de Ralf König só não é o melhor de toda a série porque, de facto, Bonhomme elevou em muito a qualidade da mesma. Mesmo assim, supera de longe, e com facilidade, as propostas de Mawil e Bouzard.
Em primeiro lugar porque, graficamente, o estilo de ilustração de Ralf König encaixa bem nesta versão desbocada e divertida de Lucky Luke. Em segundo lugar, porque a história – ainda mais desbocada do que os desenhos, mas divertida na mesma escala – está bastante bem encetada pelo autor.
Os Choco-Boys coloca Lucky Luke de férias. E o nosso herói terá que o fazer guardando vacas numa montanha. Mas neste livro, embora Lucky Luke seja a estrela a quem todos pedem autógrafos, não é bem o protagonista. Já que a história, contada com avanços e recuos cronológicos, se centra mais nas personagens de Bud e Terrence e na relação de amor/ódio que parecem nutrir um pelo outro. No fundo, se este é, afinal, um álbum de Lucky Luke, a verdade é que parece ser uma adaptação desbragada do célebre filme, de Ang Lee, Brokeback Mountain. E se o filme chocou, na altura, quando estávamos em 2005, muitos homofóbicos (uns mascarados e outros, não tanto), quer-me parecer que este Os Choco-Boys também poderá chocar algumas pessoas.
Espera aí… pensando agora no título, e abrindo aqui um parêntesis, é curioso que, pelo menos na versão portuguesa, o título ganhe um duplo sentido já que, para além de ser uma menção clara aos cowboys que comem chocolate, também funciona como os rapazes que “chocam” os outros. "Choco-boys", portanto. Digo, eu. Pode ter sido algo acidental, mas não deixa de ter funcionado bem.
Diria que este não é um livro que eu possa recomendar às crianças. E quando digo isso, não estou, como é óbvio, a mencioná-lo por causa do tema da homossexualidade aqui presente, mas sim por ser um livro onde abundam referências sexuais e alguma nudez. Tudo muito softcore, é certo, mas, ainda assim, para um público mais maduro. E tendo em conta a capa “fofinha” e apelativa deste livro, até acredito que muitos pais, desligados da banda desenhada, quando estiverem a passear calmamente numa livraria e dêem de caras com este livro, digam: “Oh, que giro, mais um livro do Lucky Luke. Podemos oferecê-lo ao nosso afilhado, Luís Miguel, que, na próxima semana, vai fazer a primeira comunhão”. Pode-se levantar aqui o tema se a editora poderia/deveria (ou não) ter colocado, na capa, a menção “para adultos” ou algo semelhante. Mas, lá está, também não é nada que, quanto a mim, vá aniquilar a infância do Luís Miguel ou de outras crianças semelhantes que, hoje em dia, com um tablet/telemóvel/computador à frente podem, em segundos, encontrar coisas de cariz adulto com as quais eu nem sonhava na minha infância. Mas fica o meu comentário sobre o tema.
Para além da história de Bud e Terrence, há todo um conjunto de peripécias que nos deixam de bom humor. As referências ao cinema, aos cowboys, à homossexualidade, à própria banda desenhada enquanto género e, naturalmente, a Lucky Luke – incluindo os autores que já desenharam o herói – marcam aqui presença. Os próprios nomes das personagens têm piada. Já para não falar no nome da cidade onde se desenrola a ação – Straight Gulch – que é uma clara provocação ao homofobismo que aí impera. E quase todas elas são espirituosas e conseguem arrancar-nos uma gargalhada. Calamity Jane e os irmãos Dalton também contribuem largamente para as gargalhadas que facilmente aparecem: Joe Dalton continua raivoso como um cão; Averell continua inocente e estúpido que nem uma porta; e Calamity Jane continua um autêntico poço de calamidades e risadas. Diria que só faltava mesmo Rantanplan – o meu cão favorito de toda a banda desenhada de sempre! – para aqui contribuir com mais umas quantas piadas hilariantes. Só a presença dos índios me pareceu menos divertida, mas, mesmo assim, arrancam alguns sorrisos. Uma coisa é certa: nenhum outro livro da coleção Lucky Luke Visto Por me fez rir como este!
Em termos de narrativa, destaca-se ainda a boa capacidade do autor ao conseguir dar-nos uma história em várias camadas narrativas. Ou seja, é-nos contada a história de quando Bud e Terrence conheceram Lucky Luke. Mas dentro desse conto, o próprio Bud conta a Lucky Luke a história de como conheceu Terrence. Parece confuso e algo digno do filme Inception? Pode ser mas há que dizer que o autor o faz com uma tal simplicidade que faz com que a história seja facilmente apreendida pelo leitor. Não é muito habitual de se ver uma narrativa assim, intrincada, num livro de banda desenhada de humor.
Quanto ao desenho, este é um álbum bastante agradável à vista. Com belas cores, que contribuem para uma experiência agradável na recriação deste universo, o autor consegue um belo feito: por um lado, não cede em relação ao seu estilo próprio de desenho e oferece-nos um desenho bem em linha com as suas restantes obras. Por outro lado, tem a sorte – ou o engenho? – de conseguir fazer esse seu desenho característico funcionar bem em Lucky Luke. E as personagens famosas, como Lucky Luke, Jolly Jumper, Calamity Jane ou os irmãos Dalton, são facilmente reconhecíveis. Ao contrário de, por exemplo, Lucky Luke Muda de Sela ou Jolly Jumper já não responde, aqui os desenhos parecem mais em linha com o universo original criado por Morris sem, no entanto, tentarem copiá-lo diretamente. Ótimo equilíbrio que o autor aqui conseguiu, portanto.
A planificação não arrisca muito embora, de vez em quando, aqui e ali, apareça uma vinheta maior ou diferente, que permite que o conjunto narrativo possa respirar melhor. E também é verdade que o autor por vezes abusa um pouco na repetição de algumas ilustrações. No entanto, parece-me que o fá-lo pela simples razão dessa repetição fazer parte da narrativa de cariz humorístico que se procura passar. Como sendo a preparação e/ou exploração de uma punchline, portanto. Visualmente esta característica não é tão agradável, por ventura, mas narrativamente funciona, está claro.
A edição do livro está em linha com a dos outros livros desta coleção d’A Seita: capa dura, bom papel baço, boa encadernação e boa impressão. Não há extras, além de uma página em que, à boa semelhança da coleção clássica de Lucky Luke, se contextualiza o tema do livro, com base em algum registo histórico-fotográfico do faroeste americano.
Em suma, recomendo totalmente este Lucky Luke de Ralf König se a ideia for passar um bom bocado, numa história muito bem construída que não se leva muito a sério e sabe rir de si mesma. Repito que nenhum outro livro desta coleção me fez tanto rir como este Os Choco-Boys e que, também por isso, este é um sério candidato a melhor livro de bd humorística do ano.
NOTA FINAL (1/10):
8.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Lucky Luke - Os Choco-Boys
Autor: Ralf König
Editora: A Seita
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Março de 2022
Os próprios Bud e Terrence devem ser uma homenagem aos atores que ficaram famosos em Trinitá.
ResponderEliminarCerto!
EliminarExacto. É isso mesmo 😊
ResponderEliminarTive a oportunidade de folhear esta obra e a reprodução pareceu-me abaixo do desejável. Ponto demasiado aberto com demasiado ruído (semelhante a uma antiga impressão a jacto de tinta..) cores pouco vibrantes e papel pouco adequado á arte. Alguém mais pode pronunciar-se sobre a questão?...
ResponderEliminarInteressante opinião. Por acaso não senti isso, no entanto. É verdade que algumas cores são algo esbatidas mas creio que isso está relacionado com as próprias cores do autor. Mas agora também fiquei na dúvida.
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