A última edição do Amadora BD contou com a presença do autor brasileiro Marcello Quintanilha. Por esse motivo, o editor da Polvo, Rui Brito, teve a gentileza de me convidar para conduzir a apresentação do mais recente livro do autor, Escuta, Formosa Márcia, que era lançado por essa altura no certame. Por esse motivo, tive a oportunidade não só de ler em primeira mão esta maravilhosa obra como de conversar, a esse respeito, com Marcello Quintanilha.
E logo por essa altura me dei conta de que estava perante uma obra de enorme peso e força narrativa. E tanto assim foi que quando, meses mais tarde, Escuta, Formosa Márcia arrecadou o prémio Fauve D’Or para melhor álbum no Festival de Angoulême, não fiquei tão surpreendido assim como, aparentemente, ficaram muitos leitores portugueses – e até alguma crítica nacional.
É que a proposta do autor – e talvez seja isso que torna toda a sua obra tão ímpar – se afirma naquilo a que gosto de chamar: “a poesia de rua”. Já assim dizia uma das minhas bandas favoritas de rock, os Hanoi Rocks, no seu álbum Street Poetry. “Poesia de rua” porque a proposta de Quintanilha parece passar por colocar nos seus livros pequenos retratos do dia-a-dia. A realidade tal como ela é, deixando respirar no mundano e no casual, toda a poesia que aí podemos encontrar. E se, por acaso, esses retratos (também) transbordam tristeza, emergência ou preocupação social, é porque essa é a realidade que circunda o autor na sua observação social. Ou nas suas experiências de vida na realidade brasileira.
Não será, pois, uma necessidade de contar a “história do coitadinho” aquilo que move Quintanilha. Aliás, na conversa que tivemos no Amadora BD, lembro-me do autor me dizer que, mesmo que todas as suas histórias partam da realidade, ancoradas em experiências vividas por si mesmo ou por pessoas que lhe são próximas, tudo evoluiu para uma “história que, no final, se constitui 100% em ficção”.
E Escuta, Formosa Márcia não é exceção. Márcia, a protagonista, é uma mãe solteira, natural do Rio de Janeiro, que é enfermeira de profissão, mas que enfrenta o seu maior trabalho na função da parentalidade. Não será assim com todos nós, pais? Mas, no caso de Márcia, o grande problema é que a sua filha, Jaqueline, não parece estar bem sem arranjar problemas. Uns atrás dos outros. E gradualmente maiores. Mesmo que uma certa insubordinação e rebeldia da adolescência, e da primeira idade adulta, sejam habituais em todos nós, no caso de Jaqueline, os problemas começam a ganhar uma maior grandeza quando esta começa a relacionar-se com más companhias, isto é, com os membros dos gangues locais. Márcia e o seu companheiro, Aluísio, padrasto de Jaqueline, tudo tentam fazer para chamar à razão a jovem rebelde, mas Jaqueline é uma daquelas feras difíceis de domar e rapidamente se vê relacionada com o crime organizado. E assim esta jovem, bem como a sua família, por arrasto, vão ficando entranhados neste submundo com se estivessem a pisar areias movediças. E é neste crescendo de problemas, nesta sucessão de momentos difíceis e fragilizantes para a condição humana – especialmente quando vivenciados em família e/ou por familiares – que esta obra tem a sua força máxima. Uma leitura inebriante, tocante e que nos deixa sem fôlego. Estão a ver quando começam a ler um livro e vão ficando tão mergulhados na história que não descansam até terminarem a leitura? Este é um desses livros.
O que prova, se dúvidas ainda restassem, que Marcello Quintanilha é, acima de tudo, um contador nato de histórias. Um Bob Dylan ou um Bruce Springsteen da banda desenhada mundial. E já nem falo em “banda desenhada brasileira” porque me parece que o autor já se tornou num autor de renome internacional. Mais do que estarmos a falar se gostamos – ou não – dos seus desenhos, das suas planificações ou das suas histórias, o que deveríamos aplaudir, em primeiro lugar, é a “voz” que Quintanilha reclama para a sua arte. Essa de ser um contador de histórias. Um storyteller. Da realidade que nos rodeia. Mesmo que sejam histórias fictícias.
E é nos diálogos das personagens, nas vivências que as mesmas vão partilhando e na erosão natural da vida, que lima as arestas da força humana, que há espaço para uma conclusão mais profunda. Uma verdade que nem sempre queremos ver. Mas que está bem à vista de todos nós. Escuta, Formosa Márcia é, por isso, um relato pungente e marcante que se mascara de uma história simples. Quase linear. Mas cheia de nuances e mensagens por decifrar. Assim é a vida real.
Em termos de desenho, o autor vai-nos dando, ao longo da sua obra, várias facetas possíveis. No caso concreto, Escuta, Formosa Márcia é composto por desenhos simples em que as linhas utilizadas pelo autor quase surgem apenas com o intuito mor de delinear os limites das formas dos objetos e das personagens. Não será, portanto, no traço que a parte gráfica deste livro mais salta a atenção, mas sim nas cores, garridas e contrastantes, que nos oferecem uma sensação que ao início até pode parecer estranha e out of place mas que, com a continuação da leitura, faz com que nos sintamos à vontade com esta audaz opção estética. Não são desenhos que eu considere particularmente bonitos, mas também não posso sequer pôr em causa que o trabalho ilustrativo de Quintanilha não seja verdadeiramente eficiente na forma como consegue contar-nos a história. Dito de outro modo, quando me mostrarem uma bd com desenhos lindíssimos, mas um argumento fraco, eu poderei mostrar-lhes este Escuta, Formosa Márcia e provavelmente ficarei a ganhar na troca de galhardetes.
A edição da editora Polvo é boa, apresentando capa mole, bom papel, boa impressão e boa encadernação. Sei que para alguns leitores o português brasileiro do livro, que é rico em expressões do calão carioca, pode ser de difícil compreensão e, provavelmente, esses leitores iriam preferir que a obra fosse editada no português lusitano. Todavia, pelo menos para os meus gostos, acho que faz sentido que a obra tenha sido lançada em português brasileiro, pois permitiu-me uma maior imersão na cultura local. Posso não ter entendido, à primeira, duas ou três expressões, mas isso em nada beliscou a minha experiência e compreensão da obra.
Em suma, Escuta, Formosa Márcia é das obras mais bem conseguidas e intensas de Marcello Quintanilha, que já é um autor bastante pródigo em oferecer-nos livros intensos. Uma impactante e memorável história que, sendo fictícia, transborda de realidade, que todos os leitores de banda desenhada deverão ler.
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Escuta, Formosa Márcia
Autor: Marcello Quintanilha
Editora: Polvo
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 190 x 260 mm
Lançamento: Novembro de 2021
Confesso que nunca fui um grande apreciador da obra de Marcello Quintanilha mas esta última proposta seduziu-me pela narrativa gráfica. O mesmo não posso dizer em relação ao guião contruído em português BR de favela, demasiado opaco para o público português (e provavelmente, boa parte do brasileiro..). Seria talvez preferível ter-se pensado numa pequena adenda contextualizando a obra e oferecendo um pequeno glossário. Se os brasileiros não hesitam em adaptar o português PT em edições locais (veja-se "Balada para Sophie", edição recente da Pipoca & Nanquim...) porque não fazer o mesmo (quando justificável) nas edições nacionais? Ainda em relação a mercado nacional não deixa de ser curioso como a Polvo pouco ou nada está a fazer para "alavancar" esta pequena pepita que tem entre mãos que é só o Grande Prémio do Festival de BD de Angoulême 2022. Coisas...
ResponderEliminarPois, percebo o que diz mas não sei se concordo. Já tinha ouvido vários comentários em relação a essa questão do português brasileiro da favela neste livro não ser perceptível para os portugueses mas, como digo no texto acima, tirando duas ou três expressões, nunca tive nenhuma dificuldade em bem perceber a obra.
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