Depois de cerca de um ano e meio a pós o lançamento de New York Cannibals, a Ala dos Livros lançou finalmente uma das obras mais emblemáticas dos autores Jerome Charyn e François Boucq, que dá pelo nome de Little Tulip. E quando digo “finalmente” quero dizer que a espera ainda foi um pouco longa para aqueles que já tinham lido New York Cannibals que, de alguma forma, continua os eventos vivenciados em Little Tulip. As histórias são consideradas independentes – e, de facto, são-no, pois podem ser lidas de forma separada – mas a verdade é que depois de finalizada a leitura de Little Tulip decidi reler New York Cannibals e posso agora dizer que a leitura dos dois álbuns de forma seguida, valoriza as leituras de ambos. Portanto, é algo que recomendo.
Olhando agora, com detalhe para Little Tulip, é fácil entrar na bela história do consagrado autor Jerome Charyn. Para que um livro de banda desenhada seja bom – e por muito que o mesmo apresente belíssimas ilustrações – é necessário que a história e a própria narrativa também o sejam. E devo dizer que neste livro, Charyn demonstra a sua prolífica imaginação e boa capacidade para bem contar uma história.
Trata-se do percuso de vida de Pavel que passamos a acompanhar em duas linhas cronológicas diferentes: o tempo atual, em que trabalha num estúdio de tatuagens em Manhattan, e o tempo passado, desde a sua tenra infância em que ficamos a conhecer o seu percurso de vida.
Quando os seus pais são condenados por espionagem e transportados num comboio com o destino de um campo de trabalhos forçados - conhecido como gulag - na Sibéria. Com apenas sete anos, e totalmente traumatizado por tudo aquilo a que tem de assistir, acaba por ficar separado dos seus pais e terá que lutar pela sua sobrevivência fazendo tudo ao seu alcance para o conseguir. É uma história de uma grande violência emocional que, sem dúvida, nos deixa com a boca seca ao presenciarmos todos os momentos a que Pavel terá que fazer frente.
Ao mesmo tempo, essa narrativa do passado vai sendo entrecortada pelos momentos do tempo presente, em Nova Iorque, onde começa a aparecer uma vaga de assassinatos a mulheres indefesas que, aparentemente, são levados a cabo por um homem que esconde a sua identidade com um gorro natalício e, por isso, começa a ser apelidado de Bad Santa. Tendo aprendido a arte de fazer tatuagens quando ainda era criança no gulag, Pavel tornou-se, entretanto, num conceituado tatuador e desenhador em Nova Iorque e acaba por colaborar com a polícia no desenho de retratos robot. É, aliás, por esse motivo que Pavel passa a estar envolvido neste caso dos assassinatos do Bad Santa. É interessante porque são ambientes muito diferentes – o da Sibéria e o de Nova Iorque – e, portanto, aguçam a nossa curiosidade para ficar a saber quais os eventos que alteraram tanto a vida de um homem. Como é que ele conseguiu obter a sua vida tão pacata e normal em Nova Iorque se, em criança, teve todos aqueles traumas no gulag?
Devo dizer que gostei bastante de New York Cannibals mas considero Little Tulip uma leitura que, embora seja muito mais clássica e, por ventura, menos original que a outra, acaba por me parecer mais verosímil e, consequentemente, mais marcante. Se New York Cannibals é bastante bom, Little Tulip é verdadeiramente excelente.
Boucq aparece nesta obra em grande forma, oferecendo-nos desenhos muito inspirados, com fantásticas expressões e uma bela representação dos corpos das personagens, demonstrando saber oferecer à narrativa todo o apelo emotivo que ela precisa, quando estamos perante as tais partes mais angustiantes da história, mas também saber ilustrar cenas de ação de forma maravilhosa.
Posso dizer que a página 81 do livro, em que Azami trava uma feroz luta pela vida contra os homens do Conde, é das melhores pranchas de luta que me lembro de ter visto nos últimos anos. Porquê? Bem porque para além do fantástico e dinâmico "bailado de luta", em que se deteta uma ferocidade e urgência incríveis, a maneira como parece que Azami não luta bem contra os seus oponentes, mas sim, contra as criaturas que os mesmos têm tatuadas nos braços, é de uma poesia visual extrema. Maravilhoso na ideia e maravilhoso na conceção da mesma.
Todos sabemos o quão Boucq gosta de desenhar algumas coisas mais bizarras. E, com justiça se diga, normalmente fá-lo muito bem e tem nessa característica um traço comum do seu trabalho. Isso também acontece neste Little Tulip em alguns momentos que visualmente nos marcam pela sua bizarria, mas também é justo dizer que provavelmente este estará entre os livros mais comedidos do autor nessa vertente. Quer isto dizer que para aqueles que, por vezes, dizem: “hmm, este Boucq parece ser bom, mas só gosta de desenhar coisas estranhas”, este livro servirá, certamente, como uma possível porta de entrada para conhecerem o fantástico trabalho do autor. As cores também representam um papel importante na forma como a história nos é dada, sendo mais frias na Sibéria e mais quentes em Nova Iorque. O trabalho de Boucq acaba, pois, por ser sublime.
Se me posso queixar de alguma coisa é da ilustração que o autor decidiu fazer para a capa do livro (e aqui ainda acrescento, também, New York Cannibals). Não é que sejam maus desenhos, nem nada que se pareça, mas acho que não mostram em nada o poderio visual e virtuosismo técnico do autor.
Quanto à edição, temos mais um belo trabalho da Ala dos Livros. Capa dura, excelente papel com a quantidade certa de brilho, boa impressão e encadernação. Nota ainda para o breve, mas belo, dossier gráfico, com três páginas, que nos oferece várias ilustrações e esboços de Boucq.
Em suma, Little Tulip é um livro fantástico, que nos conta a comovente história de um belíssimo protagonista, que retemos na memória já bem depois de finalizada a leitura do livro. E, claro, no topo de tudo isso ainda temos as sublimes ilustrações de Boucq, que contribuem para que este livro figure entre os melhores lançamentos de 2022. Muito bom, de uma ponta à outra!
NOTA FINAL (1/10):
9.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Little Tulip
Autores: Jerome Charyn e François Boucq
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Abril de 2022
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Mais abaixo, deixo o convite para a leitura da análise ao álbum que continua o percurso destas personagens:
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