Estava bastante curioso para ler este livro, intitulado Rattlesnake (que em português quer dizer “cobra cascavel”), da autoria do português João Amaral. E especialmente por um motivo: é que não é todos os dias que encontramos um western feito por um autor português.
João Amaral já assumiu publicamente que fazer um western em banda desenhada era um sonho antigo e, portanto, a expetativa era alta. Mas, infelizmente, embora este Rattlesnake traga coisas interessantes, a verdade é que peca em algumas características que me parecem elementares. Mas já lá irei.
Olhando para a história, ela apresenta-nos uma protagonista da qual ninguém sabe o verdadeiro nome, mas que é conhecida por “Rattlesnake”. Esta alcunha deriva do estranho assobio, próximo ao som de uma verdadeira cobra cascavel, que emite no momento de cometer um assassinato. Sendo mortífera como uma cobra, a verdade é que a nossa protagonista tem uma conduta de heroína pois, tal como outro herói, luta contra injustiças enquanto protege os mais fracos e vulneráveis.
É por isso que, quando se dá conta que um arrogante proprietário quer retirar as terras a uma família negra, custe o que custar, Rattlesnake intervirá com o seu apoio a esta família perseguida e fragilizada. Para tal, restitui o acesso ao rio que, entretanto, tinha sido desviado pelo infame perseguidor da família em questão. E, além disso, monta uma verdadeira caça ao rato, ludibriando o enorme número de invasores que procura tomar à força as terras de Jim e Carolyn.
Aprecei especialmente a tentativa de fazer um western algo diferente do habitual, especialmente a dois níveis: o de colocar a questão do racismo presente na história e a de ter uma mulher como a heroína da aventura. São coisas que raramente vemos no género do western. Se a questão do racismo aparece mais bem explorada por João Amaral, pois as observações de foro racista estão quase sempre presentes nas palavras do perseguidor da família negra, a questão de a protagonista ser uma mulher está menos explorada e surge-nos mais como uma opção estética. Mais superficial, portanto. Rattlesnake é uma mulher porque… bem, porque sim.
A história que nos é dada pelo autor é bastante simples, mas funciona razoavelmente bem. Todavia, o principal problema que encontrei na história de Rattlesnake foi na questão dos diálogos e na linguagem que as personagens debitam entre si. Que tornam o texto pouco verossímil para quem o lê pois ninguém fala da forma que as personagens falam. Acho até que alguém poderia ter avisado o autor desta característica, antes que a obra fosse dada como finalizada. É que o texto parece preparado por alguém que habitualmente não escreve. Sei que João Amaral normalmente apenas desenha e que aqui assume a tarefa de argumentista. E isso justifica e atenua, em parte, esta questão do texto. No entanto, quer-me parecer que não seria complicado resolver melhor esta questão dos diálogos que acabam por deixar a história mais desamparada e menos profissional para quem a vai ler. O excesso de balões de pensamento também não contribui para esta questão. João Amaral explica tudo em demasia. Por vezes, uma imagem sem texto diz mais do que uma imagem com texto redundante e pouco plausível.
Do lado da arte ilustrativa, há que dizer que este foi dos livros que li nos últimos meses que considerei mais heterogéneo na qualidade das ilustrações que nos são dadas. Passo a explicar: tão depressa os desenhos são magníficos e verdadeiramente belos, como, logo na vinheta seguinte, são bastante mal concebidos. E torna-se difícil de analisar e perceber uma arte tão desnivelada em si mesma. Exemplo aleatório: nas páginas 46 e 47 temos numa cena noturna algumas vinhetas muito belas, com os cavalos a deslocarem-se, mas também temos uma vinheta no fundo da página 46 onde a cabeça do vilão parece desadequadamente maior do que o corpo que a sustenta. Já para não falar na protagonista, Rattlesnake, que, ao longo do livro, nuns momentos me pareceu uma mulher muito bela e cativante e noutros momentos me pareceu uma mulher feia. Fez-me lembrar uma mulher bonita que conheço (não direi o nome para não ter problemas, naturalmente) mas, por incrível que pareça, em alguns desenhos também me fez lembrar uma mulher feia que conheço (e também não direi o seu nome para não ter problemas, embora eu ache que nenhuma dessas mulheres, nem a bonita, nem a feia, leiam banda desenhada ou o Vinheta 2020). Lá está, falta a tal homogeneidade que traz consigo um certo problema de continuidade e fluidez imersiva na obra.
No entanto, devo sublinhar que há momentos verdadeiramente sublimes nas ilustrações que o autor nos dá. E há que dar mérito ao facto do autor se ter aventurado num álbum pintado a aguarelas. Quando funciona, é verdadeiramente grandioso, reconheço. Mas nem sempre o consegue ser pela tal razão de serem desenhos muito inconsistentes. A sensação com que fico é apenas agridoce porque, centrando-me nas coisas melhores deste Rattlesnake, fico com um sorriso amarelo e com o pensamento que João Amaral conseguiria mais e melhor. Claro que, sendo mais otimista e olhando para o “copo meio cheio” há bons momentos que merecem o meu aplauso também.
Vi pelas redes sociais algumas críticas ao facto de, na capa desta obra, a protagonista exibir a espingarda na mão esquerda quando, na realidade é dextra e não canhota. Meus caros, olhando para a capa, é mesmo esse o maior problema que encontram? É que Rattlesnake nem sequer está a disparar. Só está a segurar a espingarda. Não me parece algo tão grave assim. Mais grave, quanto a mim, é que a ilustração escolhida não é nada feliz. No dossier de extras do livro, no primeiro esboço em que vemos Rattlesnake a montar a cavalo, enquanto olha para o seu lado direito, teríamos uma potencial capa para a obra tão, mas tão, mas tão, mas tão melhor!
Como é que ninguém se deu conta disto? Nem o autor, nem os editores, nem aqueles que acompanharam a construção da obra? É, também, e mais uma vez, com uma sensação agridoce que olho para esta capa. Agridoce porque não é pelo facto de João Amaral não ser capaz de executar uma bela ilustração – como demonstrei acima – que a capa de Rattlesnake não funciona. Não funciona porque se optou por uma ilustração menos conseguida. Faz-me lembrar a situação de quando um músico lança para single uma música fraca enquanto que o bonus track do mesmo álbum tem uma música maravilhosa.
A edição da Escorpião Azul mantém os standards habituais dos livros do seu catálogo, com capa mole e papel de qualidade decente, mas há aqui algumas coisas que se destacam pela positiva: no início temos um prefácio de Mário Marques e ainda uma honesta - e muito agradável de ler - introdução escrita por João Amaral. E, no final, ainda temos direito a 8 páginas com esboços do autor que, lamentavelmente, me fizeram ficar deprimido com a capa da obra, conforme expliquei acima.
Em suma, este Rattlesnake vale – para os leitores e para o autor - por ser uma primeira abordagem ao estilo western por parte de João Amaral. Há boas ideias e coisas que correram bem, mas também há um bom número de coisas que não correram pelo melhor. E que, ainda por cima, eram facilmente corrigíveis. No final, a sensação é, por isso mesmo, agridoce.
NOTA FINAL (1/10):
6.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Rattlesnake
Autor: João Amaral
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Abril de 2022
O racismo é um tema muito comum nos filmes do Oeste americano.
ResponderEliminarSe formos para os anos 50, temos o "The Searchers" em que a personagem do John Wayne é um racista - no entanto a proposta está no racismo para com os índios, mas não deixa de ser racismo.
Mas sempre esteve presente. No Imperdoável, a personagem do Ned, é brutalmente assassinado por ser um negro que teve a coragem de desafiar a autoridade.
Mais recentemente temos o Django do Tarantino que pega no género dos anos 70.
Agora a questão a personagem feminina, já foi abordada mas pontualmente. No entanto, há um filme excelente chamado Homesman em que se faz uma desconstrução brilhante da figura feminina no Oeste americano.
Portanto, o João Amaral tinha um belo desafio pela frente.
Sim, se pensarmos no racismo perante os indígenas, sem dúvida. Mas na minha análise refira-me ao racismo perante os negros. Sei que, mesmo assim há alguns exemplos onde aparecem negros (ostracizados pela cor da pele, ou não). Mesmo assim não considero que seja tão batido assim olhando para os exemplos que podemos nomear, em comparação com a quantidade de westerns onde os negros nem sequer aparecem. Já me falaram desse filme "Homesman" mas ainda não tive oportunidade de ver. Obrigado pelo comentário.
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