É quase impossível ser-se um leitor português de banda desenhada e nunca se ter lido uma obra de Luís Louro, um dos mais prolíficos autores da banda desenhada nacional. Diria também, mas isto será mais subjetivo, naturalmente, que também é quase impossível que, tendo lido um livro do autor, não se tenha gostado do trabalho do mesmo.
Posso dizer que já acompanho o percurso de Louro há muitos anos e, passando pelo espantoso Alice, ou pelas aventuras d’ O Corvo, de Jim del Mónaco ou por Cogito Ego Sum, Sentinel ou Watchers, sempre valorizei muito o trabalho do autor. Pela sua originalidade, pela sua produtividade, pelo seu estilo próprio, pela sua independência autoral e, claro, pelo seu humor. Já para não falar nas suas fantásticas mulheres, de seios, rabos e ancas grandes, que tão agradáveis são de apreciar. Mas também sei que Luís Louro é – ou pode ser – mais do que isso.
Com efeito, sempre achei que faltava a Luís Louro uma obra de maior fôlego. De maior dimensão. E quando falo em "dimensão" não me refiro – apenas – à dimensão de páginas, mas, igualmente, à dimensão da história, propriamente dita. Daquilo que nos é dado, daquilo que nos é passado pela história. Não me entendam mal: não é que houvesse nada de errado com a obra do autor. Simplesmente, senti várias vezes que lhe faltava um certo je ne sais quoi. Como se Luís Louro preferisse manter-se à superfície, nos seus argumentos. É certo que Alice, e até alguns momentos mais reflexivos dos álbuns d’O Corvo, tiveram o condão de nos fazer pensar e de parar para refletir. Mas eram momentos singulares.
Lembro-me inclusive de ter dito a Luís Louro, que, entretanto, se foi tornando um amigo pessoal, isto mesmo: que talvez ele pudesse fazer algo mais sério, mais maduro, mais profundo. Já tinha provado ser capaz de tal tarefa em Alice. No entanto, sendo Alice tão curto em páginas, algumas fantásticas ideias não puderam ser tão bem explanadas. Faltava, por isso, a Luís Louro uma história mais profunda e mais comprida em duração. Para que o autor pudesse almejar fazer um livro (ainda mais) marcante do que os seus anteriores trabalhos.
Esse livro chegou e chama-se Dante! Dante atinge – com alguma facilidade, diria até – o lugar cimeiro em todo o catálogo do autor. É o livro mais profundo, mais audaz, mais corajoso e mais ambicioso de Luís Louro. Sim, será este livro que a partir de agora recomendarei a quem nunca tiver lido um álbum de Luís Louro – essa estirpe de leitores, cada vez mais rara.
Mas vamos por partes.
Não é segredo para ninguém – embora o mistério envolto a esta obra tenha sido bem guardado pelo autor e editor – que Luís Louro passou os últimos meses a trabalhar num projeto ambicioso e diferente. O autor ia espicaçando o interesse dos leitores nas redes sociais, partilhando detalhes ou, por vezes, pranchas completas. Mas não se sabia bem qual era o tema. Fui um dos sortudos que teve a oportunidade de visualizar, na íntegra, o álbum de uma ponta à outra. Mas, embora maravilhado com o portento visual que aparentava ser esta obra, fiz os possíveis para não ler nenhum balão, pois queria manter a história virgem quando chegasse à sua leitura.
Falando da história, Luís Louro tem neste Dante uma adaptação muito livre do clássico A Divina Comédia de Dante Alighieri. Posso dizer que o autor parte da obra original, mas que, depois, segue o seu próprio caminho, traçando a sua própria história. Não é bem uma adaptação, quanto a mim, mas mais uma hommage à obra original. Bem, tal como Louro já fez com Alice. O que acaba por tornar a própria história mais livre e com maior capacidade de surpreender o leitor. As referências, quer a outras obras do autor, quer a elementos da Divina Comédia, entre outros, são em bom número. O autor gosta de o fazer e eu, enquanto leitor, também acho que isso dá um gosto pessoal para quem lê a obra e quer tentar “caçar” todos os easter eggs que o autor vai semeando ao longo das páginas. Assim, sendo óbvio que a história se sustente na Divina Comédia, são muitíssimas as outras referências presentes: o universo de Tolkien (ou será de Neiklot?), o Capuchinho Vermelho e mesmo Peter Pan, de J.M. Barrie (e, também, Peter Pan de Régis Loisel, acrescentaria eu), aparecem aqui representados de alguma forma. De um modo respeitoso por parte de Luís Louro, mas sempre à sua própria imagem e estilo. Com identidade própria, portanto.
Bem, mas voltando à história, a mesma ocorre durante a Segunda Guerra Mundial, numa França ocupada. Quando um avião de guerra alemão é abatido por outro avião inglês e se despenha numa zona rural francesa, a vida de Dante, a criança de cabelo vermelho que protagoniza desta história, sofre alterações bruscas. Primeiro, porque esse despenhamento leva a que um conjunto de soldados invadam e ocupem a casa do pequeno Dante, e que lhe proporcionem fortes mazelas emocionais e psíquicas, devido àquilo a que Dante se vê forçado a assistir. E, consequentemente, essas mazelas levam Dante a começar uma viagem rumo à floresta, partindo (fugindo?) para outro lugar. Dentro de si mesmo, talvez?
Depois de chocado com o que vê, e de encetar uma viagem pela floresta, Dante encontra figuras de um mundo fantástico, como Virgílio, o espantalho emblemático, e muitas outras criaturas (elfos, duendes, fadas), das quais se destaca Amélia, a “fada que não é fada” e que serve como um belo comic relief. Porque, apesar de esta ser uma das obras mais sérias de Luís Louro, mesmo assim há espaço para alguns momentos divertidos. E a fada Amélia está cá para isso mesmo. Os nazis são representados por goblins, tendo em Reltih (não vos lembra ninguém com um nome parecido?), o líder máximo dos nazis.
Embora seja ambientado na Segunda Guerra Mundial, não se pode classificar este livro como sendo uma história de – ou sobre a – guerra. O tema da guerra surge apenas para ambientar a história da obra embora, claro está, o autor teça, depois, as suas próprias considerações sobre a guerra, de um modo geral, atual e universal.
Há algo que merece destaque, pela positiva, que é um maior controlo da linha temporal narrativa da obra. Já o autor me havia confessado que, em Dante, procurou dar o tempo necessário a cada uma das suas cenas. E se, em obras anteriores, numa página conseguia ilustrar muitos momentos diferentes, em Dante, o ritmo é outro, dando espaço a que cada cena ocupe o tempo que necessita ocupar. O resultado é óbvio: Luís Louro consegue gerir melhor o tempo de ação e embalar o leitor no ritmo pretendido, tornando a leitura mais madura e adulta.
Aliás, maturidade na história, é algo que Dante nos oferece. São levantadas questões sobre o certo e o errado, o bom e o mau, as luzes e as trevas. Louro brinca bem com esses conceitos.
Mas se, até aqui, tenho vindo a falar apenas sobre a história de Dante, é impossível falar desta obra sem mencionar a sua enorme força visual. Luís Louro é um daqueles autores que tem vindo a aprimorar os seus dotes de desenhador. Se olharmos para os seus primeiros álbuns – e acho que talvez até o autor ou o fã mais acérrimo possam concordar comigo – este Luís Louro de tempos mais recentes, parece dar uma goleada, em termos de beleza e rigor de desenho, aos seus trabalhos dos anos 80 e 90. E, portanto, se há aqueles autores que alcançaram um nível técnico em que se sentem confiantes e, por esse motivo, optam por se manter fiéis a esse registo, não tentando melhorar ou modificar nada, Luís Louro não é, de todo, um desses casos. Tem evoluído muito, de álbum para álbum. Isso sentiu-se nas suas últimas obras como Watchers, Sentinel ou nos últimos dois Corvos, particularmente.
Não obstante, e sendo verdade que o trabalho do autor já se tinha tornado muito bom em álbuns recentes, este Dante está num outro patamar. Pois aqui Luís Louro parece apresentar-se em pleno uso e controlo das suas capacidades de ilustrador. O estilo mantém-se familiar (percebemos que é um Luís Louro se olharmos aleatoriamente para uma qualquer vinheta) mas, a verdade é que a qualidade e segurança do seu traço também está para lá de fantástica. Dante é um livro que, em termos de ilustração, é muito rico porque nos dá muitas coisas diferentes: florestas luxuriantes e densas, personagens humanas e criaturas fantásticas, maquinaria e veículos de um universo de ficção científica, aviões de combate da Segunda Guerra Mundial ou até paisagens campestres francesas. A maneira minuciosa, com tanta atenção ao detalhe, com que Luís Louro ilustra as verdejantes florestas ou as máquinas de guerra dos nazis, é verdadeiramente impressionante. E um passo em frente em relação àquilo que o autor já havia feito em trabalhos anteriores. Além de que, depois, também temos vários elementos de ação que estão ilustrados com a mestria e eficiência do autor. E como se não bastasse, há um flashback na história em que Luís Louro optou por desenhar com um novo e diferenciado estilo de ilustração. Isto, meus caros, é devoção ao trabalho. É aumentar a própria fasquia de trabalho. E funcionou muito bem, ainda por cima!
Mas se tenho estado a falar do excelente trabalho de Louro nas ilustrações, o que posso dizer em relação ao seu fantástico e ímpar trabalho de colorista? Vou dizer uma coisa que me parece óbvia e digo-o sem qualquer desprimor em relação a todos os autores portugueses que, quem me conhece, sabe que respeito e admiro: Luís Louro é, atualmente, o melhor colorista da banda desenhada nacional. Em termos de argumento ou mesmo de desenho, penso que a questão será (sempre) mais subjetiva. Mas a maneira como o autor utiliza a sua luxuriante paleta de cores vivas ou a forma como brinca com a luz e sombra, é objetivamente sublime e deixa-me de boca aberta. Um autêntico banquete visual. Utilizando um método totalmente digital, estou em crer que o enorme know how que o autor tem enquanto fotógrafo profissional, lhe permitiu alcançar um belo talento na manipulação de luz e imagem. Verdadeiramente incrível. Repito: quanto a mim, Luís Louro, é o maior talento nacional enquanto colorista.
Quer-me parecer – e isto talvez seja a coisa menos positiva que posso dizer de uma obra tão bem conseguida – que, lá mais para o meio do livro, o autor divaga um pouco sobre os tais conceitos do bem e do errado, da luz e do negro, culminando depois numa resolução da trama algo expetável. Não que isto seja um grande problema e talvez até tenha sido utilizado, também, em homenagem a algumas obras. Outra coisa que, a meu ver, poderia ter funcionado melhor era o tipo de letra nas falas dos goblins. Percebo que seja outra “língua” ou uma maneira de falar mais áspera e monstruosa, mas acho que poderia ter sido feita de uma outra forma que tivesse melhor leitura.
Mas, mais uma vez, são pequenas coisas numa obra que faz tanto e tão bem. Não há dúvidas que Dante é a obra-prima de Luís Louro. Sei que o autor está a trabalhar num novo Corvo (e isso são sempre boas notícias!) mas creio que, com Dante, Luís Louro abriu – ou reabriu, pois, de certa forma, já o tinha feito com Alice – uma porta para uma história mais densa e madura. Espero que o autor possa voltar a este “tipo de obra” o mais depressa possível. Mesmo que não tenha nada a ver com goblins, nazis, fadas ou criaturas fantásticas… bem que pode ser um simples romance entre um homem e mulher. Não me interessa bem o conteúdo, interessa-me mais a forma. Luís Louro prova com este Dante que consegue pensar em boas histórias, desenvolvê-las bem e representá-las graficamente com muito virtuosismo.
A edição da Ala dos Livros está verdadeiramente bem conseguida e também é digna de destaque. Livro em capa dura, com um belo papel, boa impressão e boa encadernação. Nota para o mais que generoso dossier de extras que conta com mais de 20 páginas de conteúdo adicional. Estes extras são um verdadeiro mimo para os leitores e revelam-nos todo o processo de criação da obra. Fotografias em que vemos o autor a trabalhar, esboços de personagens, o processo da construção completa de uma prancha, entre várias informações adicionais, em que o autor nos “abre a porta do seu estúdio”, com comentários na primeira pessoa que valorizam a informação disponibilizada. Uma edição extremamente bem conseguida, portanto.
Não sei se estará nos planos do autor e/ou editora – provavelmente não – mas creio que este livro merece ser publicado lá fora. E esforços nesse sentido terão que ser encetados. Ter uma versão em inglês e outra em francês, pelo menos, para chegar a mais gente e internacionalizar o que de bom se faz na banda desenhada portuguesa é algo que merece o esforço dos autores/editores. Será, aliás, apenas dessa forma que os autores portugueses poderão sonhar com público e prémios internacionais…
Em suma, sintetizando tudo aquilo que Dante, a nova obra de Luís Louro, é, chego a uma equação. E essa equação é fácil: se Luís Louro é um autor tão relevante e indispensável da banda desenhada portuguesa, e se este Dante é a sua melhor obra de sempre, então estamos perante um clássico instantâneo e um livro que entra diretamente para o pedestal de melhores obras da banda desenhada nacional. Mais do que recomendado!
NOTA FINAL (1/10):
9.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Dante
Autor: Luís Louro
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Maio de 2022
Sem comentários:
Enviar um comentário