Lembro-me que quando comecei este blog, logo no início de 2020, fiz um artigo sobre as bandas desenhadas que, infelizmente, tinham sido deixadas ao abandono pelas editoras em Portugal e que estavam entre as minhas bandas desenhadas preferidas de sempre. Eram elas Armazém Central, de Régis Loisel e Tripp, Sambre, de Yslaire e este Peter Pan, de Régis Loisel. É bom verificar que passou pouco mais de um ano desde que fiz esse artigo e, até esta data, já duas dessas bandas desenhadas passaram a ser (re)editadas em Portugal, para meu gáudio! Primeiro, Armazém Central, que passou a ser editado pela Arte de Autor e, mais recentemente, Peter Pan, que foi reeditado pela ASA, em parceria com o jornal Público. Sambre mantém-se deixado ao abandono em Portugal desde o quarto álbum, que foi editado pela extinta editora Witloof. Em França, a série prepara-se para chegar ao seu 9º e último álbum. Talvez depois da publicação desse 9º álbum alguma editora portuguesa aposte nesta série magnífica? A ver vamos.
Mas, por agora, centremo-nos em Peter Pan. Quando soube que a ASA iria apostar nesta série, publicando os seus seis volumes numa coleção lançada com o jornal Público, não pude deixar de ficar agradecido e maravilhado por esta aposta da editora portuguesa. Não apenas por ser uma série que vai ao encontro dos meus gostos pessoais de banda desenhada mas também, e principalmente, por ser inequivocamente uma obra-prima da banda desenhada mundial! Por esse motivo, a aposta da ASA em Peter Pan assume-se como sendo "serviço público", tal não é a importância e obrigatoriedade para um fã de banda desenhada que se preze, ter esta série na sua coleção.
Esta é a adaptação que Régis Loisel faz da obra original de J.M. Barrie que será, possivelmente um dos contos infanto-juvenis mais famosos de sempre. Conceitos como a terra do nunca, onde as crianças nunca crescem; a fada sininho; os meninos órfãos; o capitão gancho e o crocodilo que o persegue; os índios; as sereias; ou a habilidade de Peter para voar; passaram a fazer parte da cultura popular. E já nem falando no clássico de animação da Disney que tanto marcou o cinema e a sociedade.
Mas este não é um Peter Pan para crianças. A história é adulta, negra e pesada e está repleta de cenas violentas aterrorizantes, inúmeras cenas de nudez e uma linguagem que, por vezes, até é ordinária. Loisel fez a tarefa prodigiosa de misturar o universo fantástico de J.M. Barrie com o ambiente de uma Londres suja e pobre, bem ao jeito das obras de Charles Dickens, mais concretamente da sua maior obra, Oliver Twist.
A mistura destas duas vertentes, aparentemente díspares entre si, funciona perfeitamente e é a ignição para o arranque da história que procura ser a história da origem da criança que se recusava em crescer. Estamos em 1887 e Peter é apenas uma das muitas crianças londrinas que vivem na mais profunda miséria. O seu pai já não está neste mundo (?) e a sua mãe, consumida pelo álcool, trata-o com a mais profunda violência psicológica. Os seus amigos são as crianças de um orfanato a quem Peter conta inúmeras histórias que funcionam como escape para a dura realidade que rodeia todos eles. Felizmente para Peter, este conhece Kundal, um velho médico que lhe dá de comer, enquanto o ajuda na sua educação. É por isso que Peter é das poucas crianças que sabe ler e escrever. E é lendo o velho livro que o seu pai lhe tinha deixado, que Peter trava contacto com uma pequena fada, que baptiza como Sininho. E é a partir daqui que Peter viaja da sua desencantada Londres para uma terra imaginária onde conhecerá personagens de todas as cores e feitios como fadas, sereias, piratas, índios, duendes, elfos e muitas outras criaturas mitológicas. O seu próprio mundo carregado de imaginação para onde foge, de modo a preservar o seu bem mais valioso: a sua infância e a sua ingenuidade.
Mas se esta Terra do Nunca parece um local de sonho, isso não quer dizer que não aconteçam também eventos horríveis. E um desafio com que Peter se depara, logo à partida, é a região de Opikanoba, onde cada um se vê forçado a enfrentar os seus próprios medos. A partir daqui, a trama vai-se adensando com um conflito sempre presente entre o capitão Gancho, que procura incessantemente o tesouro escondido na ilha, e Peter que, entretanto, passa a adoptar o nome de Pan por se sentir, de certa forma fundido nessa outra personagem que era o líder das criaturas mitológicas.
Há que dizer que há depois muitos avanços e recuos na história a que vou poupar os leitores do Vinheta 2020 para não lhes estragar o prazer da leitura. Mas, seja como for, há que dizer que Régis Loisel se mostra incrivelmente criativo nesta história. De certa forma, consegue até trazer mais coisas para a trama do que a obra original de J.M. Barrie. O que é algo de louvar. E isso leva-me a crer que Loisel tem necessariamente de ser um grande admirador do conto original, olhando para a forma apaixonada e dedicada como tenta fazer crescer os eventos, as personagens e os seus intentos, em relação à obra original.
Já para não falar da enorme quantidade de significados ocultos e metáforas com que polvilha este Peter Pan. Até as coisas mais ínfimas parecem trazer uma dupla interpretação à história. E se isto é verdadeiramente genial, talvez traga consigo o único defeito – se é que assim se lhe pode chamar – desta obra majestosa. Mas, quanto a isso, já lá irei.
Sobre a história, resta-me ainda dizer que achei delicioso que certas coisas que todos nós conhecemos na obra original, recebam aqui uma resposta que justifica o porquê de tal coisa. Exemplos: acabamos por descobrir a razão que leva Gancho a ficar sem uma mão, como é que Sininho ganha esse nome ou até mesmo qual é a razão que leva Peter a assumir o nome de "Pan".
Para além de tudo isto, onde a história também é verdadeiramente sublime é na abordagem de psicologia que traz consigo. Com efeito, sublinha-se a questão da infância enquanto uma idade que, contrariamente ao que todos nos parecem ensinar, é violenta e descaradamente marcante na vida dos adultos. Todos os adultos já passaram pela infância e todos eles, de forma melhor ou pior, acabaram por crescer. E crescer significa ganhar ou significa perder? Será a idade da infância o nosso mais fértil período? E, por esse motivo, o mais perigoso período? E serão os sonhos e a vida que temos na imaginação uma outra forma de realidade, já que condiciona de forma concreta a nossa vida, dita “real”? E qual a importância de uma mãe nas nossas vidas? Conceitos adultos e oriundos do universo da psicologia, como o complexo de Édipo, a maternidade não-assumida ou violência infantil são trazidos por Loisel para esta adaptação.
Se há uma única crítica, menos positiva, que posso fazer a este Peter Pan é que não me parece que a história fique verdadeiramente resolvida. E quando digo isto, não me refiro ao facto de eu gostar ou não do final que Loisel escolheu para a sua obra. Ou por ser um final “aberto”. Não. Refiro-me, isso sim, ao facto de me parecer que Loisel embora tenha sabido abrir brechas na trama tão relevantes e pertinentes, acabou por não as agarrar na íntegra. Faz perguntas, levanta questões, faz sugestões, desenvolve muito bem a componente metafórica de toda a história mas depois, parece que não agarra todas essas belas ideias. Que deixa cair algumas dessas ideias sem que atribua à sua história um sentido de closure. De plenitude. Por outras palavras, ao longo da história Loisel levanta tanto as expetativas que, à medida que nos vamos aproximando do final, sentimos um subaproveitamento de tão maravilhosas ideias, analogias, metáforas e recriação da obra de J.M. Barrie. Talvez se a obra tivesse mais um ou dois volumes fosse possível agarrar e resolver todas as pequenas e grandes ideias de Loisel.
Quanto à arte ilustrativa, estamos também perante uma obra acima da média. A arte de Loisel é uma coisa magnífica em Peter Pan. Não que sejam os desenhos mais bonitos de sempre. Loisel não é aquele autor que nos vai dar as personagens mais bonitas na banda desenhada. Mas, por ventura, conseguirá algo muito melhor e mais raro do que produzir “apenas” desenhos bonitos: o autor consegue criar um universo próprio, onde as personagens são compostas por um traço cheio de dicotomias: ora belo na conceção, ora grotesco. As mulheres, de seios fartos e ancas generosas, ora parecem feias, com corpos deixados ao abandono e ao descuido, ora parecem belas em toda a sua voluptuosidade e curvas de perder de vista. As dicotomias estão por toda a parte e sentem-se particularmente nos desenhos de Loisel.
O traço de Loisel é nervoso, com o tratamento e conceção das personagens muito assente na caricatura e na utilização de expressões exageradas, que imprimem à narrativa um conjunto de sentimentos inequívocos que acentuam aquilo que passa para o leitor. Os cenários são belos, e a utilização de enquadramentos originais, como grandes-planos das faces das personagens ou perspetivas isométricas arriscadas, é sempre muito bem conseguida e inspirada.
Há ainda uma boa paleta de cores que dá vida às verdejantes florestas da ilha ou ao mar que a rodeia, bem como um belo jogo de sombras em cenas mais nocturnas. A parte da tempestade no mar também merece nota pela sua magnificência de ilustrações e cores.
E para além de desenhar bem em termos técnicos há aqui outra coisa que quero destacar: é que em termos de character builiding, isto é, a forma como é imaginado - e depois recriado graficamente - cada personagem, é muito bem conseguida e mais outro dos trunfos de Loisel. Sininho e o seu corpo de ancas largas e grandes seios, que parecem estar sempre em vias de sair da sua apertada e sensual indumentária será, por ventura, o maior apanágio do que acabei de escrever. Mas, também a própria personagem de Peter, de dentes salientes, de Gancho, de tez sempre tão carregada, ou mesmo de personagens mais secundárias como a bela índia Lírio-Tigre, as sereias de fartos seios, Smee ou Pholus, são fantásticas. No total, Loisel cria de forma soberba um conjunto de personagens carismáticas em termos gráficos que não mais esqueceremos depois de feita a leitura desta obra.
Acima de tudo, os desenhos de Loisel são de uma profundidade enorme e únicos na sua forma de ilustrar, tão maravilhosamente, o belo e o feio, o delicado e o grotesco. Além de que outro dos feitos do autor é trazer uma tão grande variedade na concepção das suas personagens que acabam por nunca serem confundidas entre si e são tantas e tão variadas.
Um destaque deve ser dado ainda à forma como os desenhos de Loisel vão evoluindo de álbum para álbum. O primeiro tomo, Londres, apresenta muito menos detalhes nos cenários e na conceção das personagens, do que o último tomo, Destinos. Assim, as expressões de personagens como Gancho, Sininho ou o próprio Peter, vão ficando cada vez mais detalhadas e mais bem concebidas. Além de que a linguagem corporal das personagens, se já era boa no primeiro tomo, fica ainda melhor ao longo da série.
Quanto às capas, embora considere a capa do volume 2, Opikanoba, como bastante fraca e não muito bem conseguida do ponto de vista visual, há que reconhecer que há capas maravilhosas nesta série. Para além das fantásticas capas de Tempestade, de Gancho e de Destinos, onde temos uma Sininho carregada de mistério e erotismo, tenho que referir que a capa de Mãos Vermelhas, em que o autor teve a ousadia de fazer “apenas” um plano de detalhe da cara de Peter, é a mais magnífica e a minha preferida.
Quanto à edição da ASA, estes seis livros têm as características próprias dos livros a que a editora nos tem habituado: capas duras, boa encadernação, bons acabamentos e bom papel. Tal como referi no comparativo que fiz entre as edições da Bertrand e da Booktree, julgo que a edição da ASA está globalmente superior às edições antigas o que também é justificável pelo facto das técnicas de impressão terem, certamente, evoluído nos últimos anos. Estes novos livros têm melhores cores, sem dúvida. As capas também ficaram mais apelativas, sem aquela moldura verde dispensável que os livros antigos tinham. Lamenta-se que não exista nenhum dossier de extras tal como tinha o volume 3, Tempestade, editado pela Booktree. Mas é algo que, tendo em conta que houve uma tentativa de estandardização dos livros e que o preço de cada volume era bastante acessível, se aceita perfeitamente.
Quero aqui demonstrar uma palavra de apreço perante a editora ao ter apostado nesta série. Durante muitos anos, sempre achei que as apostas que a ASA fazia em parceria com o jornal Público eram demasiado sóbrias, apostando em séries muito clássicas e de certa forma algo obsoletas. Muitas delas, recebendo novas edições para títulos que ainda se encontravam no mercado. Mas, desde o ano passado, a editora parece estar a mudar este paradigma. Primeiro, foi a aposta na interessantíssima série RIO que, confesso, me surpreendeu e foi, a meu ver, uma escolha muito acertada, dada a qualidade da obra e o certo desconhecimento da mesma que havia em Portugal. Agora, apostou em Peter Pan, colmatando um buraco editorial que havia em Portugal, pois nunca tinham sido cá editados os volumes 5 e 6. Mil vénias à editora! Pelo sentido de oportunidade, pela boa curadoria no que à qualidade de banda desenhada tem editado e por querer dar um passo em frente, e diferente, em relação aos últimos anos. Parece-me que esta aposta em mini-séries franco-belgas, com histórias finitas e contidas em si mesmas, como disso exemplo são RIO ou este Peter Pan, tem tudo para ser uma boa aposta. É por aqui o caminho certo, ASA.
Por fim, resta-me terminar dizendo que este Peter Pan de Loisel é uma autêntica obra-prima da banda desenhada mundial e é obrigatório numa boa estante de banda desenhada. Não fica nada atrás das igualmente geniais versões original de J.M. Barrie ou da fabulosa adaptação pela Disney. Não é “mais uma adaptação”. Régis Loisel acaba por ser um verdadeiro génio ao serviço da banda desenhada: porque desenha e escreve (ou reescreve) de forma absolutamente magistral. Se não atribuo nota máxima a Peter Pan é apenas porque me parece que não seja uma história verdadeiramente resolvida, como escrevi acima. Ainda assim, está perto da perfeição!
NOTA FINAL (1/10):
9.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Peter Pan #1 - Londres
Autor: Régis Loisel
Editora: ASA
Páginas: 64, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Abril de 2021
Autor: Régis Loisel
Editora: ASA
Páginas: 64, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Abril de 2021
Autor: Régis Loisel
Editora: ASA
Páginas: 64, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Maio de 2021
Autor: Régis Loisel
Editora: ASA
Páginas: 64, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Maio de 2021
Autor: Régis Loisel
Editora: ASA
Páginas: 64, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Junho de 2021
Autor: Régis Loisel
Editora: ASA
Páginas: 64, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Junho de 2021
Infelizmente deixei passar esta colecção. Não parece haver na loja do Público, nem nas cadeias livreiras... Por acaso não sabe como/onde ainda poderei comprar?
ResponderEliminarBom dia. Envie-me, por favor, um email com este pedido para vinheta2020@gmail.com e tentarei ajudá-lo, encaminhando-o à pessoa certa.
EliminarBoa tarde, pode informar -me se ainda é possível adquirir os dois últimos volumes, 5 e 6?
ResponderEliminarBom dia. Envie-me, por favor, um email com este pedido para vinheta2020@gmail.com e tentarei ajudá-lo, encaminhando-o à pessoa certa.
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