A adaptação para banda desenhada do famosíssimo romance Drácula, de Bram Stoker, feita por Georges Bess, já havia sido anunciada pela editora A Seita há alguns meses e chega agora às livrarias. Depois de uma dupla leitura da obra, posso dizer que fiquei maravilhado com este livro!
E aproveito até para começar por aquilo que mais me fascinou neste Drácula: a fantástica, requintada, personalizada, virtuosa, sentida e plena de significados arte ilustrativa de Georges Bess. Convém dizer algo nesse sentido: estou bastante bem familiarizado com o trabalho do autor em séries como Juan Solo ou O Lama Branco. E, embora aprecie o trabalho de Bess em todos os seus livros que conheço, devo dizer que não estava preparado para que Drácula fosse uma experiência visual deste gabarito. Por outras palavras, estava à espera de algo bom mas não tão bom! Sem dúvida, o melhor trabalho do autor que já pude observar. E muito afastado daquele que seja o seu segundo melhor trabalho em qualidade, diga-se. Um novo e superior nível para o autor e, por conseguinte, a sua obra-prima.
Bess utiliza nesta adaptação a preto e branco, um fino traço eloquente que nos mergulha de forma magnífica no ambiente de Drácula. E, como as verdadeiras obras-primas, aqui não parecem existir coisas feitas à pressa ou sem uma razão de ser. E é por isso que em cada página parece existir uma dupla-intenção do autor na forma como dispõe as personagens, como planifica determinada página ou nas mais variadas soluções narrativas gráficas que esgrime orgulhosamente enquanto nos vai surpreendendo de página a página. A força gráfica do álbum é tanta que, às tantas, até parece demais!
Os cenários são magníficos e apresentados com um enorme rigor. As personagens são marcantes e cheias de personalidade. As mulheres são bonitas e misteriosas, os homens são clássicos no estilo e recebem todos uma boa dose de carisma. Até há espaço para uma peculiar e engraçada utilização da imagem de Keith Richards, dos Rollling Stones, para o aspeto físico da personagem de Renfield. E isto já para não falar na caracterização da personagem principal, Drácula, que recebe nesta adaptação a melhor caracterização de todas aquelas que já tive a oportunidade de ver até esta parte. Este Drácula é medonho, misterioso, convidativo, nojento, fantástico, assustador. E Bess consegue passar todos esses sentimentos para o leitor através do seu traço altamente realista. A partir de agora, sempre que ouvir o termo “Drácula” passará a ser a personagem desenhada por Bess a primeira imagem a vir-me ao pensamento. O Gary Oldman que me desculpe.
De salientar, também, é a maneira inspirada e original como Bess decora as suas próprias páginas desconstruindo a própria noção de prancha. Por vezes, encontramos belíssimas ilustrações, hiper-detalhadas que ocupam duas páginas inteiras; noutros casos, encontramos as vinhetas sem delimitação de traços, a fazer lembrar Will Eisner. Por vezes as vinhetas são grandes. Noutros casos são pequenas. Também podem ser retangulares, quadradas ou circulares. Há espaço para tudo! Mas chamo a atenção para o facto do autor não usar toda esta dinâmica e criativade de forma aleatória. Tudo parece obedecer a um grande intuito: o de narrar consistentemente a história e o de ser uma adaptação muito fiel ao texto original de Bram Stoker.
Digna ainda de nota é a maneira inteligente e tecnicamente perfeita como Bess domina o preto e branco, aproveitando espaços negativos para deixar a ilustração respirar ou fazendo maravilhosos efeitos de luz e sombra, que acentuam o ambiente clássico, misterioso e assustador da obra. A utilização de planos de câmara também é diversificada e muito bem doseada.
Portanto, em termos de arte ilustrativa, é verdadeiramente soberbo. Nada aqui falha! Um autêntico festim do bom e do melhor. Mas também na maneira como adapta a história é muito fiel e, por isso, também reveste esta adaptação de um cariz literário maior. Esta adaptação não dá apenas "uma ideia" de como é a história. Não. Conta-nos, isso sim, a história de fio a pavio. Abreviando - claro! - algumas partes mas não deixando cair nada de verdadeiramente importante do ponto de vista do enredo.
O enredo desta obra, esse, é tão conhecido que não me merece grandes palavras mas posso sintetizar rapidamente que nos conta a história de Drácula, que começa este conto no seu castelo na Transilvânia, sendo visitado por Jonathan Harker, um advogado que aí se desloca para a compra de propriedades em Inglaterra, por parte de Drácula. Depois disso, o misterioso e maléfico personagem viaja para Inglaterra onde começa a procurar as suas vítimas para lhes beber o sangue. Sendo uma criatura portadora de poderes sobrenaturais - como a capacidade para adquirir a forma de outros animais, entre muitos outros atributos - este vampiro é um vilão fortíssimo e só um estudo profundo e racional acerca das suas fraquezas, conseguirá conduzi-lo à sua destruição.
Se não considero esta obra perfeita é apenas e só por um facto. É que à medida que começa a busca final e incessante por Drácula, perde-se um pouco da chama de mistério e de terror que envolvia este ser maléfico e as ações deste. E, a partir do momento em que a personagem de Van Helsing vai desvendando os truques e a magia de Drácula, a história vai perdendo um pouco do seu fulgor. A culpa não é de Bess, já que sucede o mesmo no romance origem de Bram Stoker. E, diga-se, é apenas uma opinião minha, muito pessoal. Digamos que acho que se a descoberta de como vencer Drácula fosse feita mais perto do final, a catarse da narrativa seria maior. Assim, temos quase uma metade do livro em que são os bons a perseguir o vilão. Continua a ser bom e interessante mas não tão magnífico, quanto a mim. E mesmo aquela viagem final, quando Drácula foge para a sua terra natal e que é retratada com inúmeras páginas e vinhetas, indicando com detalhe como é que "a equipa dos bons" se dividiu para capturar o vilão é, a meu ver, bastante irrelevante. Embora eu admita que continua a ser magnífico olhar para estas pranchas de Bess. Sim, meus caros. Tudo neste livro é, aliás, digno de uma observação maravilhada, já que o trabalho do ilustrador é perfeito. Mas a minha crítica menos positiva – e que não é assim tão negativa, na verdade – incide mesmo é na forma como na segunda metade do livro (neste e no original, de Bram Stoker) se perde a aura de mistério e de terror, em detrimento do chavão clássico do “bem contra o mal”, e a narrativa se transforma mais em livro de aventura e ação, do que em livro de terror. São opções narrativas e há que respeitá-las. E é o que Bess faz em relação ao texto original de Bram Stoker.
Quanto à edição, temos (mais) um fantástico objeto-livro em mãos. Capa dura, robustez na encadernação, papel de boa qualidade e baço, que é ideal para esta arte a preto e branco. O prefácio de José Pedro Castello Branco também sabe situar bem a obra original e a adaptação da mesma, funcionando como um bom acrescento à leitura. Nota ainda para o lançamento da obra com uma capa exclusiva (dourada) para a livraria online Wook e que também é muito bonita. Sendo este o livro que abre a nova coleção d’A Seita, intitulada Nona Lieratura, e que será dedicada a adaptações para bd de grandes textos literários ou históricos, acho que a editora não poderia começar melhor. Quer na escolha da obra, quer na forma como trata a edição da mesma.
Em conclusão, Drácula é mais um dos lançamentos do ano em Portugal e assume-se como uma obra linda para se ter numa boa estante de banda desenhada. E completamente adequada para oferecer a quem gosta de bd; a quem nem lê muita bd mas gosta de terror; ou, simplesmente, a quem gosta de boas ilustrações. Todo o livro é uma verdadeira orgia de ilustrações maravilhosas, feitas através de uma técnica perfeita e virtuosa de Bess. Esta é a melhor adaptação (incluindo cinema, teatro e banda desenhada) que já tive a oportunidade de ver. Sinceramente, até vou mais longe e digo que, tendo em conta que Bess adapta com tanto requinte e respeito o texto original, até acho mais apetecível ler este livro do que o próprio texto original de Bram Stoker. Fantástico e, até ver, a melhor obra de banda desenhada publicada pel’ A Seita. Parabéns à editora.
NOTA FINAL (1/10):
9.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Drácula
Autor: Georges Bess
Adaptado a partir da obra original de: Bram Stoker
Editora: A Seita
Páginas: 208, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Julho de 2021
A Seita parece seguir a tendência de outras editoras nacionais no lançamento de adaptações de obras de literatura a BD. Esta em particular não a conheço mas pergunto-me o porquê deste título? Os editores terão as suas razões. Pessoalmente gostaria de ter visto o lançamento da adaptação de Mike Mignola do magnífico filme "Drácula" (1992) de Francis Ford Coppola, seja na versão preto/branco ou a cores. De notar que, com as devidas distâncias, a arte de Bess faz lembrar outros 2 magníficos autores que também adaptaram o personagem - os mestres italiano Sergio Toppi (do qual a Levoir editou 1 único álbum, julgo que na 1º série da Novelas Gráficas...) e o americano Al Williamson. Duas boas sugestões para os editores locais...
ResponderEliminarUma questão: a obra foi editada em que tipo de papel e qual a gramagem? este pormenor faz toda a diferença na qualidade da impressão e na reprodução de manchas a cheio e nos pequenos pormenores. Obrigado desde já....
Caro António, obrigado pelo comentário. Penso que o título não poderia ser mais ajustado, tendo em conta o nome da obra. Quanto à questão que coloca, o papel é baço e bastante grosso mas, como não tenho aqui o livro em mãos neste momento, não quero arriscar valores mais concretos.
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