A Ala dos Livros lançou, há pouco mais de um mês, o novo livro de Miguelanxo Prado, intitulado Presas Fáceis - Abutres, que é o segundo volume da série Presas Fáceis, protagonizada pelos agentes Tabares e Sotillo, depois de um primeiro volume já por cá editado pela editora Levoir, numa das suas coleções de Novelas Gráficas lançadas em parceria com o jornal Público.
Se o primeiro volume de Presas Fáceis dava conta de como os idosos podem ser "carne para canhão", num mundo ávido por fraudes económicas que procura retirar de cada indivíduo os poucos euros que restam das suas reformas e poupanças, este segundo volume de Presas Fáceis, Abutres, foca-se no tema das crianças e de como as mesmas são vulneráveis a um mundo onde os predadores - os abutres - estão ao virar da esquina. Importante a reter é que, embora estejamos a falar de uma série, protagonizada pela mesma dupla de agentes, cada livro tem uma história independente e autocontida.
Conhecido pela sua habilidade em criar histórias gráficas que combinam profundidade narrativa com arte expressiva, Prado apresenta-nos uma nova obra que clama pelo perigo das novas tecnologias aliadas à pedofilia.
Assim, e à boa maneira dos livros e filmes policiais, a história deste Presas Fáceis - Abutres arranca praticamente com a morte de uma adolescente, de nome Irina, mal nos dando tempo, em páginas, para que descubramos bem esta personagem. Descobri-la-emos melhor depois, mas ao longo da investigação que a sua morte suscita.
Estranhamente, Irina aparece morta na sua cama. E, ainda por cima, o quarto até estava trancado por dentro. Primeiramente, as autoridades concluem que se tratou de um suicídio, encerrando desta forma o caso. Porém, a Inspetora Olga Tabares e o seu parceiro adjunto Sotillo começam a remexer no caso, pois há algo que aparenta não fazer sentido. Pelo menos, aos seus olhos, já que o chefe de Tabares considera que esta está apenas a perder tempo desnecessário com um caso de simples resolução.
A investigação leva Tabares e Sotillo ao contacto com um tablet que pertencia a Irina e que continha fotos suas íntimas, em que aparece toda nua, bem como uma ligação a um fotógrafo especializado em fotografia erótica. Entretanto, o caso vai-se ramificando cada vez mais, levando a chocantes descobertas que chegam até a causar um certo mal estar no leitor. A pornografia infantil, a sua proliferação pela internet e o consumo involuntário de drogas são temas que surgem nesta história que se vai tornando mais e mais alarmante. Não que isso aconteça devido a elementos gráficos da obra, mas sim por causa do tema pesado e sombrio que é a pedofilia e a ideia de que há muitos agentes ativos - porque até a passividade pode ser uma forma de ação - que nela circulam.
À medida que vamos avançando na leitura, vamos ficando mais "enjoados" com o assunto. E não que Prado instrumentalize o tema de forma a chocar gratuitamente o leitor. Não, nada disso. Torna-se por demais evidente que o autor procura trazer à luz um tema por vezes tabu, para o qual a sociedade gosta de fazer vista grossa, mas que é de extrema relevância e que importa adereçar. Até porque, não esqueçamos, Prado revela-nos, no texto incluído no livro, que a obra não se baseia numa história real, de forma direta e linear, mas reúne, ainda assim, partes de várias histórias reais. O que, repito, se torna arrepiante e deprimente. Não me cabe a mim, num texto de opinião a um livro de banda desenhada, tecer mais comentários ou dissertações sobre a pedofilia ou as motivações dos pedófilos, mas não posso deixar de dizer que ainda é das coisas que, pessoalmente, mais me incomoda, tendo em conta não só a perversidade de tais crimes, como, mais grave ainda, os danos físico-emocionais que persistem nas vítimas - que, relembro, não passam de meras crianças - de tais aberrantes ações.
E mesmo quando fica claro para o leitor quem foi responsável pela morte de Irina, falta ainda aos agentes Tabares e Sotillo provar essa suspeita. Uma coisa é tornar-se óbvio que foi alguém que cometeu um crime, outra coisa é conseguir provar verdadeiramente isso. Aqui, a obra assume um tom real, embora um tanto mais burocrático e processual. Mesmo assim, esta abordagem também permite uma segunda leitura aos intentos do autor, pois revela depois a complexidade do sistema jurídico e profundidade da corrupção, aos mais variados níveis, que assola as sociedades ditas modernas e ocidentais.
Como se trata de uma história de investigação, com alguns plot twists, não quero correr o risco de cometer algum spoiler e, portanto, fico-me por aqui em relação à história.
Sobre a mesma, posso dizer ainda, e por último, que está muito bem congeminada por parte de Miguelanxo Prado. Esta veia policial do autor não é um daqueles talentos superficiais, pois fica bem claro que o autor soube dividir bem o enredo em várias camadas, de forma a gerir bem o interesse do leitor e algumas revelações da história. Tal como se faz nos bons policiais, diga-se. Com efeito, até diria que este livro daria um filme muito coeso e interessante. E a trama e as personagens estão tão bem arquitetadas que temos neste livro um filme pronto a ser filmado. Falta apenas arranjar os atores e depois só será necessário seguir o livro, tal como se fosse um storyboard.
Sem o revelar, posso apenas dizer que achei o final um pouco anticlimático. É claro que isso aproxima a história de verosimilhança, mas afasta-a, quanto a mim, de ser mais impactante ou inolvidável.
O desenho de Prado continua aquilo a que o autor já nos habituou: absolutamente fabuloso! Com o seu traço carregado de "signature style", o autor oferece-nos belíssimos desenhos onde o desfile da beleza do seu traço é uma constante. As expressões faciais, os olhares que tanto contam, a linguagem corporal das personagens, com posturas que parecem captadas diretamente a partir de fotografias, tal não é a sua natureza real, tudo é feito de forma exímia. As cores também assumem uma bela importância, pois permitem criar uma textura cromática que faz com que os desenhos fiquem ainda mais impactantes, superando o preto e branco do anterior Presas Fáceis que, embora já bom, não conseguia ser tão belo quanto este Abutres.
A edição da Ala dos Livros também é extremamente boa. A capa dura baça (e adornada com verniz localizado) e a lombada em tecido fazem deste livro um objeto verdadeiramente requintado, digno e apetecível. No miolo, o papel é brilhante, de boa qualidade, e o trabalho de impressão e encadernação é imaculado. No final da obra há ainda, conforme já referido, uma nota final do autor e uma página com esboços das personagens.
Concluindo, desde há muito que Prado é um dos meus autores preferidos de banda desenhada e este Presas Fáceis - Abutres, mesmo não sendo o seu trabalho que mais me fascinou, é, ainda assim, uma obra de tom demarcadamente policial bastante bem esculpida e arquitetada e, ao mesmo tempo, portadora de desenhos sublimes, como, aliás, é apanágio do autor espanhol.
NOTA FINAL (1/10):
9.0
-/-
Presas Fáceis 2 - Abutres
Autor: Miguelanxo Prado
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 88, a cores
Encadernação: Capa dura, com lombada em tecido
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Maio de 2024
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