Começo por uma afirmação plena de sinceridade: sou um verdadeiro fã dos desenhos de Ricardo Santo. É, aliás, dos meus artistas portugueses preferidos da atualidade. E quando se gosta de algo, seja de uma pintura, de uma música, de um automóvel, de uns sapatos, de uma banda desenhada, da beleza de alguém ou de um simples objeto decorativo, por muito que queiramos dizer o contrário - e mesmo admitindo que há condições objetivas de design de construção que sempre poderemos balizar - a verdade é que há uma grande subjetividade para gostarmos dessas coisas. Para as acharmos bonitas ou agradáveis à (nossa) vista. Gostamos porque… bem, gostamos porque sim. Porque nos identificamos, porque nos diz algo, porque nos toca no fundo, porque nos agrada, porque nos apela. E, bem, os desenhos de Ricardo Santo têm esse efeito em mim. Agradam-me verdadeiramente.
Portanto, ainda antes de ler um livro de Ricardo Santo, de averiguar se a história é marcante ou não, já os seus desenhos me agradaram. Posso arranjar várias explicações para isso - como o estilo “cartoonesco” moderno, com personagens a envergarem uma bela expressividade, ou as influências de uma mistura feliz entre aquilo que gosto de apelidar de o “novo franco-belga” e os comics americanos - mas a verdade é que Ricardo Santo faz “bonecos” de que gosto. Já o fez em Planeta Psicose e em Abandonos e fá-lo novamente – e ainda melhor - neste Boarding Pass que é, sem grande esforço, o melhor livro do autor até agora. E, acredito, um dos melhores livros de BD portuguesa deste ano!
Mas vamos por partes.
Voltando ao início - e já que comecei este texto por falar nos desenhos - posso dizer-vos que em Boarding Pass, Ricardo Santo, parece (ainda) mais inspirado do que em álbuns anteriores. Todas as suas personagens são carismáticas e bem desenhadas, fazendo com que, só por olharmos para elas, possamos identificar características da sua maneira de ser e estar. As mulheres são bonitas (e apetecíveis), os homens têm carisma e os cenários são belos. Há toda uma certa sensualidade nos desenhos do autor que muito me apelam e destaca-se o bom equilíbrio entre "desenho simples" na génese e "desenho detalhado", onde é dada atenção a pormenores, que o autor consegue.
Também as cores são muito belas e vibrantes, acentuando o registo boémio da maioria das cenas com que nos deparamos em Boarding Pass e sendo parte relevante do registo gráfico apelativo de Ricardo Santo. Contudo, devo dizer que algumas das cores - especialmente as das cenas noturnas - se tornam um pouco escuras em demasia. Normalmente, diria que a responsabilidade desta situação poderia ser dividida entre o autor e a qualidade da impressão, mas tendo em conta que é algo que também já senti em Planeta Psicose, publicado por outra editora portuguesa, talvez seja algo que se deva imputar ao autor. Não é que seja uma coisa que faça com que os desenhos fiquem feios ou algo parecido. Nada disso. No entanto, é algo que torna a leitura mais ilegível. Se não lermos o livro com uma boa claridade, é normal que, à luz de um candeeiro de luz tímida, não consigamos captar bem os desenhos do autor. E esta situação fica ainda mais acentuada pelo tamanho das legendas e texto que me parece demasiado pequeno. Em termos estéticos, até gosto, pois acaba por ser uma legendagem que não ocupa em demasia as ilustrações, mas, por outro lado, perde-se em legibilidade. Talvez se a edição fosse num maior formato, isto não se sentisse tanto.
Quanto à história de Boarding Pass, esta centra-se em vários imigrantes que tentam a sua sorte na cidade de Barcelona, local que acolhe tanta gente vinda de fora da cidade e do país - como é, aliás, o caso do próprio autor Ricardo Santo. A história centra-se especialmente – mas não só - em quatro mulheres que formam uma banda de rock feminista e têm, cada uma delas, os seus próprios problemas e dificuldades de subsistência numa cidade onde conseguir uma casa a custos decentes se torna cada vez mais uma miragem. À semelhança do que vamos vivendo em Lisboa, diga-se. A especulação imobiliária, os despejos, as demolições, a ocupação dos edifícios são uma constante e, neste Boarding Pass, essa é a fonte de todos os problemas, fazendo com que um submercado à margem da lei evolua cada vez mais.
Paralelamente, acompanhamos também o percurso de Oumar, natural do Senegal, que ao procurar por uma melhor vida em Barcelona, se vê arrastado para (e por) uma rede criminosa. O destino de Ângela, a guitarrista da banda de rock, acaba por se cruzar com o de Oumar já que este também é músico.
A história adota um estilo slice of life, em que nos vão sendo dado vários capítulos nas vidas das personagens e na forma como as suas vidas acabam, todas elas, por se entrelaçar. Tendo especialmente em conta que estamos a falar de uma cidade grande e multicultural, é perfeitamente natural que os amigos e relacionamentos de cada imigrante comportem pessoas de diversas etnias e credos. E Ricardo Santo é bem sucedido em deixar o leitor sempre ligado a estas personagens com que é fácil criar um relacionamento.
O discurso é-nos dado na primeira pessoa, levando-nos a crer que as vozes das personagens são inspiradas em testemunhos reais. Algo como o autor já havia feito em Abandonos. E sente-se, de certa forma, que a história foi feita ao sabor do vento, sem que, aparentemente, o seu desenvolvimento e, especialmente, o final estivessem já muito bem delineados na mente do autor, que foi explorando caminhos narrativos à medida que avançava na criação desta obra. Isso não é um problema, até porque as personagens são boas, mas denota um argumento quiçá mais frágil.
Quanto a mim, em termos de história, o livro só não é perfeito porque, lá mais para o fim – e não vou adiantar muito, para não fazer spoiler a ninguém – a história se encha, repentinamente, de um tipo de cenas de ação que parecem oriundas do estilo policial. É um género que também me agrada, mas que me pareceu algo forçado nesta história. Percebo que foi uma forma para o autor surpreender o leitor e explorar algo mais dinâmico, mas parece-me que o todo teria funcionado melhor, obtendo mais verosimilhança, se o autor se tivesse mantido no registo mais slice of life, em vez desta opção por um híbrido entre esse género e o “policial de ação”. Se é que lhe posso chamar isso. Não é que estrague a obra minimamente, atenção, mas simplesmente a afasta de ser ainda melhor. Mesmo assim, repito, é, até agora, uma das melhores bandas desenhadas portuguesas do ano e, sem dúvida, o melhor livro de Ricardo Santo!
A edição d’A Seita e da Comic Heart está bem conseguida, apresentando capa dura baça, bom papel baço no miolo e uma boa impressão e encadernação. No final, há um breve caderno de extras com duas páginas, onde nos são dados esboços e fotografias que, certamente, serviram como mapeamento gráfico ao nível de cenários. O grafismo do livro também está muito agradável. Repito que, pelas razões acima enumeradas, considero que este livro merecia um formato ligeiramente maior e cores ligeiramente mais claras.
Nota positiva para a capa, belissimamente ilustrada pelo autor e que faz bom uso de uma ilustração dupla, que acaba por representar um excelente cartão de visita para a obra.
Se há livros que, por causa da sua boa capa, chamariam a minha atenção numa loja, este é um bom exemplo disso. E espero que isso também aconteça a muitas mais pessoas que deambulem pelas livrarias.
Como sempre digo: a capa, contracapa e lombada são as embalagens dos livros. Se forem bonitas, mais possibilidade tem esse livro de ser comprado.
Em suma, Boarding Pass confirma o enorme potencial que existe em Ricardo Santo para ser um autor incontornável na banda desenhada portuguesa.
Mesmo - e por pequenas coisas - sem ser perfeito, é das melhores bandas desenhadas portuguesas que li em 2024. Ricardo Santo já não é uma revelação, mas antes a confirmação de um autor nacional que todos têm de conhecer!
NOTA FINAL (1/10):
9.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Boarding Pass
Autor: Ricardo Santo
Editoras: A Seita e Comic Heart
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Maio de 2024
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