Depois de Estes Dias, a primeira obra a solo de Bernardo Majer, ter conquistado amplamente a crítica nacional, bem como os leitores portugueses, ou não tivesse sido a obra vencedora dos Prémios de Banda Desenhada da Amadora, Bernardo Majer não perdeu muito tempo antes de lançar um novo livro. E felizmente que assim o foi!
A sua mais recente obra, Espiga, lançada no último Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, conta com edição da Polvo e volta a dar-nos uma narrativa em estilo slice of life, em que somos mergulhados na vida quotidiana de uma personagem - ou, neste caso, de duas - sem que haja grande base introdutória ou, sequer, conclusiva. Como se o leitor fosse uma mosca que, deambulando pelo ar, fosse pousar ao parapeito da janela da casa de uma qualquer pessoa e a observasse durante algum tempo até que, mais tarde, seguisse viagem voando para um outro sítio.
Em Espiga, não temos um conjunto de histórias independentes como tivemos em Estes Dias. Temos duas histórias aparentemente independentes, mas que acabam por se entrecruzar. Mesmo assim, acho que há semelhanças suficientes entre as duas obras, quer ao nível de argumento, quer ao nível de ilustração, para ser quase uma garantia que quem apreciou Estes Dias também vai gostar de Espiga.
Começamos por acompanhar Abel, que é um autor que, viajando para um festival literário em Bolonha, para a apresentação do seu livro, acaba por travar conhecimento com outra autora, Laura. Embora Abel tenha um relacionamento amoroso com Teresa, que não o acompanha nesta viagem, sente a sua relação a esmorecer cada vez mais. Talvez porque, como acontece com muitos casais, um e outro parecem estar em fases diferentes da vida. Com interesses, vontades e objetivos que já não são tão comuns como, no início da sua relação, ambos poderiam ter esperado que fossem. E com isso vem o impasse típico: será que devemos sucumbir aos desejos e objetivos da outra pessoa, deixando-nos levar ao sabor da (sua) corrente? Será isso o melhor comportamento para contribuirmos positivamente para uma relação amorosa?
Enquanto Teresa quer comprar uma casa e dar o "próximo passo" na relação, Abel não parece ter foco nesse objetivo. E, a par disso, também sofre de insónias. Possivelmente, por uma sensação de desconforto latente.
O livro avança, então, até ao final da primeira parte e, a partir daí, o enfoque passa a ser na personagem de Laura. No seu percurso pessoal. Laura tem uma relação amorosa com Benjamim, mas esta não é bem um grande romance… é mais uma "amizade colorida". Não são bem namorados, mas também não são bem amigos. A sua relação mantém-se apenas à superfície, trazendo consigo, claro, uma certa felicidade, mas uma felicidade que é apenas e só isso mesmo: superficial. E será esse tipo de relação que nos deixa verdadeiramente completos e realizados?
A vida, por muito boa que seja, traz sempre consigo uma boa dose de coisas menos boas, menos agradáveis, menos positivas. Tal como um arranjo floral que, para além de ter as flores, também tem a verdura e as espigas. As flores até podem ser a coisa que no arranjo floral mais recebe destaque para cativar a atenção do cliente, mas o que é certo é que nunca teremos apenas as flores. Como canta Rui Veloso, em mais uma bela letra de Carlos Tê, “todos temos um lado lunar” e é, também, sobre isso que versa este Espiga. Todos nós somos belos arranjos florais mas que, lá mais para dentro, de forma mais oculta, também temos verdura e espiga. Coisas que não sendo forçosamente horríveis - afinal de contas, se todos as temos, devíamos saber aceitá-las melhor nos outros ou até mesmo em nós próprios, não? - tiram algum do encanto (superficial) com que observamos os outros à nossa volta e com que nos deixamos observar.
Dito assim, Espiga pode parecer uma obra desencantada ou pessimista mas, hey!, esta foi apenas a minha interpretação. Bernardo Majer é neutro e lato o suficiente, para "passar a bola" ao leitor e dizer-lhe: “faz o que quiseres com estas fotografias de toda uma geração que não tirei com uma lente fotográfica, mas com papel e lápis, através de pranchas e vinhetas".
A pecar em alguma coisa - e se é que isto se pode considerar como "pecado" - Espiga (e também Estes Dias, já agora) só peca no facto de os relatos do autor serem sempre muito latos e neutrais. Não há uma ajuda à reflexão do leitor. Essa, a reflexão, fica ao critério de cada um. Se as histórias de Bernardo Majer nos revelam uma aptidão escondida do autor, essa não será a de filósofo, de sociólogo ou sequer de um teórico… essa aptidão é a de fotógrafo. Majer fotografa a realidade millennial através das suas breves histórias em banda desenhada. Sem julgamentos, sem conclusões, sem teorias, ficando, depois, a tarefa de interpretar esses retratos da sociedade ao critério e olhar de cada um.
Em termos de desenho, o autor mantém o mesmo registo de Estes Dias, embora o seu traço tenha um aspeto diferente, com as linhas a serem menos claras e nítidas, parecendo ter sido feitas com lápis de cera. Algo semelhante ao que o autor também nos deu recentemente no seu Sermão de Santo António aos Peixes, editado pela Levoir. Pessoalmente, prefiro o traço mais limpo e conciso que o autor utilizou em Estes Dias, mas também reconheço que esta nova opção estilística do autor lhe dá, quiçá, mais singularidade e originalidade. Trata-se, portanto, de uma questão de mero gosto pessoal, porque o que é certo é que Bernardo Majer continua a dar-nos um desenho personalizado, moderno e que se coaduna perfeitamente com o tipo de histórias aqui presentes.
A edição da Polvo é em capa dura baça, com papel brilhante de boa qualidade no miolo do livro. O trabalho é bom, se bem que me pareceu haver uma certa diferença entre os tons de amarelo apresentados nas páginas promocionais e os tons de amarelo das páginas do livro.
Concluindo, Bernardo Majer sedimenta, pois, com este Espiga, a sua "voz de autor", ficando bem patente que o seu trabalho é fruto de um tempo e de um espaço próprio e que - não só por isso, mas também por isso - se destina especialmente para essas mesmas pessoas suas contemporâneas. É "O escritor" millennial e para os millennials - mas não só, claro está - trazendo nas suas histórias as preocupações, as vivências e as dores de crescimento que todos os millennials têm - e que nos quais eu também me incluo. Talvez por isso, acredito que nem toda a gente consiga, ou saiba, apreciar convenientemente as suas histórias. Mas quem o faz, tem em Espiga um bom reflexo de toda uma geração em várias páginas de banda desenhada.
NOTA FINAL (1/10):
8.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Eliminar"... Espiga, a sua "voz de autor", ficando bem patente que o seu trabalho é fruto de um tempo e de um espaço próprio e que - não só por isso, mas também por isso - se destina especialmente para essas mesmas pessoas suas contemporâneas. É "O escritor" millennial e para os millennials - mas não só, claro está - trazendo nas suas histórias as preocupações, as vivências e as dores de crescimento que todos os millennials têm - e que nos quais eu também me incluo..."
ResponderEliminarNão poderia discordar mais e acho que este paragrafo é muito mau para a divulgação do livro. Este livro é um livro sobre a vida e ela é comum a todos nós sejamos da geração X, Boomer, Millenials, etc.
Adorei os livros do Bernardo e não deveria?
Na minha opinião o Bernardo está a seguir a corrente Norte Americana dos autores que se consideram cartonistas. Sendo alguns deles o Adrien Tomine, Daniel Clowes, Nick Dmarso, Chester Brown, Seth e a Tillie Walden.
Se a Tillie tem um livro sobre quando aprendeu a patinar, o Tomine tem um livro sobre as dificuldades que enfrentou para ser cartonista e o Chester Brown tem um livro de como substituiu a namorada por prostitutas. E depois têm obras não focadas em si, como Ghost World para citar uma das mais conhecidas.
São vidas. E as vidas normalmente são fascinantes nas mãos de quem sabe contar histórias.
Quando ao X, Boomer e a Geração XPTO são formas de dizer a uma pessoa que ela é especial porque é da geração da moda e é bom para o departamento de marketing que não percebe nada do conteúdo e só quer atirar o produto certo à faixa estária certa.
Não façam isso neste mercado ou o melhor é começar a dizer que toda a BD é para Boomers, comics para a X e manga para a Z.
E se forem Westerns, Thorgals e afins se calhar o melhor é vender aos utentes do cemitério mais próximo. O pior é que esse não conseguem ler por falta de luz (isto foi uma piada).
Ri-me com o que disseste sobre o western, caro Fernando. Eheheheh!
EliminarPois, acho que te percebo.
E, se calhar, estou a ser redutor quando digo que a obra é para millenials. Mas, lá está... tendo em conta que é um reflexo objetivo, direto e bem explanado do que é ser-se millennial.... acho que também não estou de todo errado. Obviamente, também é para todas as outras gerações. Mais que não seja, para que estas tomem contacto com a existência dos millennials.
Dito isto, compreendo-te e não discordo do que escreveste.
Ainda bem que entendeste porque eu estava a brincar.
EliminarNo Brasil dizem que um tipo gosta de BD se começar a ler Tex é porque está com os dias contados.
A minha questão é que infelizmente e isso ninguém pode evitar, as pessoas compartimentam muito os gostos e penso que a idade é um deles. Compreendo a questão que disseste, mas é tão bom ler algo sobre uma coisa que não tem nada a ver connosco.
As séries como o Árabe do Futuro, por exemplo são o reflexo disso.
Vidas são vidas. É preciso de ter é talento para as contar de forma interessante.
Nem mais! Estou 100% de acordo!
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