Estes Dias marca a estreia de Bernardo Majer enquanto autor completo de banda desenhada, assegurando o argumento e as ilustrações. E, diga-se em abono da verdade, que bela estreia é!
Depois de ter sido o ilustrador de Toutinegra, com argumento de André Oliveira, e de mais algumas aventuras em histórias curtas ou enquanto colorista, Este Dias representará para Bernardo Majer a sua grande afirmação enquanto autor de banda desenhada.
O livro é uma antologia com seis histórias independentes entre si, mas que, de algum modo, têm em comum o facto de serem pequenos e breves retalhos da vida contemporânea. Da exata maneira que ela é: quotidiana, genuína, simples e, por oposição, totalmente complexa.
Do género slice of life, Bernardo oferece-nos, em cada uma destas seis histórias, um pouco da vida de alguma personagem, sendo que cada história tem como título um mês do ano, começando com Julho e terminando com Dezembro. Não quer dizer que haja uma conclusão ou um fim para cada uma destas histórias. Mas também não quer dizer que isso não exista. Logicamente, em cada história, que é constituída por apenas algumas páginas, não temos aquela narrativa convencional, de introdução, desenvolvimento e conclusão, mas antes um breve vislumbre a vivências alheias. Como se nos fosse dada a hipótese de bisbilhotar um pouco da vida de um outro alguém.
Bernardo Majer parece saber ambientar-se muito bem neste género já que, na minha opinião, cada uma destas histórias funciona de forma natural, sem parecer que o autor nos está a querer, permitam-me a expressão, “martelar” à força alguma ideia. Pelo contrário, ficamos mais com a ideia que o autor soube, qual fotógrafo da realidade, captar bem a essência de um conjunto de personagens verosímeis do nosso dia-a-dia, optando apenas por nos convidar a conhecer a sua realidade. A sua caminhada. E as dores inerentes à mesma.
O intuito do autor não estará, portanto, em contar-nos uma história, mas antes em oferecer-nos um convite à reflexão por observação. Para que nos outros nos vejamos a nós mesmos. Como se de um espelho se tratasse. E é por isso que, mesmo sendo histórias com personagens que aparentemente não têm qualquer ligação entre si, temos, por oposição, o construto de uma personagem maior que encaixa características e comportamentos dos homens e mulheres deste milénio. Como se o conjunto de todas as personagens permitissem que formássemos uma personagem-maior, assente na contemporaneidade. Todas as personagens se mostram, por isso, absortas nas suas vidas, quase sempre mundanas, mas, ao mesmo tempo, únicas e singulares. Mesmo que essa singularidade esteja envolta na matriz contemporânea da vida. Lá está, há aqui uma dicotomia. Por um lado, somos todos muito únicos e originais pois "ninguém é igual a ninguém". Por outro lado, somos todos muito mais parecidos uns com os outros do que aquilo que gostamos de admitir. Os obstáculos, em maior ou menor número, acabam por ser muito parecidos.
Portanto, Bernardo Majer não está interessado em dar-nos as respostas nestas suas seis histórias. Propõe-nos apenas alguns caminhos de interpretação. Mas, depois, fica à nossa consideração o caminho de interpretação que escolhemos.
Temas como a entrada no mercado de trabalho e todas os desafios inerentes a isso. Um divórcio visto pelos dois filhos adolescentes. As relações amorosas que pareciam destinadas a acontecer desde o início, mas que, por circunstâncias naturais da vida, acabaram por não acontecer. As relações que têm que terminar levando consigo uma enorme parte de nós. Ou, até mesmo, os momentos de auto-reflexão que todos nós fazemos - que por vezes até nos deixam em baixo - e que acabam por ocorrer na mais inesperada situação: numa passagem de ano, por exemplo.
Enfim, falando um pouco de cada uma das histórias, mas tendo o cuidado de não falar em demasia das mesmas, estas são as “fatias” que Bernardo Majer nos convida a ruminar. O discurso quase sempre tem monólogo/narração onde estará a maior profundidade da reflexão que nos é dada, enquanto que os diálogos muito verosímeis entre personagens nos revelam conversas de circunstância. Aquelas que passamos mais tempo a fazer.
Em termos de ilustração, a obra também parece ser de afirmação para o autor já que, a meu ver, Bernardo Majer consegue aqui um estilo de ilustração personalizado e extremamente eficaz. Não serão desenhos que nos deixarão de boca aberta devido ao seu virtuosismo técnico, mas também não me parece que seria esse o objetivo do autor com aquilo que nos procura oferecer.
Com efeito, a ilustração é moderna, adulta, bela e não falha, em momento algum, no momento de nos dar a sentir algo. A narração é, pois por isso, muito fluída e direta. Há pequenas variações no estilo de desenho ao longo das seis histórias, em que o traço aparece mais ou menos carregado, dando a ideia que há um processo digital, maior ou menor, na forma como a arte final foi preparada, mas, mesmo assim, a harmonia gráfica é mantida de uma história para outra.
Outra questão a notar é que há sempre uma paleta de cores que vai variando ao longo das histórias. Ou é o azul que predomina, ou o amarelo, ou o verde ou o próprio preto. Isso dá uma sensação de mudança suave. Parece-me que as escolhas das cores foram feitas de modo algo aleatório, mas foi uma boa escolha diferenciadora por parte do autor.
A bela capa – e, já agora, bela contracapa, também – deste livro está belíssima. Belas cores, belo arranjo gráfico, bela ilustração. Tudo feito de forma muito harmoniosa e elegante e que espelha bem o próprio conteúdo da obra. Coisa que nem todas as capas de livros de banda desenhada conseguem fazer.
A edição da Polvo é em capa dura, com bom papel, com a quantidade certa de brilho. Boa encadernação e boa impressão, também. Tudo bem feito, portanto.
Em suma, Estes Dias é uma bela surpresa que me deixou muito satisfeito. Com um registo muito próprio, despretensioso, até, na forma como nos apresenta esta antologia de seis histórias baseadas nos dramas do quotidiano que inundam todas as nossas vidas – quer o admitamos ou não – Bernardo Majer acerta em cheio na forma, no ambiente, nos diálogos e no registo gráfico. Não tenho dúvidas que este é um dos melhores livros de banda desenhada portuguesa do ano! Obrigatório conhecer.
NOTA FINAL (1/10):
8.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Estes Dias
Autor: Bernardo Majer
Editora: Polvo
Páginas: 80, a preto e branco e a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 24,5 x 17,5 cm
Lançamento: Junho de 2022
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