Se há coisas de que gosto é de começar a leitura de uma banda desenhada sem ter qualquer ideia da obra que vou ler e sem conhecer o(s) autor(es). Partir às escuras sem qualquer referência, portanto. E olhem que, cada vez mais, isso é uma coisa difícil de acontecer. Porque, mesmo nos casos em que não conheço a obra, acabo quase sempre por obter, de forma voluntária ou involuntária, informações – mesmo que básicas – sobre o livro em questão ou sobre os autores.
Mas com este O Mergulho, que a Ala dos Livros acaba de editar, aconteceu-me essa tal sensação de que gosto: nada sabia sobre a obra e sobre os seus autores. E, por esse motivo, este O Mergulho constituiu para mim um autêntico “mergulho” no desconhecido. Nem sempre o resultado destas obras totalmente desconhecidas é fantástico, mas, neste caso, posso dizer que esta nova aposta da Ala dos Livros foi uma bela surpresa! O que faz até – e permitam-me falar sobre o tema – com que haja uma crescente e justa confiança dos leitores nas propostas que a Ala dos Livros vai trazendo. E isto não se conquista só "porque sim"… conquista-se com um bom e continuado trabalho.
O Mergulho conta-nos a história de um grupo de idosos que se vê forçado a viver a última parte das suas vidas numa residência sénior. Uma história tão comum para tantas pessoas em todo o mundo. No entanto, é uma temática nem sempre abordada em filmes, livros ou banda desenhada. Quer dizer, nos últimos anos, no caso da bd em específico, isso até tem sido mudado. De facto, as histórias que envolvem idosos têm até sido cada vez mais abordadas na banda desenhada, com destaque para a bd de origem espanhola. Isso foi feito, por exemplo, em Presas Fáceis, de Miguelanxo Prado (Levoir) ou em Como Viaja a Água, de Juan Díaz Canales (Arte de Autor).
No entanto, é em Rugas, de Paco Roca (Levoir) que temos uma história mais próxima deste O Mergulho que, curiosamente, também é fruto de um autor espanhol (Víctor Pinel) que aqui colabora com a autora francesa Séverine Vidal. E, tal como em Rugas, também aqui somos introduzidos ao dia-a-dia de idosos que vivem numa residência sénior. O meu intuito com estas referências não é fazer uma comparação direta entre obras, mas sim chamar a atenção para o facto da terceira idade estar a receber mais destaque por parte dos argumentistas espanhóis. E isso é algo positivo, diria.
A protagonista deste O Mergulho é Yvonne que, com 80 anos, fecha pela última vez as portas da sua casa para rumar a uma residência para a terceira idade. Naquela casa havia passado quarenta anos da sua vida, tendo tido um casamento feliz, vários filhos e vários netos. Muitas memórias, muitas vivências. Naturalmente, Yvonne não parece, portanto, muito feliz com a ideia de rumar a um lar para idosos. Mais que não seja porque essa própria mudança a relembra do simples facto de ela estar cada vez mais próxima do fim. Do mergulho no vazio.
Com efeito, sente bastante dificuldade em adaptar-se a esta nova vida, não parecendo nutrir qualquer vontade de ali estar. Mas o tempo vai passando e acaba por ali fazer novos amigos e, até mesmo, encontrar uma nova paixão amorosa. O seu maior receio é que as suas memórias comecem a fugir da sua mente.
O Mergulho coloca em perspetiva a última parte da vida dos seres humanos (que pode demorar 5, 10, 20 ou 30 anos, conforme a resistência da pessoa) e fá-lo sem complacências. Da maneira que é. Uma fase da vida triste, solitária, melancólica, nostálgica e com a sensação - sempre presente - que se está a mergulhar no fim dos dias. Que a morte espreita à porta. Se isto é verdadeiramente drástico e profundamente devastador, posso dizer-vos que O Mergulho não é apenas um livro triste. Ao invés, mostra-nos (também) um raio de luz possível, uma saída, uma forma de encarar com alegria a vida, esteja ela em que fase estiver.
Gostei do facto de não se tentar cair nos lugares comuns do “o que interessa é a idade mental” e bla bla bla. Pelo contrário até, Séverine Vidal apresenta-nos um conjunto de personagens que não tenta enganar a velhice, mas, simplesmente, viver o que falta viver. Seja através de um jogo de tabuleiro, de uma piada ou de uma desobediência às rígidas regras do Lar. Seja até através de um novo relacionamento amoroso. Tudo é bom desde que nos ocupe e nos deixe feliz. Ou se não nos deixar feliz, pelo menos que nos deixe fora da infelicidade - não é exatamente a mesma coisa, mas quando estamos nessa última etapa da vida, é bem provável que seja o suficiente.
Os desenhos de Victor Pinel enquadram-se muito bem no relato que nos é dado pela argumentista. Com um traço dinâmico que não é muito pormenorizado mas que é altamente eficiente nas emoções que passa, o autor oferece-nos um desenho que me remeteu para um estilo bastante franco-belga, que me deixou muito agradado. É daqueles tipos de ilustração em que me basta olhar para uma só vinheta e consigo, em 20 segundos dizer que gosto.
Gostei particularmente da opção do(s) autor(es) em termos vários desenhos onde vemos as personagens nuas. Por vezes dizemos que a nudez em determinada banda desenhada é gratuita e que não acrescenta nada de relevante. Mas, neste caso, a nudez de corpos idosos assume uma importância do espectro narrativo, pois não me parece que esta escolha dos autores tenha sido tomada com o propósito de chocar ou de desagradar os nossos olhos, tão habituados a imagens bonitas e comerciais da nudez. Pelo contrário, torna-se claro que o intuito dos autores é o de tratar a velhice de forma crua, mas também com a própria dignidade e transparência que a mesma também merece. Lá porque a nudez é gorda, velha ou imperfeita na sua perfeição única, também merece ser retratada, não?
A planificação também procura ser bastante dinâmica, destacando-se as ilustrações que ocupam uma só página e onde nos é oferecida uma qualquer reflexão de Yvonne. Estas são páginas de fortes e profundos significados que ficam gravadas na nossa retina já depois de terminada a leitura.
Acredito que certos aspetos do argumento – ou mesmo o próprio final da obra – poderiam ter tido uma resolução (ainda) mais profunda, mas compreendo que o objetivo dos autores não era um arrebatamento total dos leitores, mas apenas a de proporcionarem uma reflexão agridoce. E nisso, são muito bem-sucedidos.
A edição da Ala dos Livros é expetavelmente muito bem conseguida. Capa dura – com os detalhes da água e das algas a verniz – bom papel couché, boa encadernação e boa impressão. Tudo bem feito como é apanágio da editora.
Sintetizando, este é um livro bastante emotivo que ora nos faz temer pela nossa velhice (bem como pela dos que nos rodeiam), deixando-nos um travo de tristeza no âmago, ora nos faz sorrir com a simplicidade e ternura com que é possível alegrar todo e qualquer idoso. Uma mensagem profundamente humana, tratada com muita sensibilidade, ternura e delicadeza, que merece ser lida. O Mergulho acabou por ser uma ótima surpresa para mim.
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Mergulho
Autores: Séverine Vidal e Víctor Pinel
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 220 x 295 mm
Lançamento: Junho de 2022
boa tarde, existe alguma maneira de conseguir ver o teu top total (de sempre)? em vez de apenas o top 10? :D
ResponderEliminarOlá, Luís! Obrigado pelo comentário! Essa é, de facto, uma questão que me é colocada muitas vezes. E à qual eu tento fugir sempre. Não é por ter receio de responder. É só porque acho que se responder levianamente o mais provável é que a minha resposta não seja totalmente representativa dos meus gostos. Mas prometo que tentarei - em algum dia - fazer o meu TOP TOTAL de sempre! :) Um abraço
Eliminareu dizia das que vais publicando. automaticamente haver um top com todas as analises, como tens do 10 mas com todas.
EliminarAh, ok. Não tinha percebido. Mas, na verdade, já há dois tops na barra do lado direito do blog: 1) o top 10 dos melhores do ano e 2) o top 10 dos melhores que já foram analisados no blog até agora.
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