Depois de alguns meses sem que a parceria da ASA e do Público nos trouxesse nova banda desenhada eis que, há cerca de um mês, nos chegou a série U-Boot, de cariz bélico (mas futurista, também), da autoria do belga Jean-Yves Delitte.
Posso dizer que a aposta me surpreendeu por ser algo - quer o autor, quer a série - que eu desconhecia totalmente. Depois de feita a leitura conjunta dos quatro volumes que compõem a série – e que foram lançados com o belo preço de 10,90€ cada volume - numa altura em que os preços dos livros em Portugal parecem estar a atingir máximos históricos - posso dizer que U-Boot, mesmo estando longe da qualidade das recentes séries da editora ASA Peter Pan, Long John Silver ou até Rio, é, ainda assim, uma bela aposta, que vale a pena conhecer, e que, acima de tudo, consegue surpreender o leitor. E, convenhamos, é muito melhor do que Operação Overlord, a mais recente série bélica que a ASA tinha lançado.
Até porque, convenhamos, a premissa é bastante audaz e original, pois trata-se de uma série que é histórico-bélica, mas que, ao mesmo tempo, também é uma distopia futurista. E, como se isso já não fosse suficiente, o estilo da narração ainda nos é dado como se fosse um thriller, carregado de conspiração, mistério e segredos por desvendar. Proposta audaz, há que reconhecer!
Assim, a série passa-se em três tempos: o primeiro decorre em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, quando um submarino alemão faz uma viagem, não de guerra, mas de transporte, até à Argentina com o intuito de transportar um eminente oficial das SS, que se apresenta com o nome de Heinrich Himmel, e umas caixas com uma carga ultra-secreta. Mas, subitamente, a tripulação do submarino começa a aparecer assassinada. Por quem e porquê?
No segundo tempo da história, que decorre em 1951, acompanhamos uma expedição de cartógrafos ingleses na Amazónia, que acaba por descobrir um submarino alemão da Segunda Guerra Mundial abandonado mas que, incrivelmente, ainda contava com um sobrevivente no seu interior. Como terá o submarino ido parar a um sítio tão inusitado e remoto como a floresta amazónica?
No terceiro tempo da história, que se passa no futuro, ente 2040 e 2059, em cidades como Veneza, Nova Iorque ou Zurique, uma onda de assassinatos, feitos por uma misteriosa mulher, Jude, está bastante ligada a vários crimes financeiros que uma gigante corporação vai praticando por esse mundo fora. O que terão estes factos a ver com o submarino?
Algo que rapidamente salta à vista em U-Boot é a dinâmica narrativa que Delitte nos traz, saltitando constantemente de uma época para outra, enquanto vai desvendando, aos poucos, a história. Chega a acontecer que o faça de prancha para prancha. Isto começa por funcionar bem, pois aumenta o clima de mistério e dá-nos inúmeras perguntas que ficam sem resposta, prendendo-nos à narrativa. Com efeito, acaba por ser algo desafiante para o leitor pois fará com que este tente começar a formular possíveis respostas para essas perguntas. Por outro lado, como é algo que o autor usa (e abusa), não refreando de o fazer até à última página do último volume, também faz com que a leitura seja demasiadamente "remendada" e não seja tão clara como muitos leitores certamente gostariam. Do meu ponto de vista, acho que o exercício é bem conseguido, mas, talvez a partir do terceiro volume, a história pudesse seguir um ritmo mais escorreito. Por outras palavras, gostei desta característica narrativa, mas acho que foi utilizada, por ventura, em demasia.
A história reserva-nos várias surpresas que vão sendo dadas a conta-gotas e onde os temas a envolver os nazis são diversos: desde a forma como muitos oficiais alemães, prevendo o fim da guerra e consequente derrota da Alemanha, tentaram fugir para a América Latina – e não só – tentando apagar o rasto dos seus feitos; até à forma como obras de arte foram saqueadas pelos mesmos; e culminando em sonhos lunáticos de imortalidade por parte de algumas mentes retorcidas alemãs. Tudo isto está presente e ainda se lhe junta o comprometimento de várias empresas multinacionais que aparam e protegem interesses nefastos de antigos alemães proeminentes.
No final, o autor consegue fechar bem a história, dando as respostas necessárias à compreensão das inúmeras questões que estavam por resolver, mas não o faz de forma magistral. De facto, até fiquei com uma certa sensação de vazio no final da história. Sim, as repostas foram dadas, mas o que fazer com elas?
A meu ver – e isto é uma opinião muito pessoal – talvez a história tivesse funcionado melhor se o autor se tivesse concentrado apenas e só nos acontecimentos de 1945 e nos de 1951, descartando a parte futurista da obra. E não é que a mesma seja má, mas constitui a parte mais maçuda de ler, quanto a mim. Less is more, como dizem muitos. Mas, lá está, isso também tiraria a tal originalidade, de uma história que acontece no passado e no futuro, que sustenta este U-Boot. Aceita-se a escolha do autor, portanto.
Em termos de ilustração, Delitte dá boas cartas na forma como consegue ilustrar de forma eficiente as diferentes épocas aqui retratadas. Tendo em conta que o autor é, também, o pintor oficial da Marinha Belga, não é surpresa que se sinta como "peixe na água" a ilustrar o mar, os submarinos, os navios e tudo o que tenha que ver com o universo marítimo. E fá-lo, portanto, muito bem e com belo rigor. Também em matéria do desenho das aeronaves, o trabalho do autor é muito bom.
Não fiquei tão bem impressionado com o desenho das personagens, porém. É decente, claro, mas as personagens apresentam demasiadas parecenças entre si, levando-nos a confundi-las e, consequentemente, a não ter uma experiência tão fluída de leitura. Além de que, as expressões faciais e até alguma da anatomia das faces deixe, por vezes, algo a desejar. Não apreciei também a forma, demasiado “photoshopada” como o autor coloca os céus nos cenários.
Mas, tirando estas nuances, que impedem a obra de chegar a um nível mais cimeiro em termos de qualidade, acho que é justo dizer que esta série apresenta boas ilustrações que, por vezes, até conseguem ser espetaculares. Estou a lembrar-me, especialmente, das ilustrações cujas vinhetas ocupam duas páginas e que demonstram, quase sempre, veículos (aviões, submarinos ou barcos) em grande estilo. Aí, nesses casos, Delitte brilha a sério.
O processo de cores também está bem conseguido, especialmente se tivermos em conta que há três épocas diferentes a colorir, com cenários bastante díspares entre si. Nesse ponto, as coisas estão bastante bem feitas.
Não percebo o porquê do autor ter optado por quatro capas em que não se vê mais nada além do submarino. Não é que as ilustrações - especialmente a do primeiro tomo - não sejam belas ou bem executadas. Mas acho que, do ponto de vista de apelo comercial, são uma má jogada por parte do autor. Até porque, olhando de relance para os livros numa loja ou livraria, é mais provável que um leitor incauto fique com a ideia de que se trata de uma coleção sobre submarinos do que, propriamente, uma banda desenhada. E havia tanto para pegar para possíveis capas: o oficial das SS, o lado futurista da história, a personagem feminina Jude, entre tantas outras coisas. Compreendo que o autor se sinta bem a ilustrar submarinos mas acho que a sua opção não foi a mais bem pensada.
A edição da ASA é boa, apresentando capas duras, bom papel - com a quantidade certa de brilho - boa encadernação e boa impressão. E não esqueçamos o bom preço de 10,90€ para cada um dos volumes. Não costumo falar em legendagem exceptuando os casos em que ela me faz confusão. E tenho que conceder que o tipo de letra escolhido para esta legendagem não foi o mais feliz pois, por vezes, é de difícil leitura, especialmente ao nível da acentuação e pelo facto das palavras ficarem algo “encavalitadas” umas nas outras. Não é, também, um caso extremo ou algo que estrague a leitura de forma abrupta. Simplesmente, poderia ter sido mais bem acautelado pela editora.
Em suma, esta é uma boa aposta da ASA. U-Boot convence e assume-se como uma proposta apelativa devido ao seu intrincado jogo de épocas – por vezes demasiado intrincado, reconheço - que acaba por nos proporcionar uma leitura original e, até certo, ponto, refrescante.
NOTA FINAL (1/10):
7.4
-/-
U-Boot #1 - Doutor Mengel
Autor: Jean-Yves Delitte
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 240 x 320 mm
Lançamento: Junho de 2022
Autor: Jean-Yves Delitte
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 240 x 320 mm
Lançamento: Julho de 2022
Autor: Jean-Yves Delitte
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 240 x 320 mm
Lançamento: Julho de 2022
Autor: Jean-Yves Delitte
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 240 x 320 mm
Lançamento: Julho de 2022
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