Antonio Altarriba é para mim sinónimo de belas histórias! E, portanto, posso dizer que é um argumentista que muito admiro, pois, todos os livros da sua autoria que li até agora, nomeadamente, A Arte de Voar, Asa Quebrada, Eu, Assassino ou Eu, Louco, me deram sempre uma bela experiência de leitura. Todos esses livros contêm um belo argumento, com um texto muito bem traçado e sempre eloquente nos momentos certos.
Mas, se A Arte de Voar e Asa Quebrada eram histórias biográficas, relativamente ao passado do pai e da mãe de Altarriba, com o Trilogia “Eu”, o autor tentou algo mais audaz do ponto de vista do argumento, trazendo-nos uma certa crítica social à sociedade atual espanhola. E depois do fantástico Eu, Assassino, originalmente publicado em Portugal pela Arte de Autor, e do também muito bom Eu, Louco, este já publicado pela Ala dos Livros, posso dizer que este terceiro e último volume da trilogia, Eu, Mentiroso, publicado há pouco mais de um mês pela Ala dos Livros, não sendo o melhor da saga, encerra-a com chave de ouro, ainda assim.
Todos os volumes têm um tema inerente e o assunto central do terceiro livro é a mentira e como a mesma é usada para controlar a sociedade, por parte dos políticos. Sendo baseado na política espanhola, parece-me óbvio que as pontes interpretativas podem ser feitas para qualquer sociedade ocidental da atualidade. E não só.
Mas sendo um livro de cariz político, também é um thriller emocionante, numa história violenta e com bastantes crimes e conspirações. Tudo começa, portanto, quando três cabeças de dirigentes políticos aparecem dentro de recipientes de vidro. Aparentemente, trata-se de uma vingança política, pois os cadáveres a que estas cabeças pertencem, eram membros do partido e estavam envolvidos num grande processo de corrupção, em que os seus depoimentos poderiam levar à queda do governo. Como protagonista, temos Adrián Cuadrado, assessor de imagem e comunicação do partido que se encontra em funções no governo. A sua grande valência é contar histórias, limpar a imagem negativa, subverter a forma como a opinião pública vê o governo. Um mestre da mentira, portanto. E não o faz apenas profissionalmente como, também, na sua vida pessoal, tendo uma vida dupla. Mas o aparecimento dos cadáveres vai alterar a sua existência, pois a personagem vê-se forçada a ter que lidar com esta crise política e mediática. E fá-lo-á, certamente, com o máximo proveito pessoal possível.
Embora cada um dos volumes desta trilogia nos sejam dados como álbuns isolados, que podem ser lidos de forma separada, Altarriba consegue neste terceiro volume uma bela ligação aos dois álbuns anteriores, orquestrando com eficiência as três obras.
Julgo ser justo dizer que todos os livros são bons, embora o meu preferido ainda seja o primeiro pois adorei aquela ideia de se praticar um assassinato enquanto expressão artística. O segundo livro, que nos levou aos meandros dos poderes económicos e sociais da indústria farmacêutica, também é muito interessante, embora não me tenha agradado tanto. Este último volume funciona bem porque vai beber um pouco a essas primeiras duas obras, trazendo à tona eventos ou personagens desses volumes, e embrulhando tudo num curioso jogo político, com muita conspiração à mistura e que se nos revela como inteligentemente arquitetado por Altarriba.
Gostei particularmente que os nomes das personagens que aparecem em Eu, Mentiroso, embora tenham sido alterados em relação aos políticos reais, apresentem alterações tão ténues que, rápida e facilmente, percebemos logo quem é quem. Acaba por ser um exercício provocatório de Altarriba em “chamar os bois pelos nomes” sem, no entanto, o fazer. Gostei da audácia. Se a personagem fictícia principal Adrián Cuadrado evoca a personagem real Iván Redondo que, na vida real, transitou do PP para o PSOE, também aqui se explica, com nomes ligeiramente alterados, a ascensão de Sanchez e a queda de Rajoy. Por outras palavras, o pano de fundo que ambienta este Eu, Mentiroso é exatamente aquilo que aconteceu na política espanhola, entre os recentes anos de 2016 e 2019. Por isso, é ainda mais divertido observar o tom desafiador dos autores quando a nota introdutória à obra é exatamente esta: “qualquer semelhança com a realidade política espanhola entre 2016 e 2019 é mera coincidência”.
Em termos de arte ilustrativa, Keko continua na senda do que já havia feito nos primeiros dois álbuns da trilogia. A obra é a preto e branco – sem escala de cinzentos – e depois é subtilmente colorida com uma só cor. Em Eu, Assassino, era o vermelho de sangue a cor que salpicava o preto e branco. Em Eu, Louco, era o amarelo, de loucura, e neste Eu, Mentiroso, a cor presente é o verde. É um efeito relativamente simples, mas que dá luz e cor (literalmente) aos desenhos de Keko.
Estes, mantêm-se fiéis aos álbuns anteriores da trilogia, com vinhetas onde sobressaem os fortes contrastes entre o preto e o branco. Visualmente torna-se uma obra muito impactante, que me fez recordar os (igualmente impactantes) trabalhos de um Frank Miller ou de um Alberto Breccia. Embora, claro está, sejam três estilos diferentes entre si.
Se há algo que não gostei tanto no trabalho de Keko e que me pareceu mais evidente neste terceiro livro, em relação aos demais da trilogia, foi um uso algo excessivo de cenários nos desenhos que demonstram ser claramente fotografias que receberam um tratamento digital do autor para parecerem mais desenhos do que fotografias. Atenção que é uma opção completamente válida de Keko mas que, quanto a mim, poderia ter sido feita com mais subtileza. Seja como for, é um álbum em que o estilo de ilustração causa impacto e que muito me agrada.
Quanto à edição de Eu, Mentiroso, posso dizer que a Ala dos Livros segue aquilo que havia sido feito nos primeiros livros: capa dura, bom papel brilhante e excelente qualidade na impressão e encadernação da obra. Confesso não saber com exatidão quais foram as razões para que a série tenha passado da Arte de Autor para a Ala dos Livros. Mas não deixa de ser uma situação pouco comum. Seja como for, para nós, leitores, interessa é que temos a trilogia totalmente publicada por cá!
Posso terminar dizer que recomendo vivamente esta trilogia e, em particular, este terceiro e último volume, Eu, Mentiroso, para todos aqueles que gostam de um belo thriller, com um intrincado enredo e com uma boa e inteligente pitada de política e crítica à sociedade espanhola. E não só. A singular arte ilustrativa de Keko também é de um autêntico fulgor monocromático que, sendo verdadeiramente original, tem o condão de exaltar nomes tão relevantes para a banda desenhada como Alberto Breccia ou Frank Miller. A não perder!
NOTA FINAL (1/10):
9.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Eu, Mentiroso
Autores: Antonio Altarriba e Keko
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 168, a preto, branco e verde
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 270 mm
Lançamento: Maio de 2022
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