Dias de Areia era um livro que há muito eu queria ler. Sendo finalista para variados prémios aquando o seu lançamento, em 2021, e tendo um aspeto que, julgando pelas imagens promocionais que pude ver na web ou pelas vezes em que folheei a edição estrangeira em livrarias, era muito do meu agrado, posso dizer que estava ansioso para o ler na edição portuguesa.
Ora, isto de ter fortes expectativas perante uma obra pode ser problemático, pois não são raras as vezes em que tanto esperamos por algo, tendo forte expectativa, que, quando esse algo nos chega às mãos, fica aquém daquilo que esperávamos.
Porém, Dias de Areia, da autora holandesa Aimée de Jongh, lançado há umas semanas pela editora ASA, não será disso exemplo. Dias de Areia mais que corresponde às minhas (altas) expectativas e é mais um dos livros de 2024 que, já agora, se apresenta como um dos anos mais profícuos de sempre, no que ao lançamento de banda desenhada de qualidade superior diz respeito.
Esta é uma obra muito forte a todos os níveis, pois combina uma narrativa histórica interessante - sobre um tema de que não se fala muito - com uma forte componente visual, enquanto nos dá conteúdo para reflexão. Não é apenas um livro histórico bem desenhado, é (bastante) mais do que isso!
A história passa-se durante a Grande Depressão nos Estados Unidos, mais especificamente durante o "Dust Bowl", um período de tempestades de areia devastadoras que atingiram o centro-sul dos EUA na década de 1930. Este cenário histórico é crucial para entender o ambiente e as dificuldades enfrentadas pelas personagens.
O protagonista, John Clark, é um jovem fotógrafo contratado pela Farm Security Administration para documentar as condições de vida dos agricultores afetados pelo Dust Bowl. A missão de John é capturar imagens que possam sensibilizar o público e o governo sobre a gravidade da situação. De resto, convém dizer, o ato de fazer reportagens fotográficas para demonstrar uma realidade vivida no resto do país, era prática comum durante este período da história dos Estados Unidos da América.
E quando chega ao Oklahoma, Clark depara-se com uma região em que a terra, de tanto explorada pela agricultura, encontra-se insípida e morta, dando lugar a pó. Pó esse que, sempre que há rajadas de vento mais fortes, se transforma em tempestade de areia. Ou, melhor dizendo, em tempestades de pó. Este, impregna-se na roupa, nas casas e até nos pulmões das gentes locais que vão sucumbido a este desastre ambiental onde a miséria impera por tudo o que é lado.
À medida que o protagonista avança na sua demanda, começa a sentir que as fotografias que tira, por melhores que sejam os seus enquadramentos ou o seu jogo de luz e sombra, talvez não consigam captar a real essência do que ali se vive. E conforme vai tomando contacto com as gentes locais do Oklahoma, de quem fica amigo, John Clark acaba por confrontar as suas próprias percepções e preconceitos, e o seu papel enquanto observador e narrador da realidade.
A resiliência humana é, pois, um tema chave da obra, que explora como as pessoas enfrentam adversidades extremas e a força do espírito humano em tempos de crise. Mas como esta é uma obra profunda, não ficamos por aí: a autora Aimée de Jongh vai mais longe e, numa segunda linha, também explora o poder que a fotografia pode ter para a sensibilização e mudança social, enquanto aborda igualmente a ética no trabalho de um fotógrafo. Será justo que, para sensibilizar os outros, o fotógrafo interaja com a realidade para sublinhar más condições de vida? Numa altura em que vemos os media a explorar cada vez mais cada uma das "notícias" que nos chegam diariamente, importa saber: qual o limite entre a importância social do jornalismo para informar e educar as pessoas e, ao mesmo tempo, permanecer fiel aos factos recolhidos de forma neutra? É, sequer, possível que tenhamos jornalismo verdadeiramente neutro e imparcial?
Com o desenvolvimento da trama, John Clark começa a entender a profundidade do sofrimento humano, enquanto cria empatia com as personagens que habitam à sua volta. Isto também lhe permite encontrar respostas para aquilo que ele mesmo quer ser, já que é mais uma daquelas pessoas que, como tantas outras, seguiu os passos profissionais do seu pai sem perceber se era mesmo essa a caminhada que queria percorrer.
Para além de tudo o que já referi, ainda há um outro nível subentendido - mas não "escarrapachado" na cara do leitor - que é a dimensão de preocupação ambiental. O que o livro demonstra é que o Dust Bowl só existiu por uma total libertinagem na forma como a agricultura explorou, sem rei nem roque, as terras do centro dos Estados Unidos. Se as mesmas tivessem sido exploradas com conta e medida, provavelmente o Dust Bowl nunca teria acontecido. E isso dá-nos, lá está, (mais) uma reflexão sobre a forma como é importante tomar decisões de forma consciente e responsável sempre que a humanidade explora os recursos naturais do planeta.
Se a história é bela, bem documentada e bem construída, os desenhos de Aimée de Jongh também são verdadeiramente bonitos! O seu estilo de ilustração é moderno e acessível para muitos gostos, apresentando um traço semi-caricatural, de aspeto muito franco-belga. As personagens exibem um código de expressividade muito bem desenvolvido. A própria conceção dos cenários também é verdadeiramente bela.
Sobre esse ponto, e tendo em conta que estamos a falar de uma obra que retrata as tempestades de areia, era mandatório que a ilustração desse fenómeno fosse bem conseguida. E, também aí, Jongh revela-se exímia, fazendo com que o leitor se sinta mesmo dentro das tempestades de areia, experienciando todo o sufoco, medo e apreensão que este tipo de fenómeno certamente gera a quem se vê afetado por ele.
As cores também contribuem para que as ilustrações de Jongh ganhem um aspeto verossímil que nos parece transportar para aquela região central e árida dos Estados Unidos. A autora faz-se ainda valer de uma planificação airosa e dinâmica, que torna a narrativa fluída e não repetitiva e onde as imagens têm espaço para respirar devido ao uso de vinhetas grandes e belos planos cinematográficos.
Também será importante referir que este não é um livro com muito texto, sendo várias as páginas onde não existe sequer um balão de fala. Ora, isso acentua o registo de solidão, de desolação, de aridez do local onde se passa a ação, conferindo à obra um quase cariz de "road movie" e dando espaço ao leitor para refletir e para estreitar o seu relacionamento com o protagonista.
Se para mim este livro não é perfeito, é apenas e só por uma razão: porque o final me pareceu algo apressado. Não é que não tenha gostado do final. Gostei. E da reflexão que o mesmo nos oferece. Mas se tivermos em linha de conta que durante toda a restante obra a trama é lenta (e ainda bem que assim o é, pois permite um maior envolvimento do leitor com a história) o final não é congruente com essa ideia, ficando resolvido num ritmo muito mais rápido e linear.
A edição da ASA está bastante bem conseguida. O livro possui capa mole baça, com badanas. No miolo, o livro apresenta um bom papel brilhante e um bom trabalho em termos de impressão e encadernação. No final, há ainda um dossier de extras com 8 páginas, onde nos é explicado com mais detalhe o Dust Bowl, o funcionamento da Farm Security Administration e temas subjacentes à leitura da obra. Trata-se de um extra relevante.
Devo dizer que, dada a qualidade e relevância da obra, teria preferido que a mesma tivesse sido editada em capa dura. Acho que isso atribui sempre - ou quase sempre - mais classe e seriedade às edições. Não obstante, também não tenho nenhum problema com capas moles. E convém não esquecer: é preferível que as editoras portuguesas editem muitas e boas bandas desenhadas em edições em capa mole, do que não as editem de todo. Mais do que tudo, e quer seja em capa dura ou mole, a ASA revela com a publicação de este Dias de Areia que o seu comprometimento com a edição de banda desenhada é sério e deve ser tido em conta. Há anos e anos que não via a editora tão apostada no lançamento de tanta banda desenhada de qualidade!
Em jeito de conclusão, posso dizer-vos que Dias de Areia é uma obra comovente que combina história, arte e narrativa de forma magistral. Aimée de Jongh cria uma experiência imersiva que não só informa, mas também toca o coração do leitor. É uma leitura recomendada para todos e que é uma forte candidata a melhor BD do ano.
NOTA FINAL (1/10)
9.9
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Dias de Areia
Autora: Aimée de Jongh
Editora: ASA
Páginas: 288, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 269 x 204 mm
Lançamento: Julho de 2024
Viva Hugo. A obra é uma pequena maravilha de narrativa gráfica, a edição da ASA, infelizmente, não. Gostaria de concordar consigo Hugo quando diz é "...editora tão apostada no lançamento de tanta banda desenhada de qualidade" no entanto uma análise mais exaustiva das obras, autores, temáticas, formatos, etc diz o contrário. Receio que esta seja uma "excepção" num catálogo que, por norma, peca por ser demasiadamente conservador e, até diria, retrógado. Espero que tempos mais próximos me contradigam, sinceramente, mas duvido.
ResponderEliminarOlá António! Penso que é justo dizer que tem havido uma mudança ao nível da aposta em BD por parte da ASA nos últimos 2, 3 anos. Há 5 anos seria, por ventura, impensável que falássemos no lançamento deste tipo de obras por parte da editora.
EliminarBela análise. Bela ediçao da Asa.
ResponderEliminarObrigado, RC. Um abraço.
Eliminar