Planeta Psicose é o 50º álbum a ser lançado pela editora Escorpião Azul. E, para um lançamento tão simbólico como este, julgo ser justo admitir que a editora acertou em cheio com esta obra da autoria de Ricardo Santo, autor que já tinha dado nas vistas quando, em 2017, lançou a obra Livro Sagrado, que viu a luz do dia através de uma campanha de crowdfunding bem sucedida.
Planeta Psicose é um conjunto de várias histórias que Ricardo Santo tem vindo a desenvolver ao longo dos últimos meses/anos. Quando, a 26 de Junho, falei com o editor da Escorpião Azul, Jorge Deodato, a propósito dos lançamentos da editora para o segundo semestre de 2020, a obra ainda era apelidada como Dissonâncias Cognitivas. Mas, entretanto, recebeu um novo título, Planeta Psicose, e foi lançada a cores, já bem perto do final do ano 2020.
Na verdade, a obra é constituída por três histórias: Psycotropic Revelution, Fernando & Joel Contra os Donos desta Porra Toda!!! e Dissonâncias Cognitivas – sendo que esta última história aparece dividida em três partes.
Apresentando um cariz humorístico, envolto numa mordaz crítica social, Planeta Psicose é uma obra muito interessante e uma das apostas mais aliciantes do catálogo da Escorpião Azul. A crítica de Ricardo Santo é bastante mordaz e utiliza, como ponto de partida, as teorias da conspiração e fake news que habitam as redes sociais por todo o mundo, apresentando-nos um conjunto de histórias divertidas, por vezes com alguns exageros, é certo, mas que encaixam perfeitamente no que aqui é pretendido realçar: um mundo onde, cada vez mais, se procura uma verdade sustentada em mentiras e em pressupostos dúbios e subjetivos.
Além disso, Ricardo Santo também é feliz ao passar-nos o seguite statement: se as fake news e as teorias da conspiração, baseadas em tudo menos na ciência e nos factos, são permitidas e aceites, então o autor também pode agarrar nos factos, à sua maneira, e fazer deles o que bem entender. Algo semelhante ao que o realizador de cinema Quentin Tarantino fez no filme Inglorious Basterds, por exemplo. E, nessa vertente, Planeta Psicose é, de facto, muito interessante. Num amplo e generoso guisado de teorias da conspiração, o autor serve-se, como que num bufett, de tudo e mais alguma coisa: de Trump, de André Ventura, de seres alienígenas, de Elvis Presley, do Abominável Homem das Neves, da Área 51, de Che Guevara, de John F. Kennedy, entre muitos outros eventos históricos e figuras emblemáticas. Por vezes, podemos considerar que o autor vai longe de mais mas, na maior parte das vezes, leva a narrativa a bom porto, em termos de humor e boa disposição.
E, se é verdade que a crítica e sátira do autor são muito bem-vindas, penso que onde este Planeta Psicose mais brilha até nem é na história Dissonâncias Cognitivas, mas sim nas outras duas histórias, onde o potencial do autor é mais verificável. A história Dissonâncias Cognitivas é interessante mas em termos de arte sequencial, nem sempre o fio da narrativa se torna muito bem conseguido. Por vezes, parecem apenas ilustrações que contam uma história em comum mas que aparecem algo dispersas entre si. E a ausência de texto em Dissonâncias Cognitivas não ajuda.
Mas, nas outras duas histórias, já por mim mencionadas, o caso muda de figura. Aqui, temos um texto inspirado e um argumento mais composto e bem delineado pelo autor. A personagem Rita Faísca, de Psycotropic Revelution, com todos os seus clichets, é um retrato magnífico, acutilante e bem traçado das personalidades ocas, os tais influencers, que, na atualidade em que vivemos, muita gente parece seguir. Aquelas personagens aparentemente tão cheias de tudo mas que, na verdade, são cheias de nada. Adorei esta personagem e gostaria de a voltar a ver numa nova aventura do autor. Depois de uma entrevista num programa de tv a la Cristina Ferreira, o autor apresenta-nos esta personagem ao detalhe. É pena que depois a narrativa desta história resvale para uma ação algo descabida e over the top, por vezes. Acho que se perdeu uma oportunidade de fazer algo mais memorável, muito embora tenha sido uma história muito interessante. Já em Fernando & Joel Contra os Donos desta Porra Toda!!!, Ricardo Santo volta a mostrar-se como um autor com enorme potencial. A história baseia-se no mirabolante caso real do roubo de armas de Tancos e, a partir daí, fabrica a sua própria teoria, quiçá tão credível como as teorias que os meios de comunicação social – e não só – têm explorado nos últimos meses. Esta é mais uma história divertida e mirabolante sobre a qual não quero tecer muitos comentários, para não estragar eventuais surpresas aos leitores que comprarão o livro depois desta leitura.
Em termos de ilustração, o trabalho “cartoonizado” de Ricardo Santo é bastante bem conseguido e, ao mesmo tempo, criativo, apresentando personagens com bastante personalidade em termos gráficos. Há também um conjunto bastante variado de criaturas não-humanas que permitem averiguar a capacidade e diversidade do autor em termos de desenho. E mesmo em cenas de ação, também fiquei agradado com a agilidade ilustrativa do autor.
Planeta Psicose é uma boa e bem guardada surpresa. Considero que poderia ter arriscado mais em algumas vertentes, nomeadamente na corajosa empreitada que seria a tentativa por uma história única - e que potencialmente seria mais profunda e memorável - ao invés de apresentar um conjunto de histórias isoladas entre si. Não obstante, a obra funciona mais como um cartão de visita, um portfolio - sobre a forma concreta de um livro -, para demonstrar as excelentes potencialidades do autor. Quer enquanto criador de histórias carregadas de um humor negro e muito consciente da sociedade atual que nos rodeia; quer como um ilustrador muito interessante, com um estilo "cartoonizado" que, não só funciona extremamente bem para o tipo de histórias em questão, como apresenta ilustrações que facilmente conseguem atrair simpatia por parte dos leitores.
A edição da Escorpião Azul é em tudo semelhante àquilo que a editora nos tem dado nos seus outros lançamentos, excetuando o facto deste ser um livro a cores e que, por esse motivo, respira melhor – especialmente tendo em conta o teor narrativo-gráfico da obra. Devo dizer que achei que algumas das ilustrações mais “noturnas”, isto é, com menos luz, ficaram demasiado escuras e difíceis de apreciar. Mesmo assim, é bom que a editora (também) edite álbuns a cores.
Planeta Psicose apresenta-se como uma das revelações da banda desenhada nacional. Ricardo Santo é um autor ao qual todos devemos dar atenção. Com um trabalho mais limado, aqui e ali, em futuras edições, há potencial para que Ricardo Santo se torne num nome relevante da banda desenhada nacional. Parabéns à Escorpião Azul pela aposta, mais que bem sucedida.
NOTA FINAL (1/10):
8.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Planeta Psicose
Autor: Ricardo Santo
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 72, a cores
Encadernação: capa mole
Lançamento: Dezembro de 2020
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