Uma vez li uma entrevista em que um escritor português – julgo, sem certeza, que era José Luís Peixoto – dizia que quando via algum desconhecido, na rua, a ler um livro seu, se sentia nu. Exposto. E é compreensível tal afimação. Pelo menos, se for um autor que coloca o seu coração, a sua sensibilidade, as suas vivências, os seus medos e a sua vida naquilo que escreve. Depois de ler O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias, a sensação com que fiquei foi exatamente essa. De ter visto, com absoluta transparência, a pessoa de Paulo Monteiro, o autor desta obra.
Esta é uma obra de sobeja importância na banda desenhada portuguesa, tendo ganhado vários prémios e sido aclamada no estrangeiro. É o livro português de banda desenhada mais traduzido de sempre. E quando, há uns meses, fiz o meu TOP das 15 melhores BD portuguesas de sempre, várias foram as vozes que me aconselharam a ler esta obra de Paulo Monteiro. E finalmente, passadas umas semanas, tive a oportunidade de o fazer. O meu obrigado ao editor Rui Brito, da Polvo, pois sei que se trata de um livro já muito difícil de encontrar no mercado.
Feita a leitura, posso dizer que mais do que me sentir maravilhado pela mesma... me sinto tocado. Sensibilizado. É esse o grande trunfo do autor. E, na verdade, nem sequer me parece que Paulo Monteiro o utilize conscientemente como um “trunfo”. Ele utiliza-o assim, pois transpira sensibilidade no que escreve e, ainda mais importante, na forma como escreve. As emoções aqui tratadas não são fabricadas artificialmente, tentando despoletar sensações fáceis. Ao invés, são colhidas dessa coisa a que chamamos experiência de vida, vivências passadas, memórias que perduram, dor que não cessa, beijos por dar, palavras por dizer. Ou as vezes em que o adeus não foi feito no doce e amargo embalo da vida. Paulo Monteiro oferece-nos tudo isso - e muito mais - nas 10 histórias que compõem este álbum de pequenos contos.
E foi quando cheguei à nona história desta obra que Paulo Monteiro conseguiu o prodígio de causar-me algo que já não acontecia há longos anos. E muito menos em banda desenhada. Fazer-me chorar. Sim, leram bem. Não foi um choro de "baba e ranho" mas fiquei com as lágrimas nos olhos. Todos nós temos o nosso percurso, a nossa história. E todos esses percursos e essas histórias são diferentes entre si. Não obstante, esses mesmos percursos têm paragens e sobressaltos comuns. Bem como essas histórias têm personagens e acontecimentos semelhantes em algum momento. Quando li Porque É Este O Meu Ofício, a tal nona história do livro, e que é uma homenagem ao pai de Paulo Monteiro, não pude deixar de me rever na relação que tive com o meu pai que, lamentavalmente, partiu muito antes do seu tempo. Mas não foi só o meu pai que eu vi nesta história. Também me vim a mim mesmo enquanto pai. Será possivel? É algo intenso e que não acontece todos os dias na banda desenhada, certo?
É isso que Paulo Monteiro consegue. Transportar-nos ao sabor das suas doces palavras que, sendo suaves, são acutilantes e vão ao âmago da nossa sensibilidade. Uma das histórias homenageia o seu avô; outras são dirigidas à sua amada; outra é um tributo aos soldados e à guerra; e as restantes são pensamentos sobre a forma como o autor se percepciona a si e ao mundo. Admito que algumas histórias são mais latas do que as outras, parecendo meras divagações, como um comentário que nos sai da boca e fica a bailar numa fração de minutos. Outras são mais diretas e acabam por ser as que, na minha opinião, funcionam melhor. Para além da fantástica Porque é Este o Meu Ofício, destaco Para Lá dos Montes, A Canção do Soldado, A Tua Guerra Acabou e O Enforcado.
Como ponto menos positivo, diria que o livro é bastante pequeno em dimensão. A grande maioria das 10 histórias tem entre 3 e 4 páginas. Há até uma história com duas páginas apenas. Isso leva a que, por vezes, não seja permitido – ou facilitado - ao leitor a total imersão na narrativa. Algumas vezes li uma história e voltei ao início para a ler mais uma vez, de forma a ter outra oportunidade de, verdadeiramente, “entrar nela”. E, se calhar, também foi por isso, que a história Porque É Este O Meu Ofício, que é a maior do livro, contabilizando 8 páginas, tenha sido aquela que mais me marcou. Se é tão bom navegar ao sabor das palavras de Paulo Monteiro, muitas vezes parece que ainda mal saímos do porto e o barco já tem de voltar, terminando abruptamente a nossa navegação. “Vale mais pouco e bom, do que muito e mau”. Sem dúvida que sim. Esta minha “queixa”, se é que assim se pode chamar, não é tanto em relação ao que Paulo Monteiro nos dá em O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias, mas antes naquilo que ele não nos dá. E que talvez pudesse dar.
Este é, no fundo, um livro de poemas ilustrados. Mais isso do que histórias. E, nesse ponto, é sincero, audaz e sublime. Não é Eça de Queiroz que por aqui vagueia. É Fernando Pessoa. E poder absorver uma delicadeza no tom e nas palavras assim, é um privilégio.
Quanto à arte, o estilo de Paulo Monteiro não será do agrado de toda a gente, estou certo. Com um estilo que aparecenta derivar do cartoon, o autor parece depois depositar nas suas ilustrações vários elementos evocativos, que rápida e ferozmente transformam os seus desenhos - que até são simples na conceção - em algo mais intenso, mais onírico, mais pesado, mais triste, mais artístico e com algumas ilustrações a fazerem lembrar o expressionismo. A história de O Enforcado será, por ventura, o melhor exemplo deste expressionismo onírico. Outra coisa que pode não ser do agrado de alguns leitores é que o estilo de ilustração muda bastante, de história para história, o que leva a que não haja uma grande unidade ilustrativa entre os contos aqui presentes. Ainda assim, não me chocou pois não considero que, pelo menos o ambiente gráfico, seja tão heterogéneo assim. No final, parece-me que há uma certa harmonia entre histórias mesmo admitindo que, entre umas e outras, o estilo gráfico vá mudando.
Também não é um estilo clássico de banda desenhada. Aliás, eu diria que a escola do autor parece ser mais a da ilustração do que a da banda desenhada. Com efeito, muitas vezes este livro pareceu-me mais um livro de histórias ilustradas do que um livro de banda desenhada. E dizer isto não é referi-lo nem como positivo, nem como negativo. É o que é. Não existe aquela sequência direta entre imagens e vinhetas. O que está a unir as ilustrações é o texto. Texto esse que é delicado no uso das palavras e sensível no ritmo que imprime. É no texto que as imagens se sustentam. E não o contrário.
Em termos de edição, aquela que me chegou às mãos já é a terceira edição da obra. Tendo em conta que a obra é bastante difícil de arranjar em loja, diria que seria interessante a reedição da mesma num futuro próximo. Se possível em capa dura. E com mais extras ainda. Ou mais algumas histórias. Esta terceira edição é complementada com excertos do diário de trabalho do autor. Achei um extra muito pertinente e interessante, uma vez que mostra aos leitores a demanda difícil e complexa que é elaborar um livro de banda desenhada. Há ainda um pequeníssimo álbum de fotografias onde ficamos a conhecer a família do autor.
Em conclusão, O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias é um livro sublime. E sim, não sei em que lugar colocaria esta obra, se fosse hoje o dia em que faria o tal TOP 15 das Melhores Bandas Desenhadas Portuguesas de sempre, mas estou certo que teria um lugar nesse grupo restrito.
Paulo Monteiro faz-nos sorrir enquanto o coração chora. Esta é uma obra singular que pode ser apreciada em qualquer momento e em qualquer lugar. Numa fatigante tarde chuvosa em confinamento ou numa duna aquecida pelos raios solares do verão. Um livro para guardar e voltar a ler amiúde. Todos nós precisamos, de tempos a tempos, algo que nos aqueça a alma. E O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias é essa braseira de almas desencontradas. É dispensável dizer que é indispensável para um fã de bd.
NOTA FINAL (1/10):
9.1
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias
Autor: Paulo Monteiro
Editora: Polvo
Páginas: 64, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Novembro de 2010 (3ª Edição: Maio de 2014)
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