A Morte Viva absorveu-me totalmente para o seu universo muito próprio e muito especial, que é maravilhosa e intricadamente ilustrado pelo autor português Alberto Varanda. Um trabalho cujo fulgor estético-gráfico é de verdadeiro mestre e que recomendo vivamente.
Claro que não é só Alberto Varanda o responsável por A Morte Viva. Na verdade, o argumento até é elaborado por Olivier Vatine, que nesta obra faz uma adaptação do romance original La Mort Vivant, da autoria de Stefan Wul. Também foi Vatine que projetou a própria arte ao nível do planeamento de pranchas e do storyboard e até foi ele que coloriu a obra, com o auxílio de Isabelle Rabarot. E o que Varanda fez, na maioria das vezes, foi desenhar por cima do storyboard original. Mas, sendo justo, há que admitir que a verdadeira estrela da companhia nesta obra é Alberto Varanda.
Mas já lá irei.
A Morte Viva é uma banda desenhada que junta dois universos algo diferentes. Por um lado, temos uma componente totalmente futurista, que parece retirada de um filme de ficção científica, onde a ação decorre no planeta Marte, que é povoado pela raça humana, e onde a vertente cénica da obra nos permite um breve vislumbre a edifícios futuristas e naves espaciais. Por outro lado, temos um lado de horror gótico, que se desenrola no planeta Terra e onde somos convidados a entrar num cenário clássico do passado, remetendo para um ambiente soturno e sombrio, com um aura ideal para um filme de terror.
Esta mistura, sendo rara, acaba por funcionar bem embora, na minha opinião, a grande força visual - e mesmo narrativa - que marca verdadeiramente este A Morte Viva, diga respeito à parte da história que se desenrola na Terra. Diria que os primeiros momentos do livro, que sucedem em Marte, não são mais do que um mero pretexto para que o mundo, tal como ele aqui é, nos seja apresentado e para que os autores tenham algo diferente para explorar em termos de localizações físicas. Sinceramente, acho que a história passaria muito bem sem os momentos em Marte. E não digo isso por serem mal conseguidos. Digo isso porque o grande appeal da história está na parte que se desenrola no castelo de Martha, clara e abertamente inspirado no castelo bávaro, Neuschwanstein. É arrepiante e entusiasmante deixarmo-nos perder nesse imponente e sombrio castelo.
Quanto à história em si, acompanhamos Joachim, que é um jovem e brilhante cientista que, no passado, fez pesquisas científicas que eram proibidas. Isso fez com que despertasse o interesse de Martha que o mandou raptar em Marte e trazê-lo para o seu castelo, na Terra. O objetivo de Martha é simples: quer que o cientista ressuscite a sua filha que falece nas primeiras páginas do álbum. E para fazê-lo, Joachim terá que clonar a filha de Martha. Primeiro contrariado, mas depois entusiasmado, Joachim começa então a sua pesquisa. Mas, como seria de prever, as coisas não correm da melhor forma e, como sempre, essa dificuldade em lidar com a morte, que tem assolado a humanidade desde que a mesma existe, acaba por levar os homens a tentativas desesperadas que, invariavelmente, acabam por sair fora do controlo dos mesmos. Como se houvesse um castigo de uma entidade superior devido à insasatez da raça humana, que quer subverter as causas naturais da vida e da morte. E é o que se passa aqui. O próprio nome pressupõe algo de errado. “A Morte Viva” assume um pressuposto de impossibilidade. Se a morte está viva... quer dizer que demos vida a algo que estava morto ou quer dizer que isso nos levou a um cenário de mais morte por temos, nós mesmos, ativado a morte?
Não querendo alongar-me muito mais sobre a história, sob pena de a poder estragar aos que me lêem, diria que em A Morte Viva há pois uma reflexão sobre a ética na ciência, que nos faz pensar, e que é muito bem-vinda. Há depois uma vertente de filme de terror, muito bem explanada, assim que Joachim chega à terra. Parece um filme clássico de horror: temos a personagem Martha que, no seu estilo vitoriano, se mostra sensual e misteriosa; temos um ajudante denominado Ugo, que é um andróide mutilado que também assume funções de mordomo, e que terá como funções ajudar o protagonista na sua demanda; temos aranhas gigantes que se escondem e passeiam pelo castelo; e temos Lisa que, estando morta, é mantida numa câmara de água para que possa servir de base de estudo à sua própria clonagem. Já para não falar em criaturas monstruosas que terão um papel preponderante na história. E, como se já não tivéssemos camadas narrativas suficientes, ainda temos um relacionamento carnal que Joachim passa a ter com a sua patroa, a misteriosa Martha. Tudo junto, faz com que tenhamos uma história interessante, com um ritmo não muito rápido mas que acaba por ser equilibrado.
E se há algo de que me possa queixar enquanto leitor é que o fim me pareceu algo forçado e artificialmente megalómano. Se bem que tenho que admitir que não conhecia a história original. E portanto, havendo fidelidade ao original, talvez este final, que a mim deixou algo a desejar, não deva ser reclamado perante os autores desta banda desenhada, mas sim, perante o autor da obra original.
Seja como for, acho que a história em si, vale bem pelo clima pesado e misterioso que imprime e pela tal questão da ética na ciência que levanta, e que já mencionei acima. A semelhança com Frankenstein de Mary Shelley, não só na pretensão do herói como, possivelmente, na conclusão da mesma, é óbvia. Todavia, A Morte Viva tem as suas próprias ideias e originalidade.
E depois temos aquele que é o grande feito desta obra, tal como já referido no início desta minha análise. A fantástica, exuberante, minuciosa e maravilhosa arte visual com que Alberto Varanda nos brinda. Com uma técnica que, em muitas alturas, me remeteu para o igualmente impressionante trabalho de François Schuiten, cada vinheta – seja ela pequena ou grande – está pontuada por um grau de minúcia e por uma execução espantosa.
É um livro cuja arte enche o olho a qualquer um. O talento de Varanda é ridículo, de tão incrível e bom que é. Um daqueles livros que me leva a dizer: “mesmo que a história não valesse nada... com uma arte destas, já merecia a compra do livro”. Mas a verdade é que a história, não sendo perfeita, também vale muito a pena.
A qualidade da ilustração da obra é tremenda. Quer ilustrando uma história sombria, com um ambiente cénico clássico de um filme de terror clássico, quer ilustrando momentos de erotismo ou de variadas expressões faciais; quer na utilização dos planos, das cores, das sombras, da luz... o trabalho de Varanda continou a surpreender-me à medida que ia avançando no livro. No final, considero o seu trabalho perfeito e fiquei rendido. Como não?
A edição da Ala dos Livros é de excelente qualidade nos materiais, com a sua capa dura e um papel brilhante de boa gramagem. E vale também pelo muito bem conseguido caderno gráfico no final da obra. Neste dossier, é-nos revelado por Alberto Varanda, em formato de entrevista, o processo de criação da obra e as técnicas utilizadas, enquanto também são partilhados diversos estudos de personagem e ilustrações impactantes. A editora optou por publicar esta obra na sua versão a cores. Pelo que já pude ver, ler e pesquisar, a versão a preto e branco da obra consegue superar a versão a cores, em termos de espetacularidade. É provável. Mas devo dizer que gostei bastante desta versão e que o trabalho de cores me deixou francamente satisfeito.
No final, julgo ser justo dizer que a fantástica arte de Varanda faz desta narrativa gótica de ficção científica, uma obra altamente recomendável a fãs de banda desenhada. Mesmo aqueles que não gostam de histórias de ficção científica ou de horror. É uma enorme falha deixar passar este álbum. Recomendado, certamente!
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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A Morte Viva
Autores: Olivier Vatine e Alberto Varanda
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 96, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Abril de 2019
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