O Grito do Moloch, a mais recente aventura da famosa dupla Blake e Mortimer, recentemente lançada em Portugal pela ASA, embora possa ser lida e compreendida isoladamente, continua os acontecimentos da obra A Onda Septimus que, em boa verdade, também já tinha pegado nas pontas soltas do álbum clássico A Marca Amarela.
Assim, depois da aventura de Blake e Mortimer em A Onda Septimus, Olrik ficou recluso num hospital psiquiátrico. E isso marca o início deste O Grito do Moloch. Mas quando o Professor Scaramian leva Mortimer até um velho navio cargueiro, transformado em laboratório secreto, dá-lhe a conhecer um ser alienígena que se encontra cativo para estudos e testes, e ao qual os cientistas deram o nome de Moloch. Entretanto Moloch consegue evadir-se, utilizando o corpo de várias personagens enquanto hospedeiros de si próprio, enquanto vai deixando os edifícios da cidade de Londres repletos de hieróglifos indecifráveis.
Se esta breve sinopse que apresento, poderá ser sugestiva de um argumento interessante, devo dizer que, infelizmente, as coisas não correm tão bem assim. Aliás, é no argumento onde este livro mais peca. Como diriam os ingleses, a história está completamente all over the place. A ideia base até podia ser interessante mas não está nada bem aproveitada, e há momentos que pediam maior desenvolvimento, existindo outros, completamente supérfluos para a história, que recebem demasiada atenção. Embora seja uma banda desenhada que utiliza balões e legendas com muito texto – como, aliás, é algo comum aos primórdios da série, ainda com Edgar P. Jacobs -, até isso acaba por não ser convenientemente aproveitado pelos autores, não surtindo depois um bom efeito na clareza da história. Há coisas que acontecem na narrativa, aparentemente, só porque sim, sem que haja uma explicação com nexo que sustente esse acontecimento.
E convém também relembrar que a utilização de uma componente mais científica, alicerçada numa componente mais metafísica, de poderes sobrenaturais, acaba por criar confusão no leitor e nos próprios intuitos científicos da história. Sinceramente, fiquei com a ideia de que “valia tudo” neste argumento, mesmo que isso pusesse em causa – como põe – a clareza e a integridade da narrativa.
Quanto à arte ilustrativa, este é um álbum que também deixa bastante a desejar. Os desenhos estão feitos “sem alma”, com as personagens a transparecerem mal as suas expressões, através de uma caracterização com pouco detalhe. E, falando em ausência de detalhe, os cenários também são algo pobres e insípidos. As ruas de Londres são demasiado rectilíneas, demasiado limpas e demasiado artificiais. Como se Londres parecesse um cenário de si mesma, com pouca vida e veracidade. Isto não é dizer que este livro é mal desenhado. Não o é. Se o folhearmos rapidamente até ficamos com a ideia que faz jus à série Blake e Mortimer. Mas, com um olhar minimamente atento, verificamos que o desenho deste álbum, cumprindo, não satisfaz plenamente. Como seria pedido a uma série tão histórica e emblemática como esta.
Por vezes, leio críticas negativas ao trabalho dos autores que pegaram nas séries do Astérix ou do Lucky Luke e as continuaram. E, embora compreenda algumas dessas críticas, acho que grande parte das mesmas são injustas e completamente parciais e apontadas só porque "já não é como o original". De um modo geral, acho muito bem conseguido o trabalho desses autores nas séries que mencionei. Mas, quanto a este O Grito do Moloch, considero-o um desserviço ao legado de Edgar P. Jacobs, aos fãs da série e às próprias personagens. Sem dúvida que é o pior álbum de Blake e Mortimer que já li. Sei que não li todos os álbuns mas acho que já li mais de 85%. Portanto, é pena que este álbum tenha sido feito com tamanho e aparente descuido por parte dos autores. Que até são nomes conceituados na bd atual. Uma oportunidade amplamente perdida.
Há ainda outro “problema” nos livros recentes da série de Blake e Mortimer e, neste ponto específico, não me refiro apenas a este O Grito do Moloch, mas a todos os álbuns mais recentes. É que - e perdoem-me os fãs, que são muitos desta série, bem sei – Blake e Mortimer é uma série que, a meu ver, tem envelhecido mal. Os temas da série, como as invasões extraterrestres, as conspirações, a espionagem, a ficção científica são ainda tratados de uma forma que me parece já muito obsoleta e muito distante dos dias de hoje. Claro que esta abordagem era certamente fantástica há 30 ou 40 anos. Hoje em dia, parece-me alheada da realidade. Obsoleta. Poderão dizer-me: “ah... mas se a série fosse adaptada aos dias de hoje, ficaria desvirtuada”. Não o nego. Mas a verdade é que o resultado que nos é dado aparece como outdated. E a culpa disto está relacionada com o facto da série (ainda) abordar a ficção científica como o fazia há décadas. Nessa altura, até poderia ser uma abordagem moderna e vanguardista. Hoje, nem por sombras o é. E, nesse sentido, também é verdade que o tema do “moderno” e “futurista” fica mais facilmente obsoleto do que o tema clássico. Um exemplo musical: a música Yesterday dos The Beatles até é mais antiga do que a música Fourth Rendez-Vous de Jean Michel Jarre. Mas, hoje em dia, o clássico dos quatro músicos de Liverpool, mesmo sendo mais antigo em idade, está muito mais atual do que a música do francês. Porquê? Por ter mais qualidade? Não, necessariamente. Mas simplesmente porque a música de Jean Michel Jarre, que era moderna e futurista na altura do seu lançamento, já não o é, hoje em dia. Mas a Yesterday, com o seu registo clássico de balada acústica, continua super atual. Uma envelheceu bem, a outra envelheceu mal. E Blake e Mortimer, a menos que regresse a um registo mais policial como em O Caso do Colar, continuará a envelhecer mal. Na minha opinião, claro. É verdade que a série ainda vende muito bem no mundo inteiro - e em Portugal, especialmente - mas diria que são apenas os fãs saudosistas da série que (ainda) a compram. Custa-me muito a crer que se eu oferecesse este livro a um dos meus sobrinhos, com menos de 25 anos, ele não mo atirasse à cabeça. Julgo que os responsáveis pela série deveriam mesmo repensá-la, atualizá-la.
Capa alternativa das lojas FNAC |
Quanto à edição da ASA, é sempre de louvar que os livros de banda desenhada sejam lançados com duas capas diferentes. Neste caso, existe uma capa especial para os livros comprados nas lojas FNAC. Isso aumenta o cariz colecionável da obra e pode, a médio-longo prazo, aumentar o valor e raridade dos livros. E isso é algo que considero interessante que as editoras portuguesas façam. Além disso, esta edição é, em geral, boa. No entanto, desta vez detetei alguns erros na edição portuguesa, e há um deles em particular, que considero bastante crasso e que diz respeito à troca de uma fala entre um balão e uma legenda que altera completamente o sentido e ritmo da história. Refiro-me à página 29. Mas, de resto, a edição mantém a qualidade cássica de capa dura brilhante e papel baço de boa qualidade, comum à grande maioria de livros da ASA.
Em conclusão este é um trabalho que parece apressado e meio que a “cumprir calendário”. Fica bastante aquém da qualidade que os milhares de fãs da série merecem.
NOTA FINAL (1/10):
5.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Blake e Mortimer 27 – O Grito do Moloch
Autores: Jean Dufaux, Christian Cailleaux e Étienne Schréder
Editora: ASA
Páginas: 56, a cores
Lançamento: Novembro de 2020
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