Neste início de 2025, com uma atividade editorial que há muito tempo não se via por parte da ASA, são várias as novas bandas desenhadas da editora que, de mês para mês, pululam nos escaparates das livrarias portuguesas.
O livro Borboleta, de Madeleine Pereira, é mais uma dessas obras que recentemente chegou até nós. A autora, embora de nacionalidade francesa, é filha de pai português, o que, como veremos aquando da leitura da obra, foi ponto nevrálgico para que Madeleine Pereira se embrenhasse neste livro que é, aliás, a sua primeira obra de grande fulgor e que teve lançamento original no ano passado, em França.
Esta é uma obra de grande sensibilidade e valor histórico que se debruça sobre um tema bastante impactante para a história político-demográfica recente de Portugal: a emigração forçada para França durante o regime do Estado Novo por parte de inúmeros portugueses que procuraram fugir à realidade portuguesa da ditadura de Salazar.
A autora dá voz a múltiplos testemunhos reais de portugueses que, entre a década de 50 e o 25 de Abril, em 1974, se viram forçados a abandonar o país em busca de liberdade e de melhores condições de vida. Acaba por ser um apanhado da história pessoal do pai da autora e, também, de várias outras histórias de pessoas próximas do seu pai, o que confere ao livro um sentido de autobiografia e uma portugalidade profunda, marcada tanto pela dor do exílio como pela resiliência dos seus protagonistas.
A repressão política, a pobreza extrema e a ausência de oportunidades são elementos recorrentes nas narrativas das personagens que aqui aparecem. O regime de Salazar e a sua política autoritária criaram um ambiente asfixiante que empurrou milhares de portugueses para uma emigração clandestina, feita muitas vezes a pé, por trilhos e fronteiras vigiadas. Madeleine Pereira recupera essas vozes com grande respeito e emoção, transformando o livro num importante documento histórico, sem nunca cair num tom excessivamente didático ou panfletário.
E um dos maiores méritos de Borboleta é, quanto a mim, o seu foco nas histórias individuais. Em vez de apresentar uma obra demasiado histórica, ou informativa, o livro opta por seguir os percursos íntimos de várias pessoas, com nomes, rostos e destinos concretos. Isso torna a leitura muito mais envolvente e acessível, aproximando o leitor das vivências retratadas e permitindo-lhe experienciar, mesmo que à distância, o que foi a dor do afastamento e a complexidade da identidade destas pessoas divididas entre dois países. Talvez por isso, é um livro que pode ser facilmente apreciado por alguém que não tenha qualquer ligação pessoal a Portugal ou a França. Não obstante, serão possivelmente os emigrantes portugueses e familiares dos mesmos; os portugueses em geral; e os franceses em geral - por esta ordem de importância - aqueles para quem a obra mais ressoará.
A acessibilidade da narrativa, conjugada com a profundidade das histórias, torna Borboleta um livro ideal para ser estudado em contexto escolar. Pode servir como ponto de partida para discussões sobre a ditadura, a emigração, os direitos humanos e a construção da identidade. Ao evitar uma abordagem excessivamente técnica, a obra permite uma aprendizagem intuitiva e emocional, onde o conhecimento surge naturalmente ao longo da leitura.
Com efeito, Borboleta consegue o feito notável de ser simultaneamente um objeto artístico, um testemunho histórico e um instrumento pedagógico. Os jovens leitores, em particular, beneficiam de contacto com este tipo de narrativa que cruza a História com as histórias, a política com o íntimo. É uma forma de humanizar a compreensão do passado e de criar empatia com aqueles que o viveram.
Mesmo assim, a própria universalidade dos temas abordados também contribui, conforme já referido, para o apelo do livro junto de leitores internacionais. A questão do exílio, da procura de dignidade e da luta contra regimes opressores são experiências que ressoam em diversas culturas. Consequentemente, Borboleta até tem potencial para ser traduzido e reconhecido fora de Portugal, cumprindo a função de embaixador de uma memória nacional que é, ao mesmo tempo, global.
O desenho da autora, tenho que reconhecer, não me convenceu logo à partida. O traço de Madeleine Pereira apresenta-se algo arcaico e, por vezes, um pouco tosco, sobretudo no tratamento facial das personagens e na linguagem corporal das mesmas, que parece pouco natural. Adicionalmente, a aplicação das cores também se apresenta pouco aprimorada, dando a ideia de que o livro foi colorido "à pressa" e sem o esmero que os desenhos poderiam merecer. No entanto, e já depois de finalizada a leitura, reconheço que é uma questão de estilo e que há uma expressividade sincera nas personagens e até um certo charme na forma imperfeita como as figuras humanas são representadas. Este estilo cru acaba por reforçar a ideia de que estas são histórias reais, marcadas pela dureza da vida e pela urgência de serem contadas.
Apesar de haver, portanto, algumas imperfeições gráficas, aqui e ali, também é verdade que há vinhetas de grande beleza visual. As cenas que retratam Lisboa, com as suas ruas e fachadas típicas, são particularmente bem conseguidas. Nota-se que a autora se demorou mais nesses momentos, criando imagens que evocam a saudade e a identidade portuguesa de forma sensível.
Nota ainda para o facto do título "Borboleta" não ser particularmente bem escolhido, a meu ver. A autora revelou ter escolhido a palavra "Borboleta" devido às borboletas que, na final do campeonato de futebol Euro 2016, em Paris, em que Portugal defrontou e venceu a seleção francesa com um golo solitário de Éder, apareceram a circundar a face de Cristiano Ronaldo, quando este se lesionou e teve que abandonar o jogo. Enfim, se este episódio tivesse algum eco na história que nos é retratada, havendo uma menção a ele no interior do livro, até poderia fazer sentido. Assim sendo, parece-me uma razão rebuscada e pouco representativa do livro que temos em mãos. É um título muito genérico que não convoca ao interesse do tema retratado.
A edição do livro é em capa dura, baça, com o miolo a ser em bom papel baço e a apresentar um bom trabalho ao nível da encadernação e impressão.
Em suma, Borboleta é uma obra tocante, necessária e artisticamente válida, apesar das suas limitações gráficas. A sua capacidade de dar voz a quem não a teve, de recuperar fragmentos da história portuguesa recente e de os apresentar com humanidade e beleza, torna este livro uma leitura deveras aconselhável, com potencial para alcançar leitores de todas as idades e origens. Para os portugueses, porém, esta leitura reveste-se de uma importância ainda maior, por tocar em aspetos fundamentais da história recente que ainda têm repercussões na sociedade atual. É um convite a não esquecer, a reconhecer o passado e a dar-lhe o lugar que merece na memória coletiva.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Borboleta
Autora: Madeleine Pereira
Editora: ASA
Páginas: 176, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 375 x 208 mm
Lançamento: Março de 2025
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