Ar-Men – O Inferno dos Infernos, de Emmanuel Lepage, é a segunda obra que a Ala dos Livros edita em 2025. Depois do magnífico O Fogo, de David Rubín, a editora estreia-se na edição do trabalho de Emmanuel Lepage, um nome muito respeitado da banda desenhada europeia, de quem a ASA havia lançado, em 2006, o díptico Muchacho.
E depois de finalizada a leitura deste Ar-Men, uma coisa se torna por demais evidente: eis-nos perante uma obra gráfica de rara beleza, onde a força narrativa se funde com um trabalho visual deslumbrante. A característica mais impressionante deste livro é, pois, e sem dúvida, a qualidade fantástica das ilustrações, que ultrapassam a simples função de acompanhar o texto e se impõem como verdadeiras obras de arte. As páginas parecem frescos pintados com esmero, onde cada detalhe convida o leitor a deter-se, a observar lentamente as texturas, os jogos de luz e sombra, e a expressividade quase tátil das cenas.
As ilustrações não são meramente descritivas, mas carregadas de simbolismo, emoção e atmosfera. Lepage trabalha com uma paleta cromática rica, onde o cinzento das tempestades, o azul profundo do oceano e os tons quentes dos momentos interiores se entrelaçam para criar uma ambiência poderosa. O mar, personagem silencioso mas constante, é retratado com tal intensidade que quase se sente o salpicar da água e o rugir do vento nestes maravilhosos desenhos. E o farol, centro físico e metafórico da narrativa, é ilustrado com uma imponência que impõe respeito, como uma entidade viva. Tudo é belo neste livro. Mesmo que não houvesse história, que não houvesse qualquer texto, este já seria um livro apetecível para observar!
Mas, claro, há história. E a mesma é sobre o farol Ar-Men, um dos mais famosos do mundo devido a ser dos mais expostos e de mais difícil acesso, não só da Bretanha, como de todo o mundo. Aqui o mar não faz concessões de tempo ameno e a bonança parece sempre chegar tarde. Por esse motivo, a funcionalidade deste farol, a de guiar os inúmeros barcos que por ali passam, também é de extrema relevância.
A obra mergulha na personagem de Germain, um dos faroleiros que assegura o normal funcionamento do farol. É uma história de retalhos, de vislumbre, com vários elementos oníricos, e especialmente contemplativa. Mas não é este o único fio narrativo da obra. Na verdade, estamos perante três narrativas que se encaixam - não de uma forma tão airosa assim, lamento referir, mas já lá irei - umas nas outras: 1) a narrativa principal, já referida, da vida de Germain; 2) a narrativa que nos leva ao passado, quando, através da personagem de Moizez, acompanhamos o longo e penoso processo de construção do farol; e 3) uma terceira narrativa que é uma história dentro de outra história, que Germain conta à sua filha e que nos leva até à mitologia da cidade lendária de Ys.
Voltando à primeira linha narrativa, a de Germain, acompanhamos o isolamento e os desafios do quotidiano que implica ser faroleiro em Ar-Men. A personagem acaba por se sentir num misto de prisão física e mental, que a leva a congeminar ideias com o passado e a mergulhar num sentimento de perda que habita a sua existência. É um bom tema que talvez até merecesse ser mais desenvolvido pelo autor.
A segunda vertente da narrativa é histórica e mais informativa, surgindo na forma de flashbacks que contam a construção do farol e os sacrifícios feitos por aqueles que ousaram desafiar o mar para erguer esta sentinela de pedra. A dureza da vida dos construtores, a violência das tempestades e os muitos naufrágios que ali aconteceram conferem um peso trágico à história do lugar. Lepage mostra-nos como Ar-Men é mais do que um ponto geográfico: é um monumento à resistência humana face às forças incontroláveis da natureza. Apreciei especialmente esta segunda vertente da história.
A terceira dimensão é quase mitológica e simbólica, e diz respeito às lendas, com base na história da cidade de Ys, do rei Gradlon e da princesa Dahut. Há um lado onírico e introspectivo nesta camada narrativa, onde se cruzam os fantasmas do passado do protagonista e as histórias contadas por marinheiros. Esta valência procura dar à narrativa (mais) um tom poético e filosófico, mas que era totalmente dispensável. Sou-vos sincero: se o livro não é mais impactante do que aquilo que é, isso deve-se a esta certa "esquizofrenia" no argumento que torna o livro menos coeso do que aquilo que poderia ser. A questão da lenda da cidade de Ys não é mais do que um engodo rebuscado para que o autor nos dê um outro tipo de ilustrações (que também são belas, lá isso é verdade) face às constantes nas outras duas narrativas. E é certo que o autor tenta justificar este "stunt" narrativo, à boa maneira do filme Inception, de Chris Nolan, com o facto de ser uma história dentro de uma história. Mas, pelo menos quanto a mim, não funcionou propriamente bem. Valia mais que o autor se ficasse pelas duas histórias passadas no farol, que dariam uma perspetiva de presente e passado. Digo eu. Dei por mim a desejar que esta parte dedicada à cidade de Ys terminasse depressa aquando da minha leitura. O que é raro acontecer-me enquanto leitor.
E é pena porque, tal como já disse, estávamos a caminhar para que se reunissem as condições de estarmos perante um livro perfeito na conceção, que se poderia ler tanto com os olhos como com a alma.
Mesmo assim, reitero que há tanta coisa bela neste livro! O texto, embora contido, é denso de significado e pontuado por momentos de silêncio visual que dizem tanto quanto as palavras. Há passagens inteiras onde as imagens bastam, e onde o leitor é levado a mergulhar no ritmo próprio das ondas e dos pensamentos.
Apesar da densidade das temáticas — a morte, o isolamento, o confronto com a natureza, a loucura, a perda —, há uma beleza serena na forma como Lepage conduz a narrativa. A compaixão pelo ser humano, a admiração pela força da natureza e o fascínio pela história estão presentes em cada traço. É uma leitura que convida à contemplação e que ressoa emocionalmente muito depois da última página.
A edição da Ala dos Livros é belíssima, mais uma vez. Com um formato bem grande - semelhante ao de O Burlão nas Índias, Pocahontas ou O Inferno de Dante - este é um livro de grandes dimensões, que nos enche os braços... e os olhos. E por tudo o que já referi sobre a beleza contemplativa encontrada nos desenhos do autor, parece-me que a opção por este grande formato em Ar-Men é mais do que bem-vinda. O livro apresenta capa dura baça, com detalhes a verniz e uma bela lombada em tecido que aumentam ainda mais o requinte da edição. No miolo, o papel é brilhante e de excelente qualidade, enquanto a impressão e encadernação também são muito boas.
Em suma, Ar-Men não sendo perfeito devido àquilo que aparenta ser um capricho narrativo do autor, é um daqueles livros que além de ser lido, também deve ser observado, sentido e, acima de tudo, contemplado. As suas imagens têm o poder de ficar na memória como as grandes pinturas, aquelas que nos comovem sem necessidade de palavras. É uma obra para se voltar a ela, como se volta a um farol na escuridão.
NOTA FINAL (1/10):
8.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Ar-Men - O Inferno dos Infernos
Autor: Emmanuel Lepage
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 250 x 340 mm
PVP: 27,50€
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