terça-feira, 4 de novembro de 2025

Análise: Corpo de Cristo

Corpo de Cristo, de Bea Lema - Iguana - Penguin Random House

Corpo de Cristo, de Bea Lema - Iguana - Penguin Random House
Corpo de Cristo, de Bea Lema

Assim que soube que a editora Iguana iria apostar neste Corpo de Cristo, de Bea Lema, fiquei muito bem impressionado, pois já conhecia a boa reputação da obra. Com efeito, este trabalho foi distinguido com inúmeros prémios internacionais que atestam a sua relevância artística e emocional. Vejo agora, depois de lida a obra, que esta receção entusiástica de público e crítica não se deve apenas à qualidade estética da obra, que naturalmente sobressai pela sua originalidade, mas sobretudo pela coragem da autora espanhola Bea Lema em abordar temas universais, como a doença mental, o amor filial, o papel da mulher e o peso das tradições católicas numa sociedade ainda fortemente patriarcal. A autora consegue, através de um relato pessoal e sensível, transformar uma experiência íntima e dolorosa num espelho da própria evolução social e cultural. Não só de Espanha como do mundo ocidental atual. 

Corpo de Cristo, de Bea Lema - Iguana - Penguin Random House

A história centra-se em Vera, uma menina que cresce numa casa assombrada. E essa "assombração" não será por referência a um demónio literal, mas sim devido à doença mental da sua mãe, Adela. Durante toda a sua vida, Vera pôde observar a sua mãe a arrastar toda a família para uma poderosa teia de ignorância e de superstição. E o mais impressionante é que era assim que, durante décadas, a sociedade olhava para a doença mental. Gosto de achar que, entretanto, evoluímos bastante neste tema... mas não estou tão certo assim. 

O elo entre mãe e filha é o centro emocional da narrativa. Apesar da doença, das crises e do cansaço, o amor entre as duas resiste como uma chama ténue, mas constante. A inversão dos papéis, ao mostrar-nos que é a filha que cuida da mãe, constitui, quiçá, o lado mais comovente do livro. Esse cuidado constante, tão pouco valorizado socialmente - e a que muitas vezes os homens fazem por se mostrar alheios - revela o fardo emocional e físico que recai sobre quem tem que lidar com alguém com problemas do foro mental. 

Corpo de Cristo é, em última análise, um testemunho, uma confissão artística sobre a herança do sofrimento e sobre como os traumas de infância moldam a nossa identidade adulta. A autora mostra com lucidez que a doença mental não é um episódio isolado: é um fenómeno que contamina o quotidiano, desestrutura a vida familiar e deixa marcas invisíveis mas profundas. O “demónio” que assombra a casa é também o reflexo da culpa, da vergonha e do medo que a sociedade inculca nas famílias afetadas. E o papel da religião é-nos mostrado como historicamente negativo para quem já sofre com perturbações mentais.

Corpo de Cristo, de Bea Lema - Iguana - Penguin Random House
O livro levanta uma questão que se afigura como essencial: como é que tratamos, enquanto sociedade, aqueles que sofrem de perturbações mentais? Bea Lema confronta-nos com a falta de empatia e de compreensão que ainda hoje prevalece. Embora o debate sobre saúde mental tenha alcançado espaço, a verdade é que continua a existir um fosso entre a teoria e a prática, entre o discurso inclusivo e a realidade da exclusão, entre a medicação excessiva e o silêncio de quem sofre, direta ou indiretamente. O livro é, por isso, também um manifesto: um apelo à dignidade, à integração e à escuta de quem sofre de doença mental. E, talvez por isso, este possa ser um daqueles livros que também vai conquistar um público fora da banda desenhada.

O impacto emocional da leitura é profundo. A tristeza e o desespero que atravessam o livro são atenuados pela ternura e pela poesia do olhar da autora. Não há aqui ressentimento, mas sim compaixão. O resultado é uma obra que fala simultaneamente da perda e da esperança, da loucura e da lucidez, da destruição e da reconstrução. É um livro que nos obriga a olhar de frente para aquilo que muitas vezes preferimos ignorar.

Corpo de Cristo, de Bea Lema - Iguana - Penguin Random House
Mas se o tema de Corpo de Cristo é mais que pertinente e bem-vindo, talvez seja em termos gráficos que o livro mais se destaca, pois é uma obra de rara originalidade. Bea Lema combina desenho e bordado numa estética híbrida extremamente original que reforça a carga emocional da narrativa. As ilustrações, de traço simples e quase infantil, com canetas de feltro, contrastam com a profundidade do tema, criando um efeito de delicadeza e vulnerabilidade. 

As páginas do livro são, por isso, surpreendentes pela sua diversidade visual e narrativa. Lema recusa a rigidez das grelhas tradicionais da banda desenhada e opta por uma planificação livre, quase orgânica, que traduz o próprio caos emocional vivido pela personagem de Adela. O leitor nunca sabe o que o espera na página seguinte: um bordado, um esboço ou uma mancha de cor. Essa variação cria uma experiência de leitura viva e sensorial, onde o ritmo visual acompanha o pulsar das emoções. Ao mesmo tempo, também apreciei o facto de Bea Lema nunca se ter perdido na originalidade das suas ilustrações: não é a história que serve as ilustrações, mas estas que servem a história. Como sempre deveria ser. Digo eu.

Em termos de edição, o livro apresenta capa mole com badanas, uma manga promocional, marcador de página e bom papel baço no interior. Não é (de todo!) uma má edição, nem nada que se pareça, mas pergunto-me se a obra em questão, dada a sua qualidade e o tema presente dos bordados, não mereceria uma edição mais diferenciada. Com uma capa dura em tecido, por exemplo.

Corpo de Cristo é, portanto, uma obra maior sobre o amor, a doença e a humanidade. Pela sua forma inovadora, pela honestidade emocional e pela sensibilidade estética, Bea Lema oferece-nos uma banda desenhada memorável que todos devem conhecer. Num mundo ainda reticente em falar de saúde mental, esta é uma obra que se impõe como um gesto de coragem e uma prova de que da fragilidade pode nascer a beleza e de que, mesmo nas trevas, o amor continua a ser o nosso fio de salvação.


NOTA FINAL (1/10):
9.5


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Corpo de Cristo, de Bea Lema - Iguana - Penguin Random House

Ficha técnica
Corpo de Cristo
Autora: Bea Lema
Editora: Iguana
Páginas: 184, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Outubro de 2025

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