Depois do excelente e, quanto a mim, algo subvalorizado Sou o Seu Silêncio, Jordi Lafebre, autor de outras obras relevantes como Apesar de Tudo ou Verões Felizes - este último, com argumento de Zidrou - está de volta para mais um livro que se intitula Sou Um Anjo Perdido.
Voltamos à personagem de Eva Rojas por quem eu admiti estar apaixonado na análise que fiz ao anterior livro daquilo a que, julgo, já se pode considerar a série "Eva Rojas".
Neste Sou Um Anjo Perdido a história começa pelo fim de algo e pelo princípio de tudo o que queremos descobrir. Um homem aparece morto numa zona de obras, enterrado em cimento, de cabeça para baixo e tendo apenas as pernas de fora. A inspetora Merkel e o agente Garcia são chamados ao local da ocorrência para investigar o caso e eis que surge Eva Rojas, a psicóloga endiabrada com um jeito especial para brincar aos detetives que, rapidamente começa a desenrolar uma história complexa que é, acima de tudo, mais um daqueles episódios dignos da sua vida caótica.
Daí a que Eva passe a ser constituída suspeita do crime ocorrido é um passo curto e a protagonista acaba mesmo por ser interrogada pelos dois agentes. Há um crime, há uma vítima, ou talvez haja apenas um conjunto de azares e coincidências. E depois há Eva Rojas, esta personagem carismática e inesquecível que nunca bate certo com nada, mas bate sempre de frente com a vida. E quando nos damos conta, já estamos presos à sua voz, àquele fio narrativo que se enrola e desenrola como se estivéssemos sentados num café a ouvir alguém que sabe contar histórias demasiado bem. Assim é esta personagem de Jordi Lafebre, um autor que além de exímio ilustrador, é um excelente contador de histórias.
E é mesmo pela história, divertida e dinâmica, com um travo agridoce, que este Sou Um Anjo Perdido nos conquista: pela forma como Eva nos toma pela mão e nos fala. Como se estivéssemos ali, ao lado dela, a ouvir uma crónica de amor, tragédia e riso. Lafebre não escreve apenas uma história policial; escreve sobre a pequena turbulência humana que é sermos alguém no mundo. E Eva - que se julga perdida, mas nunca está totalmente perdida - é um mapa imperfeito onde temos prazer em deixarmo-nos perder.
A estrutura em interrogatório utilizada pelo autor para nos contar os acontecimentos que levaram àquele homem morto, funciona como um mecanismo delicioso. O diálogo de Eva Rojas com os inspetores cria ritmo, humor, hesitações, pausas, desvios... enfim, tudo aquilo que acontece quando alguém tenta relatar um episódio e se lembra de tantas coisas, aparentemente sem importância, pelo meio. É verosímil e cómico, e tão real como a própria vida. Eva interrompe-se a si mesma, suspira, ri de si própria, perde o fio à meada, recupera-o. Esta textura narrativa dá alma ao livro e transforma a leitura numa conversa viva.
A história, novamente ambientada na cidade de Barcelona, envolve muitas coisas que, a bem de não estragar o prazer de leitura a quem vai mergulhar nesta obra, refiro apenas, sem dar mais indicações ou explicações: toca os temas do futebol, da prostituição, do nazismo, do rapto. Confesso que bastante cedo percebi a forma como a história se iria desenrolar, o que pode ser um ponto menos a favor da obra, já que se trata de uma história de mistério que procura, idealmente, não revelar o desenlace até ao final da mesma.
Seja como for, não deixa de ser curioso que, com Sou Um Anjo Perdido, Jordi Lafebre reitere quase um “modo Lafebre” de contar histórias. Aquela mistura de humor, melancolia, erotismo suave e uma certa esperança positiva faz parte da sua fórmula de contar histórias, em especial nestes dois álbuns dedicados a Eva Rojas. Digo até mais: Eva Rojas tem tudo para nos continuar a dar mais livros, mais momentos, mais capítulos. O autor parece ter encontrado a sua receita, urgindo apenas que nos continue a servir mais belos livros como este.
Mesmo sendo uma série policial, como assim faz crer o subtítulo da obra Um Policial em Barcelona, é Eva Rojas quem rouba a atenção do leitor, pois esta personagem é uma autêntica tempestade em forma humana. É impossível não nos apaixonarmos um pouco por ela. A sua sensualidade natural, o seu humor, a sua honestidade emocional, a sua loucura luminosa... tudo nela é irresistível. A parte policial do livro quase se dissolve perante o magnetismo da própria personagem. O crime é apenas o pretexto; o mundo interior de Eva é o verdadeiro mistério.
E, claro, neste livro a protagonista continua a ser afetada pelas vozes das mulheres do seu passado, que permitem uma dinâmica ainda maior ao relato, e uma forma de tornar os monólogos de Eva Rojas mais realistas, enquanto se pisca, novamente, o olho à importância da saúde mental.
Por falar em saúde mental, desta vez Jordi Lafebre abre-nos uma porta para o passado de Eva ao introduzir a sua mãe, internada num hospital psiquiátrico. É um encontro algo duro, mas necessário. Todo o brilho de Eva tem sombras a sustentá-lo, e o livro deixa-nos espreitar essas camadas profundas sem nunca cair no melodrama. Este olhar íntimo ajuda-nos a compreender as cicatrizes que moldaram a mulher que vemos: divertida, sensual, mas também vulnerável e ferida.
E é nessa abertura emocional que Sou Um Anjo Perdido cresce. A relação com a mãe não é apenas um elemento narrativo; é uma respiração funda no meio da leveza cómica, uma âncora que impede o livro de se tornar demasiado leve. Lafebre sabe equilibrar o riso e o silêncio como poucos autores de BD contemporânea.
Aceito que talvez este livro não consiga surpreender-nos tanto como o anterior, Sou O Seu Silêncio, em que pudemos conhecer, primeiramente, a dinâmica da personagem, das suas vozes interiores, da psicanálise, da investigação criminal, pois todos esses elementos voltam a ser-nos dados neste Sou Um Anjo Perdido, enquanto "round two", mas mesmo não tendo o fator "novidade", este novo livro não deixa de estar muito bem feito. E, quem sabe, talvez este segundo livro possa fazer com que mais gente leia o primeiro volume. Assim espero.
Quanto ao desenho… que maravilha! O traço de Jordi Lafebre revela-se, mais uma vez, dinâmico, elegante e profundamente humano. Limpo, mas vibrante; simples, mas de uma expressividade arrebatadora. Jordi Lafebre parece desenhar sem esforço aparente e com uma vitalidade que se sente em cada vinheta. As personagens movem-se como se existissem para além da página, e Eva então… Eva transborda vida.
A sua expressividade corporal, a sua teatralidade dos gestos, a forma como cada uma das suas poses revela mais do que mil palavras, tudo isto confirma que Lafebre domina a arte de criar personagens que habitam cada centímetro do papel. Quando o texto exige intensidade, o desenho acompanha, bem como quando exige subtileza.
Também as cores são outro destaque. Há uma harmonia cálida, luminosa, que se mistura com tonalidades mais melancólicas quando a história assim o exige. Enfim, é um livro brilhantemente desenhado, difícil de não apreciar, especialmente para leitores habituados ao melhor que a banda desenhada europeia pode oferecer.
A edição da Arte de Autor está muito bem feita, com o livro a apresentar capa dura, com textura aveludada e detalhes a verniz. No interior, o papel é brilhante e de boa qualidade, tal como a impressão e encadernação. Há ainda um caderno suplementar, com generosas 16 páginas, em que somos brindados com um importante testemunho de Jordi Lafebre sobre esta obra e sobre como se inspirou nos seus tempos de criança a viver na cidade de Barcelona. A acompanhar o texto do autor, estão várias páginas com esboços de personagens e ilustrações promocionais. Estamos, portanto, perante uma bela edição da Arte de Autor!
No fim, Sou Um Anjo Perdido confirma aquilo que já suspeitávamos: Jordi Lafebre é um contador de histórias único, capaz de equilibrar humor, policial, poesia e humanidade com uma facilidade que desconcerta. Este livro não é apenas uma boa leitura, é um espaço emocional onde gostamos de regressar porque Eva Rojas nos dá mais do que uma aventura - dá-nos um pouco de vida. E continuo apaixonado por ela!
NOTA FINAL (1/10):
9.6
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
Sem comentários:
Enviar um comentário