quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Análise: Astérix na Lusitânia

Astérix na Lusitânia, de Fabcaro e Didier Conrad - ASA

Astérix na Lusitânia, de Fabcaro e Didier Conrad - ASA
Astérix na Lusitânia, de Fabcaro e Didier Conrad

A série Astérix continua a ser uma das franquias de banda desenhada com mais sucesso no mundo e, sempre que há um novo livro, são milhões os fiéis leitores, ávidos por mais uma história de Astérix, Obélix e companhia. É assim em todo o mundo e Portugal não é exceção. Mas, desta vez, a saudável loucura perante o mais recente livro da série é ainda incrementada pelo facto de este ser a primeira aventura dos gauleses que tem lugar em Portugal - ou em terras lusitanas, se preferirem os mais preciosistas. 

Astérix, Obélix e Ideiafix já visitaram muitos locais do mundo ao longo das suas inúmeras aventuras, mas só agora meteram o pé em Portugal. Naturalmente, compreende-se, pois, o acréscimo de agitação comercial que se tem sentido em Portugal. Posso dizer-vos que são muitas - mesmo muitas - as pessoas que não lendo banda desenhada me têm dito que vão comprar, ou já compraram, o livro. Enquanto incansável defensor da banda desenhada e da promoção desta, isso deixa-me feliz, claro. Embora me deixe, ao mesmo tempo, perplexo perante a forma como as pessoas são redutoras, não demonstrando querer conhecer mais do que o básico. Mas, lá está, olhemos para o "copo meio cheio" - e não para o "copo meio vazio" - esperando que toda esta gente que está a comprar Astérix na Lusitânia ganhe o bichinho para, depois de feita a leitura, querer conhecer mais banda desenhada.

A expectativa para este livro era grande, claro. Se já todos nos tínhamos divertido com as visitas de Astérix e companhia em locais como Itália, Bélgica, Espanha, Suíça, Alemanha, Reino Unido, Grécia ou Egito, entre outros, saber que, finalmente, passados mais de 40 álbuns, os irredutíveis viriam a Portugal, aguçou o nosso interesse. Infelizmente, estamos perante um álbum que desilude a vários níveis. Sendo o segundo livro que tem Fabcaro como argumentista, revela-se bastante inferior a Astérix e o Lírio Branco que, pelo menos, era mais inspirado e menos formulaico.

Astérix na Lusitânia, de Fabcaro e Didier Conrad - ASA
E começo por aí, pois considero que os responsáveis pelos desígnios da série Astérix precisam de responder à seguinte questão: o que queremos, de facto, de Astérix? Além das boas vendas, mas isso é óbvio. Pretende-se fazer evoluir as personagens e os enredos ou tentar fazer cópias mal amanhadas daquilo que já foi feito? Note-se que não me vão ver a referir aquela velha lenga-lenga do "no tempo do Goscinny é que era bom". Não é essa a questão. O problema, quanto a mim, é que, ou bem que se faz a série evoluir, ou bem que se opta por copiar o que já foi feito. E acho que era preferível a primeira opção.

A história de Astérix na Lusitânia é fraca porque... praticamente não existe. Quer dizer, há um engodo, uma muleta narrativa, mas pouco mais que isso. No fundo, este livro de Astérix é um desfile pelos estereótipos associados a Portugal - e alguns deles revelam-se até bastante datados.

A história arranca quando Astérix e Obélix são chamados para ajudar um antigo escravo lusitano, Tristês, que surge na aldeia gaulesa pedindo ajuda para e seu amigo Malmevês que foi acusado de tentar envenenar o imperador César. Ora, tentando ser úteis, isto faz com que a temível dupla de gauleses rume até Olissipo (Lisboa). A partir daqui, desfilam algumas personagens mas sem que haja um real e orgânico desenvolvimento da história. Parece que já lemos esta história em algum lugar, de tão vulgar que a mesma é. Lembram-se, por exemplo, de Astérix na Córsega, de 1973, em que Astérix e Obélix viajaram até à ilha de Córsega para ajudar os locais a resistir à opressão romana? Enfim, mudam os nomes e as caras das personagens, mas a sensação de déjà vu é muito grande.

Tal como Woody Allen foi acusado - com alguma legitimidade, diga-se - de estar a servir-se das cidades onde filmava alguns dos seus filmes (Midnight in Paris, To Rome With Love ou Vicky Christina Barcelona) para que, com esse simples facto de ter a cidade como pano de fundo, conseguir obter um alavancador de sucesso nos seus filmes, sem que, depois, os mesmos fossem suficientemente bons, também isso parece estar a acontecer com este Astérix na Lusitânia. A âncora em que a história se tenta agarrar é apenas ao facto de se passar num território que é novo para a dupla de heróis. Todo o resto parece ser irrelevante.

Quando um livro repetidamente recorre ao mesmo molde, o encantamento inicial transforma-se em previsibilidade e cansaço. E, voltando a Astérix e o Lírio Branco, ao menos nesse caso viu-se uma tentativa de se criar uma história nova, mais impactante. Diferente. Mesmo que também esse livro não tenha sido isento de fragilidades, teve esse mérito. Astérix na Lusitânia é isso: um Astérix que já todos lemos, com uma história mais mal conduzida e mais desinspirada, mas que tem esse apelo a que todos nós, especialmente os portugueses mais parolos, não conseguimos resistir: acontece em Portugal.

E já que falo disso, permitam-me dizer que a representação do povo lusitano por parte de Fabcaro teve alguns bons méritos, é verdade, mas que foram ocultados por um guisado de estereótipos mais desinspirados. Isto porque a ideia que fica é que o argumentista Fabcaro pediu ajuda ao chatgpt, ou a outra plataforma do género, de forma a encontrar quais os estereótipos mais básicos, diretos e lineares da cultura portuguesa, o que, convenhamos, numa série que já se revelou tão inteligente nos tempos de Goscinny ao nível dos estereótipos utilizados, é manifestamente preguiçoso. Temos, claro, alusões ao bacalhau, aos pastéis de nata, aos azulejos, à calçada portuguesa, a Viriato, ao elétrico 28, a Cristiano Ronaldo, ao fado, etc. São referências reconhecíveis, claro, mas vazias. Em vez de se construir personagens ou situações que revelem algo genuíno sobre Portugal, opta-se por clichets que funcionam igualmente bem para qualquer país com uma especialidade culinária famosa ou uma celebridade exportável. É preguiça criativa disfarçada de homenagem.

Há, no entanto, um elemento que se destaca pela positiva: a forma como Fabcaro trabalha a melancolia nacional aliada à saudade. Nesse ponto específico, o argumentista consegue ir mais fundo, explorando um traço identitário que não se esgota no postal ilustrado; pelo contrário, revela sensibilidade e subtileza, tratando a saudade lusitana não apenas como uma piada, mas como uma emoção culturalmente rica, com peso existencial e poético. É precisamente aí que o álbum escapa ao simplismo e mostra um olhar mais atento sobre aquilo que, de facto, distingue a alma portuguesa. Talvez o livro fosse melhor, se o argumentista se tivesse focado mais nesta questão, quanto a mim mais profunda.

Além disso, e embora apresentada de forma mais ténue do que em outros álbuns, apreciei também uma certa crítica social aos tempos do presente, com especial enfoque na globalização, no consumismo e no turismo.

Astérix na Lusitânia, de Fabcaro e Didier Conrad - ASA
Se o vilão de Astérix e o Lírio Branco se revelou uma bela surpresa, o vilão desta história, Sacanês, não me parece propriamente inesquecível. Até mesmo Astérix e Obélix parecem um pouco desligados, como se os autores os pusessem em piloto automático. Or protagonistas cumprem o papel esperado, mas não há desenvolvimento ou surpresa, são veículos para gags. A ideia de os transformar em portugueses teve a sua piada, concedo, mas diria que foi algo metido a martelo, sem grande necessidade do ponto de vista narrativo. Mesmo assim, arrancou-me alguns sorrisos.

Há alguns trocadilhos bem conseguidos e divertidos, mas nessa componente do humorismo não posso deixar de lamentar que se tenha optado por colocar uma personagem que, anteriormente, não dizia os "erres", a dizê-los. Até quando é que vamos deixar que haja tantas "frescuras" em relação à forma como o humor pode deixar algumas pessoas ofendidas? Isto merecia todo um texto de 5 páginas, que não me apetece fazer agora, até porque esta análise já vai longa, mas deixem-me só levantar esta questão: quem é que controla a bitola do que é politicamente correto e do que não é? É que, meus caros, ou nos deixamos de frescuras e deixamos o humor ser - como sempre deve ser - livre ou, então, abrimos o precedente de nos sentirmos ofendidos com tudo. E aí não há volta a dar e podemos afirmar que o humor está oficialmente morto. Se se achou que ter uma personagem africana a dizer mal os "erres" era ofensivo... porque não se achou que considerar os portugueses saudosistas ou melancólicos era ofensivo? Percebem o que quero dizer? Ou há regras iguais para todos ou parem de uma vez por todas com este exercício ridículo da moda. Quanto a mim, a bem do humor independente e livre, gosto que se brinque com as coisas que me caracterizam, seja a minha nacionalidade, a minha raça, o meu género, a minha cor, a minha cultura ou a minha pessoa. Mas, enfim, parte do mundo parece ainda não estar pronta para esta conversa.

Avançando, do ponto de vista visual, o trabalho de Didier Conrad volta a mostrar-se eficiente. Honrando os desenhos de Uderzo, o autor oferece-nos um trabalho bastante competente. Não estará ao nível de Astérix e o Grifo, um dos melhores da série, com a representação da neve a oferecer-nos um belíssimo desenho e cor, mas cumpre bem. Talvez a representação das Azenhas do Mar ou da cidade de Lisboa pudesse estar mais aprimorada em termos de detalhes no desenho, mas nota positiva, também, para a representação visual de Astérix e Obélix enquanto portugueses. Nem faltam pelos no peito e nos braços a Obélix!

A edição portuguesa da obra é na expectável capa dura brilhante, com bom papel brilhante no interior. Boa impressão e boa encadernação. 

Tenho visto muitas críticas apontadas à edição portuguesa da obra por conter demasiados "opás" sempre que há a fala de uma personagem portuguesa. Convém explicar que isso acontece como forma de ultrapassar uma dificuldade de tradução. Na edição francesa da obra, sempre que uma personagem lusitana fala e utiliza uma palavra que termine em "ion", como "situation", por exemplo, essa expressão é apresentada com "ão". A expressão que acabo de inventar, para exemplificar, "cette situation est amusante" seria algo como "cette situatão est amusante". Ora, traduzindo esta expressão para português, perder-se-ia a piada original. Para colmatar isso, a editora portuguesa decidiu colocar um "ó pá" em cada expressão que é dita com este tipo de trocadilho. Percebo que não era fácil dar a volta a questão, mas junto-me ao coro de vozes que não apreciou esta opção. Se fosse uma piada feita menos vezes, seria menos chata. Assim sendo, torna-se demasiadamente repetitiva. Se bem que, lá está, também na edição original francesa a troca dos "ions" pelos "ãos" se tornará(?) igualmente repetitiva. Não apreciei estes "ó pás", mas tomara eu que isso fosse o pior deste Astérix na Lusitânia. Não me importava que fosse colocado o dobro dos "ó pás", se a história fosse melhor ou mais inesquecível, em termos positivos.

Em suma, Astérix na Lusitânia não é péssimo... e até se lê bem. Mas a verdade é que a obra pouco aquece e muito arrefece, mostrando-se desinspirada e com uma representação dos portugueses demasiadamente básica e simplista, o que não deixa de constituir uma oportunidade desperdiçada na única vez em que os heróis gauleses visitam o nosso território. Ao tentar-se seguir a fórmula de ter muitas referências ao povo português, os autores esqueceram-se de uma coisa crucial: a história. Que aqui é meio atabalhoada, forçada e extremamente desinspirada.


NOTA FINAL (1/10):
6.0

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Astérix na Lusitânia, de Fabcaro e Didier Conrad - ASA

Ficha técnica
Astérix na Lusitânia
Autores: Fabcaro e Didier Conrad
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 21,8 x 29 cm
Lançamento: Outubro de 2025

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