terça-feira, 18 de outubro de 2022

Análise: Spirou - Diário de um Ingénuo

Spirou - Diário de um Ingénuo, de Émile Bravo - ASA

Spirou - Diário de um Ingénuo, de Émile Bravo - ASA
Spirou - Diário de um Ingénuo, de Émile Bravo

Começo, desde já, por dizer que Spirou - Diário de um Ingénuo é, sem margem para dúvidas, o melhor álbum de banda desenhada que a ASA lançará em 2022. E digo-o, corajosa mas não levianamente, sabendo que o ano ainda não acabou e ainda poderão surgir belos livros de bd por parte da ASA, até final do ano. Mas a qualidade deste livro é suficiente para eu me sentir seguro desta afirmação. Aliás, até vou mais longe e digo que este é um dos melhores livros de banda desenhada do ano.

Fazendo parte da coleção Spirou e Fantasio visto por, que nos traz livros dedicados a estas personagens, mas com uma abordagem diferente da considerada "clássica", este Spirou - Diário de um Ingénuo marcou o ingresso do autor Émile Bravo nesta coleção. Entretanto, o sucesso foi tanto – e merecido – que o mesmo autor já contribuiu para a mesma coleção com L’Espoir Malgré Tout, dividido em quatro (!) volumes.

Diário de um Ingénuo tem a valência de ser um álbum seminal da personagem, que procura responder a algumas questões que a leitura da série Spirou sempre nos fez indagar. Porque é que Spirou trabalha num hotel, enquanto paquete? Porque é que nunca tira a farda? Quem é Fantasio? Quem é Spip? Quais as origens do protagonista? Porquê o próprio nome "Spirou"?

Émile Bravo dá-nos respostas a estas questões – e a muitas mais – de uma forma harmoniosa e tão credível, que quase fica no ar a ideia de que este foi o primeiro álbum de Spirou de sempre! E acho até que será por esse motivo que este livro é tão agradável de ler. Porque, de forma natural e sem tentativas demasiado forçadas, Émile Bravo consegue trazer à tona da leitura, tudo aquilo que nos fez apaixonar pela banda desenhada franco-belga clássica quando ainda éramos crianças. A ingenuidade, a seriedade, a construção de uma personagem principal que encerra em si um conjunto de valores assentes em questões éticas – mesmo que de uma forma aparentemente ingénua – e, claro, sempre com um misto de aventura. Ler Spirou - Diário de um Ingénuo é mergulhar num passado feliz em que um livro de banda desenhada poderia ser o refúgio de uma criança solitária ou o destino dos sonhos de aventura de jovens com sede de viver.

Spirou - Diário de um Ingénuo, de Émile Bravo - ASA
É engraçado que este livro me tenha remetido tanto para os primeiros álbuns de Tintin que li. E quando falo nisto não me estou a referir à própria ligação direta que o autor faz na história, em que até coloca Spirou a vestir as roupas de Tintin e, consequentemente, a ficar idêntico a este. Não. Refiro-me mais ao tom suave, naïf, mas pleno de aventura, de aprendizagem e de humanismo com que o autor nos brinda.

Para além de responder às questões já referidas, Émile Bravo monta muito bem uma bela trama que, mesmo assumindo um tom ligeiro e mundano, tem como pano de fundo o período que sucedeu à ocupação nazi. Como tal, vamos assistindo a uma negociação no hotel onde Spirou trabalha, entre alemães e polacos que, eventualmente, culminará no avanço da guerra. Tudo feito com um doce e ligeiro humor, enquanto os momentos mais sérios e tensos também nos são dados com ligeireza. É tanta a ligeireza que diria que este Diário de um Ingénuo tem um quê de gourmet. Tudo é dado com subtileza e classe. Saibamos nós, enquanto leitores, detetá-la.

Subtileza também é tudo aquilo que emana do primeiro relacionamento amoroso do protagonista que, além de conhecer aqui a sua primeira paixão, também desenvolve com ela uma relação mútua de auto-conhecimento e consciencialização. Apenas a personagem Fantasio me deixou um pouco desiludido, pois parece-me que Bravo lhe deu um tratamento de pessoa sem escrúpulos e antipática que talvez não case tão bem com o Fantasio que os leitores da série se habituaram a conhecer.

Diário de um Ingénuo é uma oportunidade para adultos mergulharem no seu belo passado nostálgico de leituras de banda desenhada, mas, ao mesmo tempo, também é o presente certo para uma criança de 10, 15, 20, 30, 40, 50 ou 60 anos, que nunca leu uma bd, poder iniciar-se no género. E, portanto, sim, é uma banda desenhada essencial.

Spirou - Diário de um Ingénuo, de Émile Bravo - ASA
Talvez um leitor assíduo de banda desenhada se possa queixar de algumas coisas neste livro, como a planificação clássica e pouco dinâmica, o ritmo de ação algo lento e a tal ingenuidade aparentemente presente na própria maneira de contar a história. São factos presentes, concedo. E não podemos, naturalmente, gostar todos do mesmo. Não obstante, penso ser inegável a maturidade da obra – mesmo sendo também adequada, repito, para os mais novos.

Os desenhos do autor, em linha clara, remetem-nos para o clássico franco-belga, num estilo que já é bastante raro encontrar. À primeira vista, parece que estamos perante uma banda desenhada dos anos quarenta. A planificação é tradicional e algo rígida, com as páginas a terem praticamente sempre quatro tiras de vinhetas. Cada página é, portanto, pontuada com, pelo menos, 12 vinhetas. Algo que hoje em dia é bastante raro de encontrar. Portanto, e também por isso, Émile aproxima-se mais de um Hergé do que de um Franquin na forma como planifica a sua história. Já para não mencionar que o tipo de desenho, nos remete para Tintin. Voluntária ou involuntariamente a verdade é que, prestando homenagem a Spirou, Émile Bravo acaba por também prestar homenagem a Tintin.

No fundo, toda a ambiência visual deste Spirou - Diário de um Ingénuo consegue a proeza de ser clássica no género, mas de forma atual, sendo, portanto, retro e moderna ao mesmo tempo. E isso também está bem patente nas belas cores de Delphine Chedru que decoram as ilustrações de Bravo.

A edição da ASA é bem conseguida. Com capa dura, bom papel baço, boa encadernação e boa impressão, diria que tem uma edição bastante sólida, mesmo não tendo qualquer tipo de extra.

Em suma, e face à qualidade desta aposta editorial da ASA, o meu desejo só pode ser um: que a editora continue a apostar em banda desenhada desta qualidade editando, por exemplo, os restantes álbuns de Émile Bravo nesta série ou outros igualmente bons como La Lumière de Bornéo, de Zidrou e Frank Pé ou Fondation Z, de Filippi e Lebeault, como já havia referido anteriormente. Para isso também contará, certamente, que o público saiba reconhecer a qualidade deste livro, comprando-o. A ASA está de parabéns por esta aposta! Este é, afinal de contas, um álbum essencial!


NOTA FINAL (1/10):
9.5


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Spirou - Diário de um Ingénuo, de Émile Bravo - ASA

Ficha técnica
Spirou - Diário de um Ingénuo
Autor: Émile Bravo
Editora: ASA
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 319 x 237
Lançamento: Setembro de 2022

2 comentários:

  1. Boas Hugo concordo no geral com a sua análise da obra de Émile Bravo embora ache que a leitura do personagem e estrutura da obra é, propositadamente, "clássica" no melhor sentido. Não posso deixar de dar relevo ao expressivo traço de Bravo que evoca o melhor do comic e cartoon clássico de entretenimento. Nota negativa para, mais uma vez, o deficiente trabalho de balonagem que pouco valoriza ou dá ênfase ao discurso dos personagens - e aqui convido quem desejar a consultar a balonagem original e fazer a comparação. Estaremos fadados a isto?...

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    1. Caro Antonio, sim também acho que a estrutura na obra é propositadamente clássica e que Émile Bravo não fez nada ao acaso, aqui. Quanto à balonagem, não sendo perfeita, não me causou grande problema na leitura. Talvez devesse ser mais fiel, concordo, mas mesmo assim, achei um trabalho satisfatório.

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