Os Les Portugais é uma obra de banda desenhada da autoria de Olivier Afonso, filho de pais portugueses, e de Chico (pseudónimo de Aurélien Ottenwaelter), que nos conta uma bela história sobre a grande vaga de emigrantes portugueses que tentou a sua sorte em França, durante os anos 70, de forma a fugir ao regime ditatorial do Estado Novo e à Guerra do Ultramar travada nesse período.
Já tento tido uma muito interessante exposição no último Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, onde os autores até marcaram presença para a promoção do livro – e que voltarão a marcar presença em Portugal, já no próximo Amadora BD -, devo dizer que esta aposta da Ala dos Livros me encheu de curiosidade perante esta história.
Isto, do interesse que cada livro pode ou não pode ter, é sempre uma questão subjetiva, bem o sei, mas, olhando para o facto de ser um livro que retrata um importante – e recente – período histórico dos últimos 50/60 anos de Portugal e de França, e tendo, também, presente que é um tema poucas vezes abordado nos diferentes meios culturais – assim, de cabeça, recordo-me do muito divertido e bem conseguido filme A Gaiola Dourada, de Ruben Alves – diria que este é um livro que tem um forte appeal comercial. E, confesso, mesmo em termos pessoais é um tema que sempre me diz muito. O meu pai, embora tendo tido um percurso bastante diferente dos “emigrantes tradicionais” portugueses desta época, também trabalhou cerca de 20 anos em França. Portanto, também me posso identificar, em alguns pontos, pelo menos, com o relato aqui retratado. E é como é dito no prefácio, "não há português que não possua um familiar, amigo ou conhecido, mais próximo ou mais distante, que não tenha trilhado os caminhos da diáspora".
A história centra-se em Mário que, aos dezoito anos de idade, foge de Portugal, escondido no porta-bagagens de um velho automóvel, com o propósito de evitar a Guerra do Ultramar que, então, Portugal ainda travava nos territórios Angolanos, Moçambicanos e Guineenses. É já na fronteira franco-espanhola que Mário conhece Nel, um outro português que também tenta vingar no território francês.
Sendo, aos olhos do Governo francês, imigrantes ilegais, sem a documentação válida, Mário e Nel terão que se assujeitar a fracas condições de vida e de trabalho, aceitando fazer qualquer coisa, mas acabando, invariavelmente, por trabalhar na construção civil. E, sempre com o intuito de melhorar as condições de vida, acabam por chegar a um bairro de lata nos arredores de Paris, essa meca das luzes, das oportunidades e da boa vida. Mas não para os portugueses.
Para estes, o trabalho continua a ser nas obras e as condições de vida ainda deixam muito a desejar. No entanto, há algo adicional nestes bairros de lata: há a cultura portuguesa que começa a surgir nestas comunidades crescentes. O vinho verde, o futebol, a comida e todas as idiossincrasias do povo português começam a vir ao de cima. E, mesmo num bairro de lata, e longe da família, os emigrantes que ali se instalam parecem encontrar algo semelhante a uma nova família e um desdobramento natural da sua cultura lusitana.
Olivier Afonso conta-nos neste Os Les Portugais uma história biográfica de alguns dos seus familiares e, fazendo isso, dá-nos, também, aquilo a que poderíamos considerar uma bela síntese daquilo que estes corajosos emigrantes portugueses tiveram que ultrapassar. Logicamente, é apenas um relato, que nem sequer aparenta ter a pretensão de querer resumir em si a quantidade imensa de histórias diferentes que, sem dúvida, haveria para contar pois, afinal de contas, foram mais de 700 000 o número de portugueses que migraram para a França durante este período de tempo. Mas uma coisa é clara: todos estes emigrantes tiveram que se superar a si mesmos, aguentando uma vida de muitas privações enquanto estavam longe da sua pátria-mãe e dos seus entes queridos.
A história de Mário e Nel vai sofrendo algumas alterações à medida que vão tentando reconstruir as suas vidas, pois tratam-se de pessoas muito diferentes entre si. A par disso, vão desfilando perante os nossos olhos outras personagens que, sendo baseadas em pessoas reais, acabam por bem retratar as gentes portuguesas deste tempo em França. Especialmente Eva, que contribui para que a história tenha uma vertente mais carinhosa e um certo charme, pela maneira de ser da personagem.
Enfim, a história que Olivier Afonso nos oferece acaba por ser um relato simples, sem grandes truques narrativos, mas que, e talvez justamente por isso, se lê de um só trago, com uma curiosidade que vai crescendo à medida que os diversos momentos que habitam a vida de Mário, Nel e Eva se vão desenrolando. Funciona bem ao nível histórico, pois o autor acaba por oferecer ao leitor algumas informações do quadro político-social que ajudam a introduzir o período histórico em concreto. Não é uma aula de história, mas é um bom resumo do que se estava a passar na altura e que engrandece a leitura da obra. Acho, por isso, que Afonso consegue dosear muito bem a quantidade das coisas que são factos e história, com as vivências pessoais das personagens, não tornando a leitura da obra nem demasiado vazia em termos históricos, nem demasiado académica. Funciona bem, portanto.
Uma pequena correção histórica precisa de ser feita, porém. Ao longo do livro há a referência ao “Regime de Salazar”, fazendo-se até a seguinte menção: “a 25 de Abril de 1974, um levantamento militar, dirigido por capitães contestatários, derruba o regime de António Salazar e põe fim a cerca de 40 anos de ditadura”. Ora bem, Salazar morreu em 1970. Quatro anos antes do 25 de Abril. Percebo que se diga “regime de Salazar”, pois foi ele o principal promotor e mentor deste regime totalitário. Porém, parece-me que a expressão “Estado Novo” seria mais bem utilizada. Para um leitor incauto fica a ideia de que o regime de Salazar caiu com ele vivo e tal não é verdade. Mas bem, sei que isto é um preciosismo apenas, embora sendo um facto histórico, tenha alguma relevância, diria.
Depois, há também uma reflexão induzida sobre as condições de vida destes portugueses que nos vai deixar enternecidos e admirados com algumas coisas que estes bravos tinham que aguentar. No entanto, gostei que o livro não transbordasse comiseração só porque sim. Não se tenta que haja pena destes emigrantes. Tenta-se apenas, isso sim, que a sua história seja contada. O autor também foi bem conseguido ao finalizar a história com graciosidade. Diga-se que este livro tem um belo final.
Mas se Olivier Afonso faz um belo trabalho, com uma história impactante, penso que é justo dizer que as ilustrações de Chico também assentam muito bem no livro. Com um traço semi-caricatural, com linhas simples, mas extremamente eficazes, o autor oferece-nos um belo trabalho neste Os Les Portugais.
O seu estilo é bastante moderno e prático e, se é verdade que por vezes parece bastante simplista, uma observação mais cuidadosa da nossa parte permitir-nos-á verificar que, em muitos casos, os desenhos estão carregados de belos detalhes e que não são, portanto, tão simplistas como parecem à primeira vista. Na caracterização das expressões das personagens foi-me impossível não pensar em Manu Larcenet e naquilo que ele faz no seu impressionante livro O Combate Quotidiano. O que é uma coisa boa, diria.
Gostei também da planificação da obra, que vai sendo bastante dinâmica de forma a não nos cansar e a manter o nosso interesse sempre presente. Nesse sentido, apreciei também que algumas páginas não tenham limites nas vinhetas e tenham o fundo a branco, sendo, à semelhança do que é habitualmente feito em cartoon, centradas nos diálogos que as personagens vão tendo entre si. Chico é inteligente ao não abusar destas opções visuais, o que deixa respirar bem a narração visual. Destaque positivo ainda para as cores que sabem elevar as ilustrações para algo mais especial e belo.
Quanto à edição da Ala dos Livros, estamos perante um belo trabalho em termos qualitativos. Capa dura baça, bom papel brilhante e boa encadernação e impressão. A edição portuguesa tem um formato ligeiramente maior do que a edição original francesa, o que é benéfico para a leitura. Soma-se ainda um prefácio de Manuel Antunes da Cunha que enriquece a história com um belo texto. Há ainda uma nova ilustração de capa que é muito bela. Bem, talvez não remeta tanto para a migração como remetia a capa original, mas não deixa de ser uma bela capa.
Confesso que o título Os Les Portugais me faz um bocado de confusão. Já li o editor a explicar o porquê desta opção e, mesmo admitindo que era um título muito complexo para traduzir – pois o termo “les Portugais”, quando utilizado por franceses em referência a estes migrantes tinha um significado muito especial – acho que outras opções poderiam ter funcionado melhor. Como “Os Portugas”. Sei que “portugas” é um termo pejorativo, mas também “les portugais” o é. Ou então “Os Portugueses”. Ou mesmo utilizar “Les Portugais” com um subtítulo deste género: “a história dos emigrantes portugueses em França”. Algo assim. São gostos e opiniões e, certamente, a minha não será mais válida do que a dos editores que, sem dúvida, muito hão-de ter pensado sobre esta escolha. Mas a questão que levanto é esta: goste-se ou não, por questões de estética linguística, a verdadeira dúvida a saber é se, comercialmente falando, este título não se pode tornar confuso para os leitores que deambulam por uma loja e dão de caras com esta capa. Sinceramente, e tendo e conta a excelente qualidade do livro, faço votos para que tal não aconteça e que este livro venda muito bem.
Por isso, e concluindo, acho que posso dizer que este livro merece ser lido por todos os leitores de banda desenhada. E até digo mais: deve ser lido até por aqueles que não lêem banda desenhada. É um documento histórico, sem ter a pretensão intelectual de o ser – o que já é, por si só, valioso -, que cada português deveria ler. Para além de dar boas informações sobre o enorme êxodo migratório dos portugueses para França, durante os anos 70, também é uma bela história. De superação, de procura por um lugar no mundo, do encontro do amor, da construção de uma família e da rigidez das condições de vida. E agora que falo nisso… até acho que o livro tem o condão de nos tornar mais compreensivos com aqueles que, por um motivo ou outro, se vêm forçados a largar o conforto das suas casas e das suas terras e a migrar para outro país. Sejam eles os portugueses (dos anos 70, mas também dos anos atuais), sejam eles ucranianos, sírios ou de outra nacionalidade qualquer. Que bom é quando um livro de banda desenhada também nos ajuda a sermos melhores humanos.
NOTA FINAL (1/10):
9.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Os Les Portugais
Autores: Olivier Afonso e Chico
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 136, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 270 mm
Lançamento: Setembro de 2022
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