Se há coisas que o leitor mais atento do Vinheta 2020 já deve ter percebido é que eu sou bastante exigente – em termos de argumento e/ou narrativa – quando estou perante uma banda desenhada de ficção científica. De forma errada e redutora, muitas vezes até me dizem: “pois, tu não gostas muito de ficção científica, pois não?”. Bem, na verdade, eu até gosto bastante de ficção científica.
Acontece é que, ao contrário de muitos, não “papo tudo o que me é colocado no prato”, por assim dizer. E, se há premissas inteligentes e pertinentes em tudo o que é filmes, romances, videojogos ou bandas desenhadas de ficção científica, a verdade é que acabo por encontrar muitas pontas soltas e imperfeições ao nível do argumento que me deixam insatisfeito muitas vezes. São inúmeros os casos onde isso acontece. Mas, inversamente, também os há em que fico muito satisfeito com a história futurista e de ficção que me é dada.
Senciente, de Jeff Lemire e Gabriel H. Walta é um desses exemplos! E, aliás, as primeiras linhas acima serviram-me para relembrar que, de facto, eu sou muito exigente com uma banda desenhada de ficção científica. Não me basta que a mesma seja bem desenhada – o que acontece muitas vezes -, nem me basta que a mesma tenha uma bela premissa – o que também acontece em vários casos. É necessário que, depois disso, haja um bom argumento e uma bela narrativa. Dir-me-ão: “então, mas isso é assim para qualquer livro de banda desenhada”. É verdade. Porém, quando o autor duma história me coloca num ambiente futurista, criando novas realidades que (ainda) não têm paralelo na existência dos nossos dias, acabo por ser um leitor que exige que toda essa realidade científica e futurista seja, pelo menos, credível e bem explanada. Caso contrário, se a credibilidade desaparece, as ideias do argumento acabam por ser aleatórias e, portanto, menos boas.
Como já referi acima, Senciente deixou-me satisfeito e acabou por me encher as medidas em termos de, praticamente, tudo. Uma boa premissa, uma boa história, uma boa narrativa e uma boa arte visual. Bem, quanto a este último ponto, embora Walta tenha os seus méritos, não posso dizer que o seu trabalho nesta obra tenha sido isento de algumas fraquezas. Mas, quanto a isso, já lá irei.
Olhando para a premissa, argumento e narrativa, posso dizer que, pensando em algumas das obras de ficção científica de Jeff Lemire, como Descender, Gideon Falls ou o mais recente, e “fraquinho”, Primordial, Senciente está vários furos acima, oferecendo-nos uma das histórias mais escorreitas e bem conseguidas do autor nos últimos anos.
A história é simples de contar: toda ela se passa a bordo de uma nave espacial. Um grupo de colonos do planeta Terra é transportado numa nave espacial em direção a uma nova colónia. Até aqui não há nada de muito original e os filmes 2001 Odisseia no Espaço ou Alien poderiam ser alguns, entre muitos outros, que vêm à memória. No entanto, rapidamente a premissa se desenvolve para algo mais intenso e que nos deixa a pensar.
Após um ataque separatista, todos os adultos a bordo da nave são assassinados. Que vidas restam então naquela nave? As das crianças, as únicas sobreviventes, e a vida artificial. Ou seja, Valerie, uma espécie de computador de bordo ultra-evoluído, com inteligência artificial, que controla a nave e que assume o papel de protetora das crianças. Isto, por si só, já seria pano para mangas em termos de uma bela premissa narrativa para explorar. A relação máquina/pessoa e a tal ideia da máquina ter noção de si mesma, isto é, ser senciente. Maravilhoso e atual tema que Jeff Lemire nos traz, oferecendo-nos, também, um belo conjunto de personagens que nos cativam sem, no entanto, nos revelarem muito de si mesmas. Deixando-nos, por isso, expectantes.
Depois, e como se a situação não fosse já complexa de resolver, torna-se ainda mais complicada quando outras forças – com inteligência natural e artificial – querem assumir o controlo da nave espacial que transporta as crianças.
Em termos de narrativa, gostei bastante da forma tensa, em modo thriller, com que a história nos vai sendo dada. Não vos vou negar: há muito que uma história não me deixava tanto em “pulgas” para a acabar de ler, assim que chegava ao final de cada um dos capítulos, terminados em forma de cliffhanger e deixando, portanto, todo o suspense no ar. O trabalho de Lemire neste cômputo é verdadeira exímio.
Se Lemire nos embala a um ritmo frenético e tenso em toda a obra, devo dizer que a história só peca mesmo, quanto a mim, pela resolução final que o autor lhe confere. Tenho que dizer que, à medida que ia lendo o livro, ia congeminando a possibilidade de um final melhor – e que levantasse mais questões e reflexões – do que aquele que, eventualmente, Jeff Lemire acabou por nos oferecer. E só por isso é que a história me deixou algo desiludido. Não vou revelar a minha ideia da resolução da história sob pena de, ao fazê-lo, estragar a piada da leitura aos que forem ler este livro posteriormente a lerem este texto. Mas, repito, Jeff Lemire passou ao lado de uma ideia genial que, infelizmente, acabou por não "agarrar". Embora, convenhamos, ande lá perto. Seja como for, e opções de finais de histórias aparte, este é um belo livro onde Jeff Lemire se mostra muito inspirado e coeso.
Quanto ao trabalho de ilustração de Gabriel H. Walta, devo dizer que o autor tem o grande mérito de nos oferecer um conjunto de ilustrações com uma identidade muito própria, que consegue a proeza de tornar Senciente diferente em termos visuais de outras histórias de ficção científica. O seu estilo de desenho, meio rabiscado, as suas cores algo baças e mortiças e, até, a própria conceção visual dos cenários, parecem levar-nos para um estilo futurista algo retro – se é que isso faz algum sentido.
Com efeito, são desenhos que parecem ter sido pensados e desenhados não nos anos 2020, mas sim nos anos sessenta ou setenta, imaginando como seria o futuro daí a algum tempo. E, talvez por isso, possa parecer um estilo de ilustração demasiado vintage para uma história de ficção científica. Mas também é aí, pelo menos na minha opinião, que reside o charme visual das ilustrações de Walta.
Onde o autor, infelizmente, não brilha tanto é numa (considerável) quantidade de vinhetas onde salta à vista uma certa ausência de detalhes que acaba por empobrecer alguns cenários, expressões faciais ou até mesmo alguns acontecimentos da história, deixando no ar a ideia que estes parecem inacabados. A crueza dos seus desenhos também é sentida embora, neste caso, já me pareça mais uma opção estética do que uma fraqueza. Seja como for, e goste-se mais ou menos, a verdade é que o trabalho de Walta também presta um bom contributo à história congeminada por Jeff Lemire.
Quanto à edição da G. Floy Studio, desta vez não temos extras como ilustrações de outros autores, capas alternativas ou outro tipo de material. Não obstante, o livro apresenta uma boa edição ao nível físico, com capa dura, papel brilhante de boa qualidade e boa impressão e encadernação.
Em suma, Senciente é um belo livro! Jeff Lemire apresenta-se verdadeiramente inspirado e monta-nos uma bela trama, que ansiamos por resolver, através de uma leitura compulsiva. Gabriel H. Walta, por sua vez, dá-nos um conjunto de ilustrações carregadas de originalidade e de um estilo muito próprio. Não restam dúvidas de que este é um dos melhores lançamentos da G. Floy Studio este ano!
NOTA FINAL (1/10):
9.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Senciente
Autores: Jeff Lemire e Gabriel H. Walta
Editora: G. Floy Studio
Páginas: 168, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Junho de 2022
Sem comentários:
Enviar um comentário