A editora Tigre de Papel que, tanto quanto sei, não tem experiência na edição de banda desenhada, publicou recentemente uma das obras mais incontornáveis do célebre Joe Sacco, que dá pelo nome de Palestina!
Esta foi uma ótima surpresa a vários níveis. Em primeiro lugar, porque é sempre positivo vermos que a banda desenhada vai conquistando, gradualmente, mais espaço nas livrarias e nos catálogos das editoras, com um maior número de obras lançadas por cá. Em segundo lugar, é bom que a Tigre de Papel seja mais uma das editoras portuguesas a perceber isso e que tenha apostado em bd. Em terceiro lugar, é muito positivo ver que ficamos com mais uma obra de Joe Sacco disponível.
Depois de, em 2019, a Levoir ter editado Gorazde: Zona Protegida, na sua coleção de Novelas Gráficas, devo dizer que fiquei fã do estilo de narrativa de Joe Sacco. Tão real e tão vívido e, ao mesmo tempo, com tão belas ilustrações num traço muito próprio do autor e que se assume como “reportagem de guerra em bd”. De facto, é isso que aqui temos.
E, voltando a Gorazde: Zona Protegida, devo confessar que quando em 2019 li essa obra pela primeira vez, fiquei maravilhado com o belo trabalho de Joe Sacco. Como é óbvio, já conhecia de reputação o trabalho do autor, mas nunca tinha perdido mais tempo com a sua obra do aqueles momentos em que folheei em loja alguns dos seus livros. Não tinha lido nenhum na íntegra. E, talvez também por isso, fiquei verdadeiramente admirado com a qualidade de Gorazde: Zona Protegida. Este tipo de reportagem de guerra em banda desenhada, baseada nos testemunhos que Joe Sacco recolheu em pleno conflito militar, impressionou-se pela aspereza, transparência, força emocional e, claro, também na vertente visual, já que o traço do autor é muito personalizado.
Assim, partindo para a leitura deste Palestina que já havia sido editado em Portugal há uns anos, em dois volumes, que estavam totalmente esgotados, posso dizer que, mais uma vez, fiquei encantado com o trabalho de Joe Sacco!
Este é um daqueles livros que importa mais pelo que trata – e como trata – do que propriamente pela forma visual com que o faz. E dizer isto não é dizer que este não é um livro visualmente apelativo. Porque o é. E muito! Mas, quanto a isso, já lá irei. Como estava a referir, o ponto mais relevante da obra de Sacco é o tipo e o teor do conteúdo que nos é dado. Talvez por isso, este livro possa muito bem ser lido por alguém que não lê banda desenhada. Na realidade, funciona mais como um documento obrigatório e legítimo para aqueles que queiram mergulhar no conflito Israel/Palestina que, lamentavelmente, continua tão ativo e atual, muito embora o lançamento original da obra date de 1993! E Palestina assume ainda especial preponderância pelo simples facto de Joe Sacco ter optado por dar voz ao lado palestiniano. Coisa que os meios de comunicação ocidentais pouco ou nada fizeram. Ou têm feito.
E mesmo assumindo este lado e esta "voz", Joe Sacco não parece albergar um tom (diretamente) crítico ou paternalista. Ao invés, parece optar por servir-se de si mesmo, e da sua obra, enquanto fio condutor, enquanto testemunha do lado dos habitantes palestinianos que sempre foram silenciados. Portanto, o discurso não traz grandes reflexões ou, sequer, resoluções, mas sim é um punhado de inúmeros testemunhos reais de palestinianos que foram massacrados, física e emocionalmente, pela ocupação israelita.
Para chegar a todos estes testemunhos Joe Sacco teve que realizar mais de cem entrevistas, quer com palestinianos, quer com israelitas, ao longo dos largos meses em que esteve na Cisjordânia e na Faixa da Gaza, durante os anos noventa. Tudo isto para fazer um álbum de banda desenhada, é mais que meritório, não?
Mas se aquilo que nos é dado, em termos de informações, neste Palestina é de uma riqueza invulgar num livro de banda desenhada, o trabalho de ilustração de Sacco também é muito rico e original em termos visuais.
Com um traço altamente caricatural, o autor consegue criar um estilo muito próprio na forma como retrata os rostos humanos, que enche a sua obra de uma personalidade muito demarcada e difícil de copiar. Os ambientes apresentam meticulosos detalhes que nos fazem perceber o quão perfecionista o autor é nos seus desenhos.
A planificação é extremamente dinâmica com pranchas e vinhetas de todos os tamanhos e feitios. Por vezes, o grafismo da obra até pode parecer algo caótico, com tanta informação textual e desenhos sobrepostos entre si, mas creio que isso tudo faz parte do tal estilo próprio do autor. Quanto a mim, considero que funciona muitíssimo bem para aquilo que o autor nos quer passar. Não imagino este tipo de relato contado visualmente de uma outra forma.
Quanto à edição da Tigre de Papel, há coisas a louvar e outras a lamentar. Começando pelas primeiras, gostei do formato maior e da quantidade enorme de extras que são reunidos no final do livro, com mais de 20 páginas. Há espaço para reflexões de Joe Sacco, fotografias que deram origem a vinhetas, feitura de capas, pranchas excluídas e muito mais. A opção por capa dura também me parece uma boa escolha e que dignifica a obra.
Como pontos menos positivos nesta edição, tenho que dizer que o papel escolhido, baço, me pareceu demasiado fino e que deixa ver os desenhos do verso da página. Também a capa merecia um melhor tratamento final. Em termos de legendagem também me parece que houve alguns problemas devido às fonts escolhidas que se afastam muito dos tipos de letra usados na obra original. E, tendo em conta que estamos perante um autor onde os tipos de letra utilizados importam quase tanto como as ilustrações, é algo a lamentar. Todavia, estas fraquezas não beliscam em nada a relevância da obra e a obrigatoriedade da leitura da mesma.
Com efeito, e em suma, este livro recebe o selo de obrigatório. Quer para os interessados na política atual, quer para os interessados numa banda desenhada que ousa romper alguns dos seus próprios limites. Se calhar até ia mais longe e diria que o livro acaba por ser obrigatório para todas as pessoas com um mínimo de interesse por aquilo que se passa à nossa volta. Palestina é uma obra-prima. Não percam a oportunidade de a ler.
NOTA FINAL (1/10):
9.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Palestina - Edição Especial
Autor: Joe Sacco
Editora: Tigre de Papel
Páginas: 300, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Agosto de 2022
Boas Hugo. Não posso deixar de considerar que esta é uma oportunidade perdida de relançar com qualidade uma obra seminal da actual BD internacional e um dos seus melhores autores, infelizmente ignorado pela maioria dos editores nacionais. Esta edição deveria corresponder á Edição Especial de Aniversário lançada pela Fantagraphics em 2007 mas fica-se por uma pálida reprodução em papel de qualidade inferior, sem acabamentos gráficos de qualidade (estampagem metálica, lombada marcada em tecido, etc..) e sem fundo a cores que destacaria a ilustração da capa. Junta-se a isto a péssima balonagem e os tipos usados na capa - indescritível! Como costumo dizer, publicar, todos publicam, fazer um bom trabalho de edição é outra história. Mau serviço da Tigre de Papel á BD e fãs de BD em Portugal...
ResponderEliminarObrigado pelo comentário. Sim, concordo com as observações que faz. Resta-nos esperar que a Tigre de Papel continue a apostar em banda desenhada e que o faça com maior rigor editorial.
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