segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Análise: A Fera - Uma História do Verdadeiro Marsupilami

A Fera: Uma História do Verdadeiro Marsupilami, de Zidrou e Frank Pé - A Seita

A Fera: Uma História do Verdadeiro Marsupilami, de Zidrou e Frank Pé - A Seita
A Fera: Uma História do Verdadeiro Marsupilami, de Zidrou e Frank Pé

Esta era uma das obras que mais curiosidade alimentou em mim, desde que, há uns meses, soube que iria ser editada em Portugal pel’A Seita. De facto, por diversas ocasiões tinha estado com a edição original, em francês, nas mãos e, mesmo só tendo folheado o livro, a sensação era muito boa e prometia muito. Agora, que já li a edição portuguesa, posso dizer que, neste caso, as aparências não desiludiram. A Fera é uma banda desenhada verdadeiramente maravilhosa!

O facto de reunir dois “pesos-pesados” da banda desenhada franco-belga (Zidrou, no argumento, e Frank Pé, nas ilustrações), já é um fantástico cartão de visita, por si só. Ambos os autores já tinham colaborado no também muito apetecível La Lumière de Bornéo, um Spirou de autor, que espero fortemente que venha a ser editado por cá. No entanto, nem sempre os bons nomes equivalem a uma boa produção artística. Quantas vezes dois bons músicos se juntam para fazer música e o resultado não é grande coisa? Quantas vezes um bom realizador se junta a bons atores e o resultado também não é nada por ali além? E, na banda desenhada, especificamente, quantas vezes autores de renome se juntaram para fazer algo cujo resultado foi "fraquinho"? Felizmente, este não é o caso. A Fera traz-nos dois autores excelentes, muito inspirados e a convergirem os seus talentos para a criação de algo marcante.

A Fera: Uma História do Verdadeiro Marsupilami, de Zidrou e Frank Pé - A Seita
A premissa deste livro é reimaginar a origem de Marsupilami, a célebre personagem da banda desenhada, criada por André Franquin, que apareceu originalmente nas histórias de Spirou e Fantásio. Mas, em vez de partir para uma abordagem “a la” Franquin, os autores optam por uma história pesada, adulta e muito mais próxima do drama do que da comédia.

Falemos, então, e em primeiro lugar, do argumento. Estamos em 1950, com os resquícios do fim da segunda guerra mundial ainda muito presentes. A história começa quando Marsupilami é capturado na selva da Palombia pelos índios Chahuta, e vendido a traficantes de animais exóticos, acabando, depois, por desembarcar no porto de Antuérpia, Bélgica.

A bem ou a mal, o pequeno marsupial lá consegue chegar aos subúrbios de Bruxelas, onde é resgatado por uma pequena criança, François, que é verdadeiramente apaixonado por animais, passando a vida a levá-los para casa. Marsupilami é apenas mais um desses animais. E se no enredo, de forma global, as coisas até podem não parecer tão refrescantes e originais assim e, talvez até, darem-nos alguma sensação de dejá vu perante outras histórias, onde crianças salvaram e esconderam animais (ou aliens, como no filme E.T.), a verdade é que é na narrativa que, a meu ver, Zidrou mais brilha neste livro. Não tanto na história mas na forma como nos conta a história. O livro arranca com uma cena inicial extremamente impactante que abre com chave de ouro a obra. Parece um filme de tão bem pensada e ritmada está a cena inicial. O que até leva a que os créditos iniciais da obra, à boa maneira cinematográfica, só apareçam depois dessa cena inicial. Parece mesmo que estamos a ver um filme e afinal estamos apenas a ler um livro de banda desenhada. Magistral!

A Fera: Uma História do Verdadeiro Marsupilami, de Zidrou e Frank Pé - A Seita
Mas não ficamos só por um bom começo. Zidrou sabe, depois, explorar muito bem as personagens. François, o rapaz que adora resgatar animais com deficiências da rua, acabar por se nos apresentar enquanto vítima de bullying. E isto é feito de forma intensa, através de cenas marcantes, mas sem cair no lugar comum. E, depois, também existe a personagem de sua mãe, a Sra. Steinberg, que tendo-se apaixonado por um soldado alemão durante a guerra, acabou por ficar totalmente sozinha, com François a seu cargo. Tudo bastante adulto e dramático, portanto. A narrativa traz-nos alguns elementos humorísticos que servem mais para atenuar o clima algo pesado da trama. Mas que funcionam bem, cumprindo o seu propósito. Gostei particularmente da forma como Zidrou consegue "esconder" Marsupilami até à página 74. Só aí é que vislumbramos, finalmente, a fisionomia da personagem. Em sentido contrário, achei apenas que certos acontecimentos por vezes poderiam ter uma sequência temporal mais inequívoca. Mas nada que belisque a boa compreensão da história.

A Fera: Uma História do Verdadeiro Marsupilami, de Zidrou e Frank Pé - A Seita
E depois de uma história bem conseguida, temos um desenho de Frank Pé que, dificilmente, deixará alguém indiferente. O autor é dono de um traço franco-belga, que sabe ser hiper-realista na caracterização de cenários, ambientes e animais e, ao mesmo tempo, algo rebelde pela forma caricatural como caracteriza as personagens. O melhor que a escola franco-belga nos pode oferecer, portanto. Se o estilo realista nos pode remeter para uma escola da bd europeia mais moderna, o estilo caricatural com que as expressões e traços faciais são desenhados, relembram-nos o melhor que a banda desenhada europeia já nos deu no passado. Em cima de tudo isto, ainda são aplicadas cores que oferecem uma beleza ímpar aos desenhos.

E há mais! A maneira como Frank Pé enquadra certos planos de câmara, como desenha momentos dramáticos da história, como consegue detalhar os cenários com graciosidade, como planifica e utiliza, em prole da boa narração sequencial, as pranchas e as vinhetas que, cirurgicamente, organiza, são tudo características de um verdadeiro mestre de banda desenhada. O seu trabalho é fantástico e digno dos melhores elogios possíveis!

A Fera: Uma História do Verdadeiro Marsupilami, de Zidrou e Frank Pé - A Seita
Aliás, acaba por ser espantoso que este seja, se não estou equivocado, o seu primeiro trabalho publicado em Portugal. Este autor, precisa de estar mais publicado por cá! No Amadora BD tive a oportunidade de folhear algumas das suas obras em francês, que estavam à venda na Dr. Kartoon e fiquei verdadeiramente maravilhado. Só não as comprei porque já não havia capital para tal. Mas que ficou óbvio como Frank Pé é um ilustrador fantástico, lá isso ficou.

E ainda nem falei na forma como o autor conseguiu ilustrar uma personagem tão complexa como Marsupilami. Optando por esta forma realista, o autor conseguiu oferecer-nos uma imagem acústica completamente nova e original da personagem, mas que, ao mesmo tempo, consegue honrar o legado do génio Franquin.

Em termos de edição - e, felizmente, vai sendo algo a que A Seita nos vai habituando - este é mais um trabalho impecável da editora. Se não for o mais impecável de todos! O livro apresenta uma capa dura bastante espessa, baça e com delicados e subtis acabamentos a verniz na figura de Marsupilami. Além disso, o papel baço de uma espessura bastante generosa, é um papel que sabe puxar pelo melhor que existe na arte de Frank Pé. E, claro, o dossier de extras, que é inédito na versão francesa normal, é mais que apetecível e bem-vindo, ao mostrar-nos, com as palavras do próprio autor Frank Pé, como foi o processo de chegar à imagem final de Marsupilami. E, tudo isto, acompanhado por lindos esboços do autor.

A Fera: Uma História do Verdadeiro Marsupilami, de Zidrou e Frank Pé - A Seita
Só ainda não falei daquilo que menos gostei na obra. O facto de ser apenas a primeira parte de um álbum duplo. Mas digo isso pelas melhores razões possíveis. É que, depois desta história impactante, adornada por lindíssimas ilustrações, a sensação de ficar com a história a meio, e em aberto, é tramada. Parece uma massagem sem final feliz. Mas, lá está, se sabe a pouco é porque estava a saber muito bem! O que, podendo ser uma coisa negativa, é, também algo positivo. 

E, expectavelmente, fica a pairar uma certa incerteza sobre a história, pois não sabemos se o segundo tomo vai estar ao nível do primeiro. Podemos apenas manter esse desejo para nós, enquanto aguardamos que os autores publiquem a segunda parte da história.

Portanto, em conclusão, A Seita acerta em cheio nesta obra de qualidade superior. Argumento bem construído, personagens marcantes, narrativa cinematográfica e ilustrações de deixar água na boca. É um dos melhores livros do ano, sem dúvida, e, possivelmente, o melhor livro de todo o catálogo da editora portuguesa. Que venha o segundo, tão depressa quanto possível!


NOTA FINAL (1/10):
9.7



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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A Fera: Uma História do Verdadeiro Marsupilami, de Zidrou e Frank Pé - A Seita

Ficha técnica
A Fera: Uma História do Verdadeiro Marsupilami
Autores: Zidrou e Frank Pé
Editora: A Seita
Páginas: 164, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Setembro de 2021

4 comentários:

  1. Já o tinha lido e realmente é mesmo muito bom, concordo que seja o melhor lançamento da editora em causa, e eles até tem sido bastante certeiros nas suas escolhas. Este vou comprar mesmo sem precisar de o ver pessoalmente antes da compra, tenho a certeza que é mais uma bela edição do pessoal da A Seita, e do nosso mercado de Banda Desenhada. Será este o melhor ano em termos de lançamentos? não me recordo de tanto lançamento incrível no mesmo ano, e os anos anteriores a este já foram muito bons!

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    1. Caro Bruno! Concordo com tudo o que diz! De facto, é um ano espetacular em termos de edição de excelentes obras. E sim, os anos anteriores até já tinham sido muito bons. Este A Fera é uma obra fantástica!

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  2. Bruno felicito-o pelo seu optimismo mas não nos esqueçamos que o ano foi bastante afectado pela crise pandémica, com lançamentos cancelados ou adiados (estão a ser publicados títulos ainda do calendário de 2020...), coleções suspensas ( Novela Gráfica da Levoir, por exemplo...), editoras que começam a sair do estado de hibernação (Polvo, Kingpin...), outras com listas reduzidas de títulos (G.Floi...) e, acima de tudo, ainda alguma confusão no mercado, com lançamentos sobrepostos (3 títulos de "1984"...), demasiada concentração em géneros (western, adaptações de obras literárias...). Sei que ainda é cedo para fazer o balanço do ano, mas gostaria de ver aqui um pouco de debate sobre a situação acual do mercado de BD nacional. Fica a sugestão...

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