O facto de O Pescador de Memórias ser a única obra que a Kingpin Books edita em 2021, traz consigo, desde logo, um crescente interesse da minha parte. Além disso, e por outro lado, também é verdade que este livro até começou por ser lançado numa versão inglesa – através da editora inglesa Blue Fox Comics – e isso, também cativa o meu interesse. Em último lugar, Miguel Peres é um autor que me tem conquistado devido à diversidade, ou ecletismo de temas, que parece trazer nas suas obras. Por exemplo, o Cemitério dos Sonhos e Random são obras diametralmente opostas. E, ainda assim, ambas funcionam bastante bem.
Isto tudo para dizer que estava bastante entusiasmado com este regresso de Miguel Peres – e da própria editora Kingpin Books. Neste trabalho, o autor faz-se acompanhar de Majory Yokomizo que assina as ilustrações da obra.
E posso, desde já, dizer que, mais uma vez, Miguel Peres assume-se como um argumentista notável e sensível, que sabe levantar questões e reflexões pertinentes nas suas obras. Logicamente, O Pescador de Memórias aproxima-se muito mais da busca pelo Eu que também é feita em Cemitério dos Sonhos do que, propriamente, da ação visceral de Random, mas, ainda assim, esta nova obra também tem muito de original. E é um passo em frente em relação a Cemitério dos Sonhos.
Lethe, o protagonista desta história, sofre de alzheimer. E está a perder as suas próprias memórias, de um momento para o outro, sem que o consiga evitar. Ainda se aventura a tentar pescar as memórias que nadam algures nesse imenso mar do esquecimento. Mas essa é uma tarefa que vai sendo cada vez mais difícil. E se pensarmos que todos nós somos o resultado das memórias e vivências passadas, é fácil de perceber como Lethe se encontra à deriva da sua própria vida e auto-conhecimento. Miguel Peres aborda com sensibilidade – mas sem se tornar lamechas – a questão da doença de alzheimer.
É uma história cheia de alegorias e metáforas, onde está presente uma grande (demasiada?) dose de simbologia que, se por um lado, revela-nos um Miguel Peres mais maduro e mais cuidadoso nos temas que aborda – e especialmente na forma como os aborda -, por outro lado, também torna a leitura demasiado livre a interpretações para quem a lê. Mesmo depois de ler este livro duas vezes, ainda há reflexões e simbologias que eu julgo ter entendido, mas que posso ter falhado redondamente na minha interpretação. E não há nada de mal com isso, diga-se! Além de que, mais uma vez, nos revela um autor mais maduro e que sabe preparar uma leitura para mais do que uma camada de interpretação. No entanto, também considero que, mesmo tratando o leitor como um ser inteligente, que deve tomar a sua própria experiência e interpretação para fazer desta a sua história, talvez pudessem ter sido deixados mais pontos âncora de referência para que a interpretação fosse (mais) inequívoca. Seja como for, isto será uma crítica minha muito pequena a um argumento original, sensível e que merece ser lido.
Uma coisa que também é digna de comentário é a fantástica capacidade de Miguel Peres para começar e acabar este O Pescador de Memórias. Se há bons autores de bd – e não só – que não parecem demonstrar grandes atributos na forma como começam e, principalmente, como acabam uma história, Miguel Peres não é, seguramente, um desses autores. Até porque são esses dois momentos – o começo e o fim - os pontos mais altos deste livro, quanto a mim. Com as primeiras 5 páginas, o autor diz-nos, de forma inspirada, ao que vamos. Com um texto sentido, faz-nos praticamente uma síntese e convida-nos a entrar na (sua) história. E o final, que fecha a narrativa com verdadeira chave de ouro, é de uma carga emocional muito intensa, que é depois ainda sublinhada pela utilização de uma citação do autor Jeff Lemire, em Essex County, que assenta que nem uma cereja no final da obra. Verdadeiramente excelente!
Até me fez esquecer e “perdoar” algum do diálogo que achei menos inspirado e, por ventura, demasiado longo no passeio que Lethe deu de carro com a sua família e com o enfermeiro.
Relativamente às ilustrações, considero este um livro um pouco enganador. E explico porquê, começando pela parte melhor. Em termos visuais, a experiência em O Pescador de Memórias até é bastante agradável. E tudo por causa da paleta de cores suaves que faz com que seja agradável imergir neste universo visual. A forma como as cores são aplicadas, em aguarela, dão toda a harmonia e sensibilidade que o argumento pedia. Majory Yokomizo faz, pois, um excelente trabalho nessa aplicação da cor. É, até, isso, o que “salva” as ilustrações, na minha opinião. Porque, sinceramente, e agora abordo aquela que é a principal fraqueza da obra, o desenho da autora é manifestamente demasiado simples e rudimentar. Eu considero-me completamente aberto a novos estilos de ilustração e, portanto, ninguém me pode acusar de eu ser obtuso face a estilos de ilustração que “saem da caixa”. Até acolho as chamadas novas abordagens modernas à ilustração em bd com muito interesse. Mas Yokomizo não me consegue convencer em relação ao seu desenho, que me parece conter um traço ainda bastante inseguro, onde as expressões faciais das personagens são pobres e a linguagem corporal das mesmas deixa algo a desejar. Dizer que é um mau desenho seria um exagero e uma injustiça da minha parte. Porque não o é. No entanto, considero justo afirmar que esta obra, com um argumento audaz por parte de Miguel Peres, poderia ascender a outro patamar se tivesse uma arte ilustrativa ao mesmo nível. Isso, sejamos honestos, não tem.
Embora seja verdade que há uma mão cheia de coisas que me entusiasmaram nas ilustrações, como alguns planos de detalhe bem conseguidos; a fantástica prancha em que as vinhetas estão rachadas; a lindíssima vinheta que coloca Lethe, a sua mulher e a sua filha a observarem o mar; ou a prancha dedicada aos vários flashbacks da vida do protagonista; também me pareceu que certas ilustrações partiram demasiado cedo para o processo de colorização. Que precisavam de mais cuidado e detalhe. Estão a ver quando uma mulher acorda com olheiras e disfarça isso aplicando muita base na cara? Senti isso a olhar para as ilustrações de Majory Yokomizo. Se as cores são bonitas, também é verdade que escondem – ou disfarçam – alguns desenhos menos bonitos. Dito por outras palavras, se não fossem as cores, a aguarela, a embelezarem os desenhos algo pobres, este não seria um álbum bonito de se observar. E é por isso que digo que, relativamente às ilustrações, este é um livro "enganador". Se o nosso olho despir as cores da obra, o resultado não será tão bom como pode parecer à primeira vista. Mas, felizmente, a obra também é para ser apreciada como um todo e, nesse ponto, Majory Yokomizo consegue entregar um trabalho que cumpre, concedo.
Quanto à edição, estamos perante mais um bom trabalho da Kingpin Books. A capa nova, da autoria de Lucas Pereira é de uma enorme força visual - e que bom seria que os desenhos do interior da obra tivessem este fulgor). A própria lombada merece destaque pois é das lombadas mais cute e originais do ano. Desenganem-se aqueles que não consideram importantes estas coisas, porque o são. Aliás, se estas coisas não fossem importantes, talvez estivéssemos todos a ler webcomics. Não me canso de dizer que a qualidade da edição de um objeto-livro (também) é muito relevante.
Relembre-se ainda que esta nova versão da obra tem 5 páginas adicionais em relação à versão original inglesa. E todas elas – e em especial a página de flashback – contribuíram em muito para a melhor imersão do leitor na obra. Portanto, aqui tenho que dar os parabéns ao Mário Freitas pela sua constante tentativa de melhorar as obras de bd em que mexe. Junte-se ainda um prefácio do autor consagrado Edmond Baudoin e acho que podemos dizer que esta é uma edição muito bem conseguida.
Em conclusão, O Pescador de Memórias é um bom livro, onde Miguel Peres aparece, mais uma vez, bastante inspirado, a levantar questões relevantes e maduras nas entrelinhas do seu argumento. A arte visual não estando, a meu ver, ao mesmo nível da pretensão do argumento, consegue, ainda assim, decorar com belas cores esta história, que nos faz pensar de forma agri-doce sobre a nossa vida, e que tem o condão de começar e terminar de forma absolutamente brilhante. Merece ser lida.
NOTA FINAL (1/10):
8.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
O Pescador de Memórias
Autores: Miguel Peres e Majory Yokomizo
Editora: Kingpin Books
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2021
Sem comentários:
Enviar um comentário