Random é uma obra que resulta dos esforços conjuntos de Miguel Peres, o argumentista, Marcus Aquino, o ilustrador, e Fabi Marques que assegura as cores deste livro. Na verdade, uma nota relevante sobre esta obra, e que vale a pena assinalar, é que foi levada a cabo uma campanha de crowdfunding em 2018, com o intuito de produzir e editar a obra, e que acabou por ser bem sucedida. Enquanto músico, posso dizer que tenho alguma experiência em campanhas de crowdfunding que foram um sucesso, e se há coisa que esta modalidade oferece aos artistas – para além do óbvio alcance de fundos monetários – é um envolvimento recíproco entre criadores e seus seguidores. Antes de sair para o mercado, já a obra conseguiu conquistar um pequeno - ou grande - público que acompanha o artista. E isso é, a meu ver, fundamental e uma forte alavanca para alcançar e delinear um potencial público e mercado. É assim na música e também é assim na banda desenhada, estou certo. Portanto, aplaudo a iniciativa e os apoiantes que acreditaram nesta iniciativa editorial. Valeu a pena!
Falando agora sobre a obra, propriamente dita, devo dizer que fiquei bastante surpreendido – pela positiva – com este lançamento. Olhando, em primeiro lugar, para o conceito deste anti-herói, posso dizer que o português Miguel Peres construiu uma premissa bastante cativante. Confesso até – e acreditem que isto é verdade – que eu já tinha pensado num conceito algo semelhante com o de Random para uma banda desenhada. E digo isto porque, na verdade, Random é uma personagem com que me identifico bastante.
Afinal de contas, quem nunca quis fazer o que Random faz? Imaginem todo o tipo de irritações quotidianas - nos transportes públicos, no trabalho, no trânsito, no supermercado, nos serviços, etc - com que nos deparamos ao longo da nossa vida. Quem é que nunca teve pensamentos completamente agressivos de espancar alguém de forma a fazer-lhe entender algo, de uma vez por todas? É claro que, não sendo nós sociopatas, é normal que nunca partamos para a ação e que estas pequenas (por vezes grandes!) irritações não passem de um mero pensamento ou de uma fantasia que acontece apenas no nosso imaginário. E porquê? Bem, porque sendo cidadãos e tendo auto-controlo e inteligência emocional, sabemos compreender que a partida para o conflito, especialmente o físico, poderá trazer-nos vários dissabores. E de muitas formas diferentes!
Mas Random, o protagonista desta obra, parece não se preocupar tanto com as consequências dos seus atos e decide partir para a violência. Especialmente depois de descobrir que o seu amigo, uma boa pessoa, provida de uma grande consciência cívica, tem cancro e poucos dias de vida pela frente. Isto é a gota de água para que Random sinta que o mundo é verdadeiramente injusto e que nem sempre premeia (alguma vez?) os que são bons. Munido de um taco de baseball e de uma máscara bastante original que lhe cobre a cara, começa então a castigar quem lhe falta ao respeito: seja o condutor que não parou na passadeira; a pessoa que não se desvia para que ele saia no metro; a dona de um cão que não apanha os dejetos do animal da rua; a pessoa que, no cinema, come pipocas fazendo demasiado barulho; o condutor “chico-esperto” que rouba o lugar de estacionamento; ou a pessoa a quem o protagonista segura a porta e que nem lhe diz um simples “obrigado”.
Toda a premissa da obra remeteu-me para o filme Um Dia de Raiva (Falling Down, no título original), com Michael Douglas no papel de protagonista. Completamente enervado por estar bloqueado numa fila de trânsito, Douglas abandona o seu carro no meio da estrada e começa a fazer todo o tipo de atrocidades àqueles que lhe aparecem pelo caminho. E, se a memória não me atraiçoa, também se faz valer de um taco de baseball e de armas de fogo. Portanto, consciente deste facto ou não, Miguel Peres revisita um conceito já existente, embora o faça com a sua própria criatividade, garantido personalidade própria a Random.
A história vai depois andando para a frente e para trás no tempo, aumentando o interesse do leitor. Às tantas, Random parece perder a noção das coisas grandes e pequenas que irritam uma pessoa - e que merecem punição – e, cada vez mais, parte para a violência por "tuta e meia". Parece-me uma coisa bem pensada pois nesta banda desenhada, casualmente ou não, Miguel Peres acaba por nos traçar o início de um comportamento desviante e criminoso. No começo até nutrimos simpatia e compreendemos Random mas, às tantas, já nos parece que as suas ações são demasiado aleatórias e exageradas. Demasiado “random”, portanto.
E se pode parecer que esta obra é algo gratuita na violência que dela emana, a verdade é que considero que a moral desta história, a mensagem que Miguel Peres pretende passar, é que a violência não é o caminho para a resolução dos problemas, dos conflitos e da falta da educação. Pelo contrário, a violência ainda incentiva esse tipo de ações. Mesmo que, no calor dos nossos nervos em franja, face a algo que nos irrita, possamos achar o contrário. É uma história simples e honesta, mas que se lê muito bem. De um só trago até.
E embora, por um lado, eu tenha gostado da forma como o autor resolve e fecha a história, por outro lado, lamentei que o conceito, ao ser resolvido da forma que é, nos prive de novas aventuras de Random. O autor abriu uma porta muito interessante, mas logo a fechou. E isso acaba por saber a pouco. Mesmo que se possa admitir que a última página do livro deixa em aberto a continuidade de, pelo menos, a iniciativa, a atitude e a forma de estar de Random poder vir a renascer numa outra personagem que, eventualmente, saia para a rua com a característica máscara de Random e o seu sangrento taco de baseball.
Random é servido por uma arte que achei muito convincente. Com fortes influências nos comics americanos, a arte do brasileiro Marcus Aquino é estilizada, dinâmica na planificação, com bons enquadramentos cinematográficos, várias splash pages, que acentuam dramatismo à trama, e com personagens que revelam boas expressões faciais e físicas. Sendo uma banda desenhada onde há bastante violência gráfica, importa dizer que o trabalho de Aquino é muito bem conseguido na forma como sabe criar poses dramáticas e marcantes. Considero que algumas ilustrações poderiam ter recebido um pouco de mais detalhes para ficarem ainda melhores. O que está feito está bem feito, mas com mais detalhes ao nível dos cenários, por exemplo, teríamos uma experiência ainda melhor. Mas não deixa de ser verdade que Random é uma obra bem ilustrada, que apela à vista. E para isso também contribuem as cores da brasileira Fabi Marques que aproximam esta obra dos bons comics americanos. Um aspeto moderno e que sabe encher-nos o olho.
A edição que, tal como referi no início do texto, resulta de uma campanha de crowdfunding, está muito interessante, com papel brilhante de boa qualidade e com boa encadernação. Devo dizer que considero que a obra teria beneficiado se tivesse sido lançada em capa dura. Quando temos a obra nas mãos verificamos que talvez seja mais mole e dobrável do que o desejado. Mas, sendo uma edição de autor, compreende-se que cada pequeno custo tenha sido ponderado pelos autores. E, se calhar, esta edição foi mesmo a possível de executar com qualidade.
A bonita capa do livro foi desenhada por Miguel Mendonça. Em termos de design – assegurado por Mário Freitas - Random também está bem conseguido. Destaque para a introdução de dois pequenos extras: o primeiro é uma ilustração de Jorge Coelho e o segundo é uma pequena curta, de quatro páginas, de Miguel Montenegro. É uma pequena história pertinente, bem montada e bem desenhada pelo autor. Mas uma nota negativa tem que ser dada para a presença de 3 erros ortográficos (de alguma gravidade) nesta pequena história. Tendo em conta que a mesma só tem 4 páginas, parece-me um pouco inacreditável que tenham ocorrido 3 erros (2 deles na mesma vinheta!) deste gabarito. Não gosto de ser o “nazi dos erros ortográficos” pois sei que é algo que acontece – e aqui no Vinheta 2020 esse tipo de erros também acontecem, por vezes – mas acho que, ao contrário do ambiente online em que esses erros ortográficos podem (e devem) ser editados e corrigidos, quando estamos perante edições impressas isso não é possível, fazendo com que a obra fique manchada para sempre. Um cuidado redobrado é necessário, pois está claro.
Em suma, esta é uma banda desenhada muito interessante, de fácil leitura e que entretém bastante. Gostei especialmente da premissa que Miguel Peres criou para Random, embora, em termos de arte ilustrativa, esta também seja uma obra muito apelativa e interessante. É importante valorizar a banda desenhada nacional que é boa e esta, seguramente, merece ser valorizada.
NOTA FINAL (1/10):
8.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Random
Autores: Miguel Peres, Marcus Aquino e Fabi Marques
Editora: Bicho Carpinteiro
Páginas: 80 páginas, a cores
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Agosto de 2020
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