Vazio, de Carlos Páscoa, corresponde ao segundo lançamento da editora Escorpião Azul. A primeira obra havia sido Um Trovão no Caminho e Outras Histórias, de António Rocha, já aqui analisado, também.
É mais uma obra de um autor português. Carlos Páscoa, que já tem alguma experiência em colaborações em coletâneas de bd tem neste Vazio, a sua estreia em álbum completo, com uma só história. E, diga-se em abono da verdade, estamos perante um autor com enorme potencial. Nem todas as coisas correm bem nesta obra, mas o potencial do autor, quer no desenho, quer, até, no próprio argumento, é muito interessante. Mas já lá irei.
Esta é uma história que nos leva a um universo de fantasia e de paragens oníricas, mas sempre com uma clara e bem conseguida ponte com a realidade. No fundo, estamos perante uma alegoria para a nossa própria existência.
A personagem principal é Eric, um jovem rapaz que vive no meio de um deserto cinzento, vazio e árido, há tanto tempo que nem sabe como foi lá parar. No entanto, é visitado por uma personagem, Melina, que nos é apresentada como a alma-gémea de Eric. E é então que mergulhamos numa subnarrativa em que Melina nos conta uma aventura que vivenciou em pleno alto-mar e como um velho lobo do mar que conheceu, a fez refletir sobre a sua própria existência.
Dizer muito mais sobre esta história pode ser traiçoeiro para desvendar algo desnecessário para os meus leitores e, portanto, ficar-me-ei por aqui. Mas, não querendo desvendar mais do que o desejável, acho que é óbvio que os intuitos do autor são bastante nobres na história que projetou. E isto porque me parece que há aqui uma tentativa de trazer à tona de água (literalmente) uma luz de esperança para todos aqueles que se encontram num beco sem saída ao longo da sua vida. Onde a magia das pequenas coisas parece estar a findar, onde o dia-a-dia (já) não é mais do que a repetição do dia anterior e onde o espaço para a reinvenção, para a criação e para a imaginação é cada vez mais curto, deixando a nossa vida cinzenta. Sem cor. E sem alegria de viver.
O tom existencialista da obra começa até logo na nota introdutória de Carlos Páscoa. O autor passou por uma fase menos positiva na sua vida, pelas razões que o mesmo enumera, e isso reflete-se inequivocamente na obra que nos oferece. Como se a mesma fosse um exercício pessoal para que o autor encontrasse a tal luz, a tal magia, a tal criatividade que procurava. Como se Eric fosse Carlos Páscoa e como se Melina fosse um Carlos Páscoa mais jovial, mais antigo, menos desencantado.
No entanto, propositadamente ou não, a personagem de Melina até parece resolver bem o problema que Eric experiencia. Dá-nos boas razões e permite-nos facilmente perceber qual é o caminho certo para um desfecho feliz. No entanto, há aqui uma dicotomia porque esta não é necessariamente uma obra feliz. Provavelmente – se a minha interpretação foi a correta – até é uma obra que nos deixa com um sentimento agridoce. É-nos mostrado o caminho certo. Mas será que estamos prontos ou capazes de o seguir? Será que, uma vez perdida a alegria de viver e de nos recriarmos, é impossível voltarmos atrás? São perguntas que, pertinentemente, o autor deixa no ar.
Eric, o protagonista, discursa diretamente para o leitor o que, a meu ver, foi uma boa opção narrativa já que facilmente criamos uma relação com a personagem. E, como estamos a falar de um tema tão aberto a mil abordagens possíveis como é o da imaginação, o autor foi feliz ao recriar um universo do foro fantástico, onde há criaturas mitológicas e magníficas cenas de ação num mar bem revolto.
Em termos de ilustração, há muito potencial neste autor. Fiquei bastante agradado com o seu traço, que me parece bastante dinâmico, moderno e seguro de si mesmo. As suas ilustrações a preto e branco são quase sempre muito bonitas, com personagens marcantes – especialmente o velho lobo do mar e Melina – e que são portadoras de um bom naipe de emoções, muito bem representadas por Carlos Páscoa.
Um destaque grande tem também que ser dado às fantásticas representações do mar revolto e da chuva. Parece que somos arrastados para o centro da tempestade. A forma como estas cenas em alto mar são ilustradas é espetacular e impactante. Se há autor que poderia fazer uma adaptação para bd do filme A Tempestade (Perfect Storm, no título original), com George Clooney no papel principal, julgo que Carlos Páscoa seria o autor adequado. Impressionante o seu trabalho nestas cenas marítimas.
Infelizmente, também tenho que dizer que as ilustrações que o autor nos oferece em Vazio, não estão todas ao mesmo nível entre si. Por vezes, algumas pranchas são verdadeiramente heterogéneas na qualidade do desenho. Se há uma vinheta espetacular numa página, nessa mesma página também pode haver uma vinheta bem mais “fraquinha”. Especialmente nas ilustrações de Eric, o protagonista desta obra. Não é que os desenhos passem a ser intragáveis. Nada que se pareça. Mas temos em alguns momentos desenhos magníficos que são acompanhados de perto por outros desenhos menos rigorosos. E isso gera, claro, alguma incongruência.
Enquanto escrevo estas linhas abri aleatoriamente o livro na página 50 e, sem procurar muito, encontrei logo um exemplo claro deste meu sentimento. Na página 50 temos uma ilustração verdadeiramente bonita de Melina, em que a sua expressão facial parece ao nível de uma mega produção da Disney. E, logo na ilustração abaixo dessa, temos um Eric que parece feito meio à pressa e sem o rigor desejado. O que me espanta também é que tenha sido especificamente nas ilustrações onde aparecem a personagem de Eric – que, ainda por cima é o protagonista – que tenha havido esta diferença de cuidado ou rigor na ilustração, por parte do autor.
Se isto estraga a história de Vazio ou se me leva a achar a ilustração de Carlos Páscoa pobre? Nem por sombras! Não tenho dúvidas que Carlos Páscoa é um excelente desenhador com um enorme potencial. No entanto, também tenho que reconhecer – e eventualmente até o autor o fará – que um pouco de mais cuidado em algumas ilustrações, poderia ter transformado esta obra em algo (ainda) mais marcante. E por todas as qualidades que já apontei ao autor, considero isto algo inglório. Não sei se houve timings apertados na conceção da obra, que tenham obrigado o autor a “despachar” certos desenhos ou se foi pura e simplesmente alguma falta de inspiração em alguns momentos da obra, mas o que é certo é que esta heterogeneidade, ao nível da qualidade do desenho, tem algum peso na sensação final que a obra passa para o leitor.
Quanto à edição, estamos perante um livro com o formato e materiais semelhantes aos lançamentos da Escorpião Azul e com a característica capa mole. Falando na capa, acho que as cores estão bem chamativas, mas a ilustração das personagens também poderia estar melhor. E quando digo “estar melhor” não é um capricho gratuito meu. Não. Basta folhear o livro para percebermos que o autor é capaz de melhor. A própria ilustração de página 9 daria uma melhor capa, a meu ver.
Uma nota positiva deve ser dada para o facto de, neste lançamento, ter havido uma aposta da editora numa edição especial, limitada a 100 exemplares, que são acompanhados por uma brochura com material inédito, um marcador e a uma serigrafia numerada e assinada pelo autor. Aplaudo a iniciativa. Cada vez mais as editoras parecem apostar em edições especiais. A meu ver, todos ganham com essa aposta.
Em conclusão, Vazio é tudo menos uma obra vazia. Na verdade, traz consigo uma matriz de pensamento existencialista e uma interessante reflexão sobre vidas repetitivas que tendencialmente nos afetam enquanto pessoas e qual o caminho a fazer para alterar isso. E tudo isto acompanhado por uma arte visual que, permitam-me a expressão, “quando quer” consegue ser fantástica. Um livro a conhecer, certamente.
NOTA FINAL (1/10):
7.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Vazio
Autor: Carlos Páscoa
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 64, a preto e branco
Encadernação: Capa molde
Lançamento: Abril de 2021
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