A Arte de Autor engrossou o seu catálogo de banda desenhada com Lena, o seu lançamento mais recente. Esta é uma obra com argumento de Pierre Christin, autor da célebre série Valérian, e com ilustrações de André Juillard, que tem colaborado em alguns álbuns da série Blake e Mortimer.
Este Lena tem como característica distintiva o facto de ser um álbum triplo, uma edição integral que reúne, num só volume, os três tomos de Lena. O primeiro, A Longa Viagem de Lena, foi originalmente lançado em 2006, o seguinte, Lena e as Três Mulheres, em 2009 e o último, Lena em Pleno Braseiro chegou às livrarias francesas em 2020.
Embora existam alguns pontos de contacto entre as histórias deste livro, as mesmas são independentes entre si. Portanto, lidos de forma isolada, estes 3 tomos até funcionam bem. Mas também é claro que, lidos de forma seguida, a sensação de leitura fluída sai mais beneficiada. Mesmo assim, acho curioso como, mesmo tendo uma linguagem comum nas três obras, existam diferenças claras entre as três narrativas. Mas já lá irei.
Olhando na globalidade para esta obra, acho que interessa apontar que estamos perante um romance de cariz político, que tem como pano de fundo a atividade de espionagem e serviços secretos na luta contra (e a favor) do terrorismo internacional. Algo bastante atual e que procura ser o mais realista possível. Talvez (também) por isso, Lena apresente uma linha narrativa bastante lenta, pontuada pela presença de muito texto. Acho que essa é logo a primeira sensação que a obra nos dá.
Tem um ritmo muito lento que, por vezes, até pode tornar-se entediante para muitos leitores. Não obstante, também é verdade que mesmo sem nos dar cenas de ação, propriamente dita, Pierre Christin sabe dar-nos, praticamente ao longo de todo o livro, uma sensação ominipresente de tensão. Estamos sempre à espera de algo que possa correr mal, de sermos surpreendidos. E isso é, sem dúvida, um ponto a favor deste Lena. Algo que assegura a atenção daqueles que até poderiam lamentar a ausência de cenas de ação.
A protagonista é Lena, que dá nome à série. Uma mulher serena, algo masculina – mas elegante - e admiradora de nadar sempre que as suas viagens o permitem. É uma personagem misteriosa que prende a nossa atenção desde o início. No primeiro volume, A Longa Viagem de Lena, a sensação de leitura para mim foi diferente dos tomos seguintes. Como desconhecia a série e como resisti a ir procurar informações antes de iniciar a minha leitura, não sabia com o que contar. E, devo dizer, que já não me lembrava de um livro de bd que me deixasse tanto na escuridão, durante tanto tempo, como o primeiro tomo deste Lena. É que, mesmo sendo o primeiro volume da série, este A Longa Viagem de Lena, não se preocupa em traçar um perfil da protagonista ou da história. As coisas vão-nos sendo dadas aos poucos. A conta-gotas. Não sabemos de onde vem nem para onde vai Lena. E tudo o que nos é dado a testemunhar, são as diferentes paragens que a protagonista vai fazendo durante a sua viagem.
Começa em Berlim-Leste, onde um homem lhe entrega uma lista com nomes e números de telefone que Lena tem que decorar antes de destruir. Mesmo à Missão Impossível! Depois disto, a protagonista viaja para as cidades de Budapeste, Kiev e Odessa, antes de passar também pela Turquia e pela Síria. Em todas essas paragens Lena dá um objeto a cada uma das pessoas com quem se encontra. Até que, no final, todos esses objetos pessoais – e as pessoas que os transportam - contribuem entre si para criar algo maior e mais importante, com consequências políticas. Nada mais devo comentar sobre a história. Mas digo apenas que achei o ritmo demasiado lento e, por vezes, a roçar o entediante. Mesmo assim, dou crédito ao autor por conseguir prender a minha atenção até ao culminar da história. Se o final vale a pena? Gostei mas não sei se esteve à altura de tanta “espera narrativa”, chamemos-lhe assim. O background pessoal de Lena também nos é revelado já na parte final da obra. E isso dá força à personagem de Lena, sem dúvida.
Quanto à segunda história, Lena e as Três Mulheres, o autor já não podia brincar ao “jogo do rato e do gato” com o leitor, uma vez que já conhecíamos a personagem de Lena e as suas pretensões. Optou, portanto, por uma abordagem narrativa mais clássica. Creio que resultou muito bem. Este segundo conto é, aliás, e na minha opinião, o mais bem conseguido dos três, em termos globais. Lena e as Três Mulheres arranca com Lena refugiada na Austrália – devido aos eventos do primeiro tomo – onde agora tenta levar uma vida dita normal. Mas os Serviços Secretos voltam a conseguir chamá-la para mais uma missão. A partir da Geórgia e de um campo de treino subsariano, Lena tem como objetivo apoiar e instruir três mulheres que farão um atentado suicida ao serviço da Jihad, em pleno coração parisiense. Todas essas mulheres são bastante diferentes entre si, o que nos permite um breve vislumbre a essas pessoas (reais) que o mundo oriental tem utilizado nas suas missões geo-políticas. Acaba por ser interessante a ironia de vermos Lena a infiltrar-se num grupo que procura, também ele, infiltrar-se na sociedade ocidental para a destruir a partir de dentro. Como se o autor estivesse, com esta história, a oferecer aos membros da Jihad um pouco do seu próprio veneno. Acho que funcionou muito bem e que é a história mais completa e bem conseguida entre as três.
Finalmente, no último tomo, Lena em Pleno Braseiro, encontramos Lena num hotel situado numa região distante e montanhosa dos Estados Unidos, onde decorre em segredo uma conferência com membros de países tão antagónicos entre si como o Irão, a Turquia, os Estados Unidos, a Rússia, a França, a Alemanha, entre outros, cujo objetivo é discutir a crise que abala a Síria. O papel de Lena é organizar a conferência e deixar todos estes diplomatas felizes. Claro que, à semelhança de um conto de Agatha Christie, cada um dos diplomatas parece guardar segredos inconvenientes e ter segundas intenções. Devo dizer que, dos três tomos, este foi o menos bem conseguido, na minha opinião. A história torna-se demasiado teórica, quase burocrática, sem que a atenção do leitor seja agarrada por parte do autor. Na verdade, até admito que tive que fazer um certo esforço para conseguir terminar a história. Ao contrário do Tomo 1 em que, mesmo estando “às escuras”, o nosso interesse estava desperto, aqui pareceu-me uma narrativa onde há imensos balões de fala e de narração mas onde, na verdade, pouco ou nada se passa. E mesmo o final, também me pareceu que carece de alguma inspiração. Está muito tempo sem acontecer nada e quando acontece, é tudo feito um bocado “a martelo”, de forma algo forçada.
De facto, e olhando para o argumento de todos os tomos, Christin dá-nos demasiado texto para digerir. Ou, por outras palavras, acho que poderia ser contado o mesmo com o recurso a (muito) menos texto. Temos a narração da protagonista – que nos vai contando os seus pensamentos na primeira pessoa – e que funciona bastante bem, a meu ver. Mas, depois, temos os balões de diálogo onde há demasiado texto envolvido que acaba por se tornar redundante em várias vezes.
Se as histórias dos três tomos que constituem esta edição integral são diferentes quanto ao argumento, em termos de ilustração, pode-se dizer que há uma total harmonia gráfica. O estilo clássico, em linha clara, de André Juillard, remeteu-me para outras séries clássicas da banda desenhada franco-belga como IRS, Largo Winch ou XIII. Um estilo de ilustração muito sóbrio, quase vintage, que não arrisca muito em termos de dinâmica, de planificação ou até na conceção das personagens, focando-se em proporcionar uma linguagem gráfica madura e eficaz, sem grandes divagações artísticas.
Creio que as ilustrações de Juillard se coadunam muito bem nas histórias de cariz político que Christin nos dá neste Lena. Diria que, por vezes, gostaria de ter sentido mais dinâmica e coragem do autor em termos gráficos. E também as emoções das personagens poderiam ser mais vincadas e a escolha de planos mais chamativa. E digo isto com a ideia de poder transformar a narrativa, talvez serena demais, em algo mais dinâmico e que prendesse mais a nossa atenção. Porém, também é verdade que os desenhos são maioritariamente bonitos. Para os amantes das séries que mencionei acima ou de outras bds franco-belgas mais clássicas, acho que a arte ilustrativa que Juillard nos oferece neste Lena, será de grande valor. Quanto a mim, considero que não é um desenho magnífico mas que é agradável, de forma genérica. Há pois uma sensação de revivalismo nesta banda desenhada. Embora o primeiro tomo “só” seja de 2006 (e o terceiro até seja de 2020), este parece ser um livro saído diretamente dos anos 80, em termos de história e de arte visual.
Quanto à edição, e repetindo aquilo que tenho vindo a escrever sobre as edições da Arte de Autor, este Lena apresenta uma qualidade fantástica. Boa encadernação, com capa dura de textura aveludada, bom papel e, claro, o plus de ser uma edição integral.
Aplaudo esta iniciativa da editora em avançar para uma edição integral pois considero que conter uma história inteira num só livro, num só objeto, é sempre uma mais valia para o leitor. E, nesse sentido, isto que a Arte de Autor fez com Lena é pensar nos seus leitores. Se olharmos para o preço total da obra (31€) até o podemos considerar algo avultado. Porém, se tivermos em conta que é um livro que contém no seu interior 3 livros, então estamos a pagar pouco mais do que 10€ por livro. O que é fantástico! Além disso, pelo menos na minha opinião, é muito mais preferível ler tudo de enfiada, num só livro, do que estar a ler as obras as poucos.
Em conclusão, diria que Lena é uma aposta interessante e com qualidade por parte da Arte de Autor. Não estará, a meu ver, entre as suas melhores obras, mas é uma boa banda desenhada, que vale a pena conhecer. Especialmente para todos aqueles que têm interesse em espionagem, serviços secretos e relações internacionais. E claro, tudo isto embrulhado numa fantástica edição integral que contém 3 tomos num só volume. Não será fácil para muitos resistir a esta oferta tão apetecível.
NOTA FINAL (1/10):
8.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Lena (Edição Integral)
Autores: Pierre Christin e André Juillard
Editora: Arte de Autor
Páginas: 176, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Maio de 2021
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