quinta-feira, 20 de maio de 2021

Análise: Living Will (Série Completa)

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara


Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa

Living Will é um caso único na banda desenhada portuguesa. E por vários motivos. 

Desde já, porque esta série, com argumento de André Oliveira e ilustrações de Joana Afonso e de Pedro Serpa, foi publicada de uma forma bastante diferente daquilo a que estamos acostumados. Ao invés de ser publicada enquanto livro, num só volume, foi sendo publicada entre 2013 e 2018, em 7 pequenas revistas de 16 páginas.

Mas André Oliveira não ficou por aqui. Embora toda a equipa seja portuguesa, esta é uma banda desenhada lançada em inglês. Desconheço os propósitos do autor perante esta opção. Possivelmente, esta foi uma iniciativa que procurou exportar para mais mercados estrangeiros a série Living Will. Ou, pelo menos, uma forma de testar o conceito.

Mas pondo de parte aquilo que é diferente e inconvencional em Living Will, importa dizer que esta é uma obra maravilhosa e que, além de testar coisas novas, também é ímpar na banda desenhada nacional devido à qualidade que dela advém.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
A história passa-se em Inglaterra e começa quando, no dia em que perde o seu animal de estimação, Will se apercebe que já não lhe restam razões para viver. Já tendo ultrapassando a barreira dos 80 anos, é, hoje em dia, um homem amargurado que nunca conseguiu superar a morte do amor da sua vida, Judith. O cão era, pois, o engodo que o prendia à vida. Mas, agora que o seu amigo de quatro patas morreu, parece que não há mais razões para que Will possa viver. No entanto, depois de encontrar uma velha mala de recordações de outrora, uma nova luz nasce dentro de si, que incita Will a querer resolver as coisas que ficaram pendentes na sua vida. Os unfinished businesses, vá, como os ingleses lhes chamam. 

E só neste ponto, André Oliveira já consegue construir uma sólida ponte para com os leitores. É que todos nós, de uma forma ou de outra, temos assuntos mal resolvidos. Gestos, atitudes, palavras que dissemos ao longo da nossa vida e que magoaram outras pessoas. Ou que, mesmo que não tenham magoado, nos fizeram tomar outro caminho e afastarmo-nos de pessoas que, certo dia, já foram nossas próximas. É por isso que Will começa a refletir naquilo que foi a sua vida, naqueles que deixou ficar mal, nas ações que poderiam ter sido melhores e decide tentar emendar o mal que já estava feito.

Infelizmente, as coisas não lhe saem exatamente como ele desejaria e acaba por ficar até mais deprimido à medida que vai levando a cabo a sua demanda. Agora que está velho, morrer em paz é tudo o que já só ambiciona, mas o mundo não parece estar do seu lado nesta sua última missão. Todavia, a paz sempre parece chegar para quem a procura incessantemente e, no final, depois de nós, leitores, levarmos socos atrás de socos na nossa sensibilidade, André Oliveira permite-nos sossegar um pouco com o silver lining possível que podemos retirar de um tema tão irrevogável como a morte.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Pelo meio, aparecem algumas personagens cujas atitudes, mesmo sendo aparentemente independentes da vida de Will, acabam por, cada uma à sua maneira, contribuir para uma certa sensação de efeito borboleta, com todas as coisas a encaminharem-se para um desenlace global numa teia imprecisa de comportamentos que, de um modo ou de outro, podem influenciar ou ser influenciados por outros tantos. São subnarrativas, como as da apresentadora de televisão, Betty Bristow, ou as do médico, Terry, que até podem parecer algo desfasadas ou desnecessárias, mas que, a meu ver, contribuem para a construção de teias de relacionamentos à volta da personagem principal, Will.

O texto de André Oliveira – mesmo sendo em inglês – é soberbo, tocante, pleno de significados e comovente até. Cada diálogo, cada palavra, parece ser meticulosamente introduzida na série, pelo autor. Como é bem sabido por aqueles que me seguem, fico sempre rendido a todo e qualquer texto que consegue ser quotable. E porquê? Porque essa característica permite-nos extrair de uma história significados adicionais que podemos, depois, aplicar num outro contexto nas nossas vidas. E se há obra que é quotable é este Living Will. Do princípio ao fim da obra somos brindados com frases e pensamentos que nos fazem parar um pouco para refletir. E não são só as frases ou as ideias transpostas para as mesmas que são inspiradas/inspiradoras. A própria utilização das palavras certas no momento certo, é outro dos trunfos do autor. O próprio título, aliás, é de uma inspiração e jogo de palavras muito felizes. André Oliveira é um verdadeiro pintor das palavras, que sabe dotar as suas histórias de uma generosa paleta de cores que nos canta melodias arrebatadoras. A qualidade do texto de André Oliveira é tão boa que quase me chega a irritar, vejam lá! Até mesmo os dois breves parágrafos em prosa com que, na última página, o autor sintetiza cada um dos livros, são de uma qualidade e de uma inspiração incríveis.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Mas Living Will não é apenas uma interessante e bem escrita história.

Também existe a arte fenomenal de Joana Afonso. Esta jovem autora está num pequeno – pequeníssimo! – rol de autores portugueses que têm o seu estilo de ilustração tão claramente demarcado. Com tanta personalidade. O chamado signature style, como dizem os ingleses. Mais do que dizer que Joana Afonso é uma excelente ilustradora – e é! – o que me parece mais louvável é o universo próprio, o tal signature style, que a sua criação tem. Poderão existir muitos ilustradores mais tecnicamente evoluídos do que Joana Afonso sem alguma vez conseguirem criar a sua própria imagem de marca. Mas a autora portuguesa já o conseguiu. E isso é digno de todos os louvores.

Dito por outras palavras, da mesma forma que, quando ouvimos rádio, nos basta escutar duas ou três notas para que facilmente saibamos de que se tratam das guitarras de Brian May, de Santana ou de Slash, que têm um som tão característico, acho que, paralelamente, se passa o mesmo com os autores de banda desenhada que, à semelhança de Joana Afonso, têm um estilo tão próprio. Basta um breve vislumbre a um canto apenas de uma ilustração, para que saibamos que se trata de um trabalho de Joana Afonso. E sendo isso tão especial e saboroso, também acaba por ter o seu peso negativo neste Living Will. Mas já lá irei.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Quero ainda sublinhar o fantástico estilo de traço da autora que é caricatural, com personagens a exibir grandes cabeças, sobrancelhas muito grossas e olhos muito pequenos. São personagens que trazem consigo uma grande panóplia de emoções. Ora, estando nós perante uma história de estilo slice of life, que assenta toda a sua moral nas emoções que a vida coloca no nosso âmago, dificilmente haveria alguém melhor para ilustrar esta história do que Joana Afonso. O seu trabalho é magnífico e encaixa que nem uma luva no texto de André Oliveira.

Porém, também devo ser justo e sublinhar que ao longo dos 7 livros – dos quais Joana Afonso ilustra cinco – pareceu-me que a autora foi perdendo algum fulgor na sua criação. Ao nível dos cenários, que passaram a ser mais simplistas; da planificação, que passou a arriscar menos e ser menos dinâmica; e, de uma forma geral, ao nível de todos os outros pequenos detalhes que vão parecendo menos inspirados nos últimos números, deixando no ar a suspeição de que foram feitos um pouco mais "à pressa". Não é nada de gritante ou que faça a qualidade da arte ilustrativa baixar tão substancialmente assim, mas é algo a que deve ser dado nota, ainda assim.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Algo mais gritante, em termos de fazer o meu nariz ficar torcido, são as ilustrações do autor Pedro Serpa. O autor que não me leve a mal por esta afirmação, mas, se há um elo fraco nesta banda desenhada, são os desenhos de Pedro Serpa. Sendo justo, também devo dizer que o autor não tinha a vida minimamente facilitada. Como já disse, se estamos perante uma autora com um estilo de ilustração tão vincado, Pedro Serpa só tinha duas hipóteses: ou tentar copiar à descarada o estilo de Joana Afonso ou desprezar o estilo da autora e fazer a sua própria interpretação. E, lá está, acredito que qualquer que fosse a opção do autor, ficaria sempre aquém da qualidade pretendida. Pedro Serpa não fez necessariamente nenhuma das duas opções que assinalo. Desenhou com o seu estilo, é certo, mas tentando, da melhor forma que as suas capacidades ilustrativas assim o permitiam, prestar tributo ao estilo de Joana Afonso. O resultado ficou a meio da ponte. 

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Não é que os desenhos de Pedro Serpa sejam feios ou mal conseguidos, mas diria que ficam muito aquém dos desenhos de Joana Afonso. E quando digo “aquém” não estou tanto a dizer se são “melhores” ou “piores” – até porque isso será sempre subjetivo - mas mais que são desenhos demasiadamente diferentes. Imaginem o que é estarem a ver um filme de Tim Burton, que tem o seu estilo tão característico e, a meio desse filme, uma ou duas cenas do mesmo, serem realizadas por Martin Scorsese? Não teria nada que ver uma coisa com a outra, certo? E faria com que a continuidade e fluidez da obra fossem postas em causa, correto? Pois bem, aqui isso também acontece. O texto de André Oliveira, sempre muito inspirado, ainda consegue unir as pontes entre os volumes que Pedro Serpa assina (os volumes 4 e 6) e os de Joana Afonso mas, ainda assim, quanto a mim, é este o calcanhar de Aquiles desta obra. Pelo menos, em termos visuais.

Calculo que esta opção tenha sido tomada devido à incompatibilidade de agenda criativa entre André Oliveira e Joana Afonso. E isto sem desprimor para o Pedro Serpa, que acabou por fazer as vezes de bombeiro para apagar um fogo. Como crítica construtiva, acho que se por acaso a história tivesse mudado de tempo ou de ambiente nos tomos que Pedro Serpa ilustra – por exemplo, se fosse um flashback, um pensamento ou um sonho das personagens – talvez esta diferença de estilos ilustrativos não fosse tão difícil de “engolir”. Mas dá-me claramente a ideia que André Oliveira já tinha a história delineada – nem que fosse na sua cabeça – e que, portanto, nem deve ter equacionado este truque narrativo para fazer face à mudança de desenhadores.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Destaque ainda para o facto de cada um dos 7 capítulos ter sempre uma cor que prevalece em termos de paletas de cores: no primeiro volume os tons são em vermelho acastanhado, no segundo são em azul, no terceiro são em roxo, no quarto são em laranja, no quinto são em verde, no sexto são em cinza e preto e no sétimo são em castanho. Um pequeno detalhe que funciona muito bem e que dá harmonia e diversidade, ao mesmo tempo, à obra.

Olhando para o todo, esta é uma banda desenhada que adoro. O argumento e qualidade do texto de André Oliveira são do melhor que já foi feito em termos de banda desenhada em Portugal. A arte de Joana Afonso é magnífica - mesmo que mais para o final me pareça um pouco mais preguiçosa. A arte de Pedro Serpa fica, infelizmente, demasiado off em Living Will. E depois temos a edição, tão diferente, que já referi no início deste texto.

Sob a chancela da Ave Rara, lá foi sendo publicada, durante 5 anos, esta história que, no total, contabiliza 118 páginas. Tratando-se, certamente, de um exercício, de uma aposta bastante indie, parece-me algo digno de respeito. No entanto, também acho que este tipo de aposta em fascículos talvez tenha impossibilitado que uma grande parte do público, dito mais clássico, pudesse conhecer a obra. Foi o meu caso até. Na altura do lançamento do primeiro fascículo, li-o e fiquei bastante agradado. Mas depois, devido a tantos livros que se vão sobrepondo, acabei por perder ligação à série. E é por isso que defendo que, estando nós perante uma banda desenhada tão boa, Living Will merece ser reeditado num só volume. Passar a ser um único livro facilmente acessível a todos os leitores. Livro esse que deverá ser lançado em português. Nada contra a iniciativa de ter lançado a obra em inglês – e o inglês de André Oliveira é extremamente bom, diga-se – mas esta banda desenhada tem que ser lançada em português.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Concluindo a análise a Living Will, faço aqui uma pequena ponte com a música e cinema, como já vai sendo um hábito meu, dado o meu background artístico. O realizador Quentin Tarantino disse há uns anos que o compositor Ennio Morricone era um dos seus compositores favoritos, mas não apenas dentro da composição de música para cinema. Tarantino comparou-o a Mozart ou a Beethoven. (E já agora, faço das suas as minhas próprias palavras). Para mim, André Oliveira não é apenas um dos melhores escritores de banda desenhada em Portugal. É um dos melhores escritores portugueses. Sim, leram bem.

E deixo ainda um apelo: Living Will é uma autêntica pérola da banda desenhada portuguesa, mesmo com os seus tiques de originalidade, consumados na edição por pequenos fascículos e na língua inglesa. Os leitores de bd, os autores envolvidos nesta obra e a própria obra merecem uma edição de qualidade em português que compile estes 7 números num só volume. E, se não for pedir demasiado, que seja uma edição em capa dura, com bom papel e que quer as 7 capas dos fascículos (que são lindas!) quer os textos em prosa que terminam os pequenos livros (que são profundos!) sejam preservados nessa nova edição. E, já agora, venham de lá extras e estudos de personagens. Se algum dia tivermos esse livro, estará entre os mais obrigatórios livros de banda desenhada portuguesa – e em português.


NOTA FINAL (1/10):
9.2


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Fichas técnicas
Living Will – Vol. 1
Autores: André Oliveira e Joana Afonso
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: 2013

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 2
Autores: André Oliveira e Joana Afonso
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: 2014

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 3
Autores: André Oliveira e Joana Afonso
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: Novembro de 2014

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 4
Autores: André Oliveira e Pedro Serpa
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: Junho de 2015

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 5
Autores: André Oliveira e Joana Afonso
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: Novembro de 2015

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 6
Autores: André Oliveira e Pedro Serpa
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: Junho de 2017

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 7
Autores: André Oliveira e Joana Afonso
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: Outubro de 2018

2 comentários:

  1. Hugo mais uma vez parabéns pela análise. Lembro-me de ter folheado esta obra nos anos em foi lançada e despertou-me a atenção pelo apuro gráfico embora, infelizmente, nunca tenha tido a oportunidade de a ler. Sendo avesso a coleccionar em fascículos, sempre tive a esperança que obra fosse lançada num só volume o que, até agora, não aconteceu. Esperemos que algum editor de bom gosto tenha a a boa ideia de o fazer adicionando, se possível, alguns extras.

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    1. Olá António! Obrigado pelo comentário. A questão que levantas de seres "avesso a coleccionar em fascículos" é muito pertinente. Acho que pode ter sido essa a razão para esta obra não ter chegado a tantas pessoas. Mas creio que brevemente teremos boas notícias quanto a uma edição integral. É aguardar pacientemente.

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