Cemitério dos Sonhos é um álbum cujo argumento é da autoria do português Miguel Peres – que também nos deu o muito interessante Random, já aqui analisado - e que conta com ilustrações de quatro autores brasileiros: Marília Feldhues, Cinthia Fujii, Rodrigo Martins e Rômulo de Oliveira.
A história de Cemitério dos Sonhos coloca-nos na pele da personagem Dre Amos que tem como profissão ser responsável por testar o bom funcionamento de máquinas de lavar roupa. A sua vida é repetitiva, rotineira e desencantada, não parecendo deixar, de forma alguma, feliz o protagonista. Como se não bastasse, a perda do pai traz consigo um enorme peso na tristeza que inunda a existência de Dre Amos.
Mas um dia é visitado por uma entidade, a personagem Cristal, que o ajuda a colocar em questão e perspetiva certos eventos e traumas, que Amos tinha como certos, e com isso redescobrir-se a si próprio e à alegria de viver. O “Cemitério dos Sonhos” é, pois, uma alegoria para todos os sonhos que deixamos morrer sem que encetemos os esforços necessários para os alcançar. E, neste ponto, creio que Miguel Peres se afirma como um argumentista inteligente e emotivo ao mesmo tempo. O que é de louvar. Se há uma certa racionalidade na forma – e nas soluções – que o autor nos oferece para, nós próprios, combatermos a procrastinação e resignação fácil que, não raras vezes, assombram a luta pelos nossos sonhos, por outro lado, Miguel Peres também se serve de uma boa dose de sentimentalismo – sem nunca se aproximar, sequer, de ser “lamechas” – para nos ajudar a acatar a moral da obra.
É que o facto de ter sido o trauma e amargura que funcionou como principal dínamo para que Dre Amos deixasse de sonhar e de lutar pelos seus desejos, também nos permite ver que as razões da nossa aparente apatia perante a vida até podem ter que ver com certas dificuldades com que nos deparámos em algum momento das nossas vidas. Certos obstáculos que a partir de certa altura nos passaram a marcar e a condicionar. Mas será através da descoberta das causas e consequências desses traumas que, eventualmente, os conseguiremos superar. Vendo bem, Miguel Peres assume aqui uma função de quase psicólogo. Ou, pelo menos, de coach motivacional.
E acho que é aí que a história mais brilha. Se eu encontrar alguém descontente com aquilo que a sua própria vida se tornou, ou infeliz com a pessoa que é e com os sonhos que acabou por deixar de lado, há fortes probabilidades para que lhe recomende que vá ler este Cemitério dos Sonhos.
Como ponto menos positivo em termos de argumento, acho que é na materialização da luta contra os problemas que Miguel Peres quase perde a boa história que tinha em mãos. Ao querer formar uma alegoria mais clássica, com exemplos mais lineares, que na obra aparecem como o combate literal contra os seus problemas, parece-me que o autor não é tão bem-sucedido. Esta é uma história mais profunda e intensa que, a meu ver, dispensava este tipo de combate físico. Bem sei que tudo isto não passa de uma metáfora para a real luta interior, mas insisto que, na minha opinião, fica um bocado over the top. Mesmo assim, o autor demonstra ter a noção exata para não “nadar fora de pé” e a partir do momento em que Dre Amos confronta a sua mãe e a visão do passado desta, a história volta a ganhar a força inicial, acabando por ser bem agarrada por Miguel Peres.
Destaque-se ainda a boa capacidade do autor em resolver a história, de um modo bastante bem conseguido e cinematográfico. Miguel Peres não é um daqueles autores que apenas coloca questões para o ar. Não. Ele também está preocupado em dar-nos respostas. Por isso, apresenta-nos vários caminhos, mas, também, o caminho certo a seguir.
Em termos de arte, há que conceder que este é um álbum audaz. Audaz porque como estamos perante uma história que nos remete para algumas questões metafísicas, ao nível do subconsciente e das realidades alternativas assentes num mundo onírico, naturalmente havia oportunidade para a construção de um universo visual menos mundano e com elementos do fantástico.
No entanto, há que dizer que isso também traz o seu peso negativo à obra. Porque, visualmente falando, Cemitério dos Sonhos acaba por ser demasiado heterogéneo entre si. Os estilos dos quatro ilustradores são demasiado diferentes, o que faz com que não haja uma certa unidade e continuidade na narrativa. Cada um dos quatro autores ilustra uma parte diferente da história. As formas de ilustrar quer de Marília Feldhues, quer de Cinthia Fujii, sendo diferentes, até se tentam aproximar e encaixam bem uma na outra. Mas Rodrigo Martins e Rômulo de Oliveira acabam por apresentar (mais) dois estilos bastante diversos. No final, pode-se então dizer que há 3 grandes “famílias” de estilos ilustrativos.
A minha preferida é a de Rodrigo Martins, que me parece a mais cativante e a que consegue apresentar mais soluções narrativas eficientes. As ilustrações de Marília Feldhues, mesmo rompendo muito com o estilo de Rodrigo Martins, também trazem alguma beleza pueril à história. Já quanto à arte ilustrativa de Rômulo de Oliveira, não fiquei tão convencido. Não é que o autor nos ofereça ilustrações feias ou mal conseguidas, mas pareceu-me um estilo de ilustrar menos atraente do que os demais. Nas suas páginas encontramos um traço mais rígido e grosso, com menos expressividade, e umas vinhetas marcadas com um traço demasiado grosso que também não ajudam ao resultado final.
Mais uma vez refiro: o meu problema nem sequer é o estilo ou a falta de beleza neste ou naquele método de desenho. O meu problema – se é que assim o podemos considerar – é mesmo a demasiada heterogeneidade entre géneros. Embora Miguel Peres faça o que pode e até consiga, de certa forma, dividir a história de forma a que a mesma possa apresentar algumas alterações, que procuram atenuar a diferença do ilustrador – e isto é particularmente bem sucedido na primeira mudança de ilustradores, quando passamos da arte de Rodrigo Martins para a arte de Marília Feldhues - acho que, ainda assim, e tendo em conta que é uma história com um certo grau de complexidade e diferentes camadas ao nível narrativo, teria funcionado melhor com apenas um ilustrador – ou dois, vá.
Quanto à edição, a cargo da editora Bicho Carpinteiro, temos um livro bastante parecido ao já mencionado Random: capa mole, com papel brilhante de boa qualidade e boa encadernação, sendo o livro um pouco mais dobrável e mole do que aquilo que eu gostaria. E uma capa dura permitiria, certamente, dar mais destreza física ao objeto em si. Mesmo assim, tem uma boa apresentação, certamente. Faço uma nota à presença de alguns erros ortográficos que eram facilmente evitáveis. Destaque para a excelente ilustração de capa e para o prefácio de André Oliveira que nos oferece (mais) um texto muito inspirado e profundo.
Em suma, Cemitério dos Sonhos é um álbum muito interessante e sério que versa sobre temáticas verdadeiramente adultas, como a superação pessoal face à persona em que nos tornámos e que é -por vezes - tão distante da persona que queríamos ser. Não é uma obra perfeita, mas traz consigo ideias muito, muito interessantes que são ilustradas por quatro autores brasileiros que, não obstante os seus bons esforços e alguns ótimos momentos no desenho, não conseguem oferecer-nos a unidade visual que seria expetável. Não sendo, portanto, perfeito é, ainda assim, e há que reconhecê-lo, um livro original que merece ser tido em conta pelos leitores de banda desenhada.
NOTA FINAL (1/10):
7.9
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Cemitério dos Sonhos
Autores: Miguel Peres, Marília Feldhues, Cinthia Fujii, Rodrigo Martins e Rômulo de Oliveira
Editora: Bicho Carpinteiro
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Setembro de 2016
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