terça-feira, 1 de junho de 2021

Análise: Conto de Areia

Conto de Areia, de Ramón K. Pérez - Pipoca & Nanquim

Conto de Areia, de Ramón K. Pérez - Pipoca & Nanquim
Conto de Areia, de Ramón K. Pérez

Conto de Areia é um álbum da autoria de Ramón K. Pérez, que adapta um guião para cinema, escrito por Jim Henson e Jerry Juhl, que estava meio que perdido desde 1974. Para quem não sabe – ou não se lembra – Jim Henson é um nome incontornável na cultura popular mundial, tendo sido o criador dos Marretas (Muppets, no original) e da Rua Sésamo. Mas o trabalho de Henson vai além destas criações inconrtonáveis da cultura pop, tendo também sido um realizador e produtor de cinema, numa área mais experimental. E Conto da Areia era um guião que escreveu, juntamente com Jerry Juhl, entre 1967 e 1974. A ideia inicial dos autores era a produção de um filme a partir deste guião mas, devido a várias recusas por parte dos estúdios de cinema, foi ficando na gaveta, sem nunca ter chegado a ver a luz do dia.

Contudo, graças à arte de Ramón K. Pérez (autor com vários trabalhos publicados na Marvel) a obra finalmente ganhou vida enquanto álbum de banda desenhada. O impacto visual, que é majestoso – bem como a forma como o autor consegue contar uma história tão bem, utilizando tão poucos balões de fala – faz com que eu não fique nada admirado com o facto desta obra ter vencido em 2012, altura da sua primeira publicação nos Estados Unidos, três prémios Eisner (Melhor Álbum Gráfico, Melhor Ilustrador e Melhor Design de Publicação), dois prémios Harvey (Melhor Álbum e Melhor História) e muitos outros prémios. Como sempre digo, esta questão dos prémios é sempre algo relativa e vale o que vale. Contudo, depois de lido o livro, não posso deixar de reiterar que esta é uma obra magnífica, de um enorme fulgor artístico, que fica na nossa memória para o resto da vida!

Conto de Areia, de Ramón K. Pérez - Pipoca & Nanquim
Os desenhos de Pérez são verdadeiramente sublimes, com o autor a apresentar um traço virtuoso, com certos elementos "cartoonescos" mas, ao mesmo tempo, artísticos e detalhados na concepção virtuosa que apresentam. A paleta de cores é muito bonita e variada, com cada momento a parecer ter sido pensado ao detalhe pelo autor. Cada desenho, seja ele pequeno ou grande, parece resultar de um trabalho subtil e atento do autor.

A planificação também é soberba e completamente variada. Temos várias páginas duplas em que ilustrações maiores ocupam o fundo e que são depois sobrepostas por pequenas vinhetas. Sendo audaz na forma como utiliza as splash pages, temos um trabalho de Perez a querer romper algumas barreiras clássicas dos cânones da BD. Mas isto sem ser totalmente disruptivo. Porque mesmo parecendo ser anarca, por vezes, esta é uma banda desenhada em que os leitores não terão dificuldades em acompanhar e perceber bem. E isso era, aliás, fundamental para o sucesso da obra, se tivermos em conta que há pouquíssimos diálogos. São, pois, as ilustrações que contam a história, em detrimento dos diálogos. O facto do autor utilizar algum do texto do guião original como fundo em várias páginas também revela o carácter visualmente singular da obra, bem como a íntima relação e homenagem devota que Pérez quis prestar ao argumento original de Jim Henson e Jerry Juhl.

Quanto à história, ela poderá ser algo bizarra e muito livre, quer do ponto de vista criativo, quer do ponto de vista da interpretação. Sendo uma narrativa bastante aberta, com pouquíssimos diálogos, há muito espaço para que dois leitores tenham duas interpretações totalmente diferentes da mesma história. Portanto, nesse ponto, esta não é uma obra clássica de BD.

Conto de Areia, de Ramón K. Pérez - Pipoca & Nanquim
Conto de Areia
funciona como que um conto épico surrealista que nos coloca a seguir a viagem que o protagonista leva a cabo. Tudo começa quando o Xerife Tate se dirige ao protagonista, Mac, e lhe começa a dar as instruções para seguir um mapa. Pouco mais nos é dito a nós, leitores, e ao herói da história. Sabemos que há uma urgência nesta viagem e que toda a população local parece apoiar efusivamente o viajante. Mas não sabemos para onde é a tal viagem. E é por isso que desde esse momento inicial da leitura, somos deixados ao sabor da corrente. E ao longo da viagem, a pé pelo deserto, Mac encontrará inúmeros obstáculos: receberá tiros na sua direção, vindos não se sabe de onde, econtrará armadilhas para ursos, bombas lançadas para junto de si, carros que o tentam atropelar, animais famintos que o atacam e muitos, muitos elementos bizarros saídos da imaginação de Henson. A vida de Mac está sempre perto de terminar.

Não havendo regras, a viagem acaba por ser demasiado livre. Por vezes sou crítico de quando os autores se fazem valer desta "bengala" narrativa ao longo dos livros. Aqui, porém, toda esta loucura na história, digamos, funcionou bem para mim, desde o início pois a história parece-me honesta desde a primeira página. A viagem é louca e onírica sendo tão surreal quanto possível. Dessa forma, haverão coisas non sense pelo caminho. Caberá depois, a nós leitores, encontrarmos o sentido para todas essas coisas que a priori pareciam ser aleatórias e sem sentido.

Conto de Areia, de Ramón K. Pérez - Pipoca & Nanquim
Será esta viagem pelo deserto uma representação da própria vida e de toda a loucura, obstáculos e eventos fortuitos com que nos deparamos? É possível que sim. Ou será todo o mundo em que vivemos uma mera criação da nossa própria imaginação? Estaremos sozinhos no nosso mundo, completamente fabricado por nós mesmos? São mais questões que poderão aqui obter algum tipo de resposta.

A possibilidade de experenciar uma viagem tão marcante, simbólica e filosófica será, por ventura, a grande mais valia e intento deste livro.

Quanto à edição brasileira da Pipoca & Nanquim, posso dizer que estamos perante um trabalho espetacular. A edição é em capa dura, com texturas a sentirem-se ao toque, e com papel baço de boa qualidade. Destaque para o facto do livro ter um elástico, a fazer lembrar as capas escolares de antigamente – ou os mais recentes cadernos moleskine - que permite ser usado como marcador de página. Um detalhe distintivo e que aumenta a qualidade da edição que é ainda pontuada por alguns extras como biografias dos autores e esboços do ilustrador Ramón K. Pérez. E isto não esquecendo que a concepção gráfica do livro – que já vem da edição original americana da editora Archaia – é de uma qualidade ímpar. 

Conto de Areia, de Ramón K. Pérez - Pipoca & Nanquim
Não tendo sido esta obra editada no mercado português, acho que será pertinente que mais lojas portuguesas disponibilizem a edição brasileira - ou inglesa - de Conto de Areia para os leitores portugueses.. Eu encontrei-a, de forma quase acidental, na loja Casa da BD que, tal como já informei no artigo que escrevi sobre as minhas lojas favoritas de BD em Portugal, tem uma boa oferta de banda desenhada editada em brasileiro. 

Na verdade, até a edição original em inglês é difícil de encontrar. E tendo em conta a qualidade indiscutível da obra, creio portanto que há espaço para que as lojas portuguesas possam assegurar a versão inglesa ou brasileira de Conto de Areia. Isto, se nenhuma editora portuguesa até lá avançar com a edição portuguesa. Seria (mais) uma excelente notícia para a bd portuguesa, estou certo!

Conto de Areia é uma autêntica obra-prima da ilustração e um livro maravilhoso da primeira à última pagina. O trabalho de Ramón K. Pérez é exímio na construção e desconstrução de como pode ser contada uma história de banda desenhada. Uma autêntica masterclass de arte sequencial para aspirantes a autores de bd. Toda a gente devia ler este livro!


NOTA FINAL (1/10):
9.7


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Conto de Areia, de Ramón K. Pérez - Pipoca & Nanquim

Ficha técnica
Conto de Areia
Autores: Jim Henson, Jerry Juhl e Ramon K. Perez
Editora: Pipoca & Nanquim
Páginas: 160, a cores
Encadernação: Capa dura
​Lançamento: 2018

4 comentários:

  1. Tenho o original e este título é mais um, entre muitos, que merecia a atenção das editoras locais - pode ser que descolem dos cowboys e Franco-belgas... Leitura recomendada, sem dúvida.
    NOTA - na ficha técnica não deveria constar Jim Henson e Jerry Hull como autores da história e Ramon K. Peres como artista/adaptador...

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    1. Olá António! Obrigado pelo comentário! Este é, de facto, um livro muito bom. E quando à nota sobre a ficha técnica, foi uma questão bem apontada. Já fiz uma correção à ficha técnica. Obrigado e abraço

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  2. Adoro o trabalho do Jim Henson, mas não fazia ideia da existência deste livro. Obrigado pela partilha, ainda consegui encomendar a versão inglesa.

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    1. Caro Ricardo Miguel, obrigado pelo comentário. Boa escolha. É um livro espetacular! Boas leituras!

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