sexta-feira, 17 de março de 2023

Análise: Spirou - A Esperança Nunca Morre... - Primeira Parte


Spirou - A Esperança Nunca Morre... - Primeira Parte, de Émile Bravo

Se houve coisas boas que a editora ASA nos deu em 2022, a aposta na coleção de Spirou de Autor, mais concretamente nos livros de Émile Bravo, foi certamente o ponto mais alto.

Depois de lançar o brilhante Spirou – Diário de Um Ingénuo, a editora portuguesa não esperou muito tempo até lançar Spirou – A Esperança Nunca Morre… - Primeira Parte. Neste momento em que vos escrevo, a editora prepara-se até para lançar a Segunda Parte desta saga - que é composta por quatro partes - já neste mês de Março. E tudo isto são bons sinais da editora.

A verdade é que a ASA, mesmo sem nunca ter posto totalmente de lado a edição de banda desenhada - com o lançamento dos álbuns novos que vão saindo nas suas franquias mais rentáveis, como Astérix, Lucky Luke ou Blake e Mortimer - tinha vindo a descurar um pouco a banda desenhada nos últimos anos. A recente aposta no lançamento de curtas séries de banda desenhada com o jornal PúblicoPeter Pan de Loisel, Long John Silver, Rio ou O Grão-Duque serão bons exemplos – tem representado um bom sinal de rejuvenescimento editoral da ASA. Tal como tem sido um ótimo sinal esta aposta na coleção de Spirou de Autor que espero que vá além do lançamento dos 5 livros de Émile Bravo. Mas, para já, concentremo-nos neste livro que hoje vos trago. 

E embora este Spirou - A Esperança Nunca Morre... - Primeira Parte abra uma saga de quatro volumes, considero que este é o segundo álbum da minissérie criada por Émile Bravo. É lógico que não há uma ligação direta de Diário de Um Ingénuo para a saga A Esperança Nunca Morre, que podem ser lidos de forma separada, mas, tendo em conta a abordagem e o cariz da história criada por Bravo, bem como o facto de, cronologicamente falando, esta história começar a seguir à história de Diário de Um Ingénuo, quando se pega neste livro, tendo lido o outro, ganha-se bastante. Mais não seja por já se ter mergulhado e encantado com o primeiro livro de Spirou que este autor criou.

A ação decorre em Janeiro de 1940, já durante a Primeira Guerra Mundial. Em Bruxelas, os habitantes debatem-se com um inverno rigoroso, enquanto vão assistindo à, cada vez mais inevitável, chegada da Grande Guerra. Fantásio alista-se no exército belga e Spirou mantém-se como o paquete do Hotel Moustic.

Uma coisa em que Émile Bravo parece ser mestre, é na capacidade de nos contar uma história pesada, mas sem cair no dramatismo fácil. Pelo contrário, tentando desdramatizar o próprio drama das coisas difíceis, das coisas adultas, das coisas que são causa e efeito de um mundo amargurado e infinitamente triste que, tacitamente, escondemos das crianças que nos rodeiam. Tal como, quando éramos crianças, os adultos escondiam de nós. E também é por isso que este livro é nobre e belo. É que, aparentando ser para uma criança, esconde muitas mensagens adultas nas entrelinhas.

Por exemplo, quando o jovem Spirou conhece Felka e o seu marido, o pintor judeu alemão Félix, cuja obra foi condenada pelos nazis, está a tomar conhecimento com o tema dos judeus e com todas as complexidades político-sociais que este povo viveu durante (e após?) o longo período da Segunda Guerra Mundial. Por outras palavras, parecendo quase que o autor está a introduzir, de forma mundana e ligeira, mais duas personagens à sua história… a verdade é que está a introduzir temas complexos de forma simples. De um modo carregado de subtileza.

Faz lembrar O Principezinho, de Exupéry, mas também faz lembrar Tintin, de Hergé, pois há uma forma própria, pincelada com a aura da inocência da infância ou da pré-adolescência, de tentar perceber a razão das coisas serem como são. Com efeito, sem perceber o porquê dos tumultos que a guerra está a levantar na envolvente que o rodeia, a personagem de Spirou acaba por funcionar como catalisador para a compreensão de algo que qualquer pessoa sã diria que é incompreensível. Ao mesmo tempo, Bravo consegue que a personagem vá, gradualmente, amadurecendo a sua maneira de ver e perceber o mundo, abordando questões mais sombrias e adultas. Uma verdadeira beleza de character building, diria.

Há, pois, uma singular poesia na forma como Émile Bravo projeta as origens e vivências de Spirou. Há quem diga que, na criação de uma obra de arte, o mais difícil é conseguir fazer algo extraordinário que seja, ao mesmo tempo, simples. E, meus caros, é isso que o autor faz no seu Spirou. A ilustração é simples, a história é simples. Não há truques de encher o olho, mas há – e isso será, por ventura, o mais relevante – uma bela história que é atual e, ao mesmo tempo, clássica na abordagem e que, mesmo daqui a muitos anos, continuará refrescante.

Esta é uma história cheia de humanismo, compaixão pelo próximo e onde não falta uma boa dose de humor, também ele bastante simples e que, mais do que nos fazer rir à gargalhada, nos faz sorrir ternamente. Embora, convenhamos, neste livro, Fantásio quase me tenha levado às gargalhadas em algumas das suas mirabolantes peripécias.

Falando na personagem de Fantásio, até posso dizer que em Diário de Um Ingénuo a personagem não me conquistou muito, pois achei-a algo irritante. Contudo, neste livro a minha opinião já muda um pouco, pois são mais notórias e bem conseguidas as bases com que Bravo quer (re)construir esta personagem. Fez-me rir mais vezes e, ao mesmo tempo, pareceu-me mais relevante para a história.

Acredito que seja um livro onde a planificação poderá ser clássica, em demasia, para alguns leitores. Isto porque cada prancha tem sempre um bom conjunto de pequenas vinhetas, o que poderá tornar a leitura demasiado densa para alguns. Não é que os balões tenham muito texto, diga-se, mas concedo que há um bom número de diálogos. Mas se isso pode ser dissuasor para uns, também é nesses mesmos diálogos que está uma das forças da obra. O ritmo de ação é algo lento, sim, mas, mais uma vez, não é algo que me pareça ser fruto do acaso. É óbvio que o autor pensou e preparou muito bem esta história.

O desenho é discreto, simples, clássico, em linha clara, remetendo, lá está, para o trabalho de Hergé no seu célebre Tintin. Muito em linha com o Diário de Um Ingénuo, naturalmente. Por esse motivo, e repescando algumas das palavras que escrevi sobre esse livro, posso dizer que, também em A Esperança Nunca Morreos desenhos do autor, em linha clara, remetem-nos para o clássico franco-belga, num estilo que já é bastante raro encontrar. À primeira vista, parece que estamos perante uma banda desenhada dos anos quarenta. A planificação é tradicional e algo rígida, com as páginas a terem praticamente sempre quatro tiras de vinhetas. Cada página é, pois, pontuada com, pelo menos, 12 vinhetas. Algo que hoje em dia é bastante raro de encontrar. Portanto, e também por isso, Émile aproxima-se mais de um Hergé do que de um Franquin na forma como planifica a sua história. Já para não mencionar que o tipo de desenho, nos remete para Tintin. Voluntária ou involuntariamente a verdade é que, prestando homenagem a Spirou, Émile Bravo acaba por também prestar homenagem a Tintin. No fundo, toda a ambiência visual (…) consegue a proeza de ser clássica no género, mas de forma atual, sendo, portanto, retro e moderna ao mesmo tempo.

Quanto à edição do livro, parece-me, toda ela, muito bem conseguida. A capa é dura e baça, o papel é brilhante e apresenta boa espessura, enquanto que a encadernação e a impressão são de boa qualidade. Gosto especialmente das capas desta série, que têm bastante personalidade e um estilo muito sóbrio, embora belo.

Concluindo, tudo aquilo que Émile Bravo tem feito por Spirou é verdadeiramente admirável! A maneira como o autor aborda esta icónica personagem, mergulhando profundamente nas suas origens, bem como nas célebres personagens que orbitam à volta do paquete de hotel mais famoso do mundo, é verdadeiramente única, bela e uma proposta irrecusável para qualquer amante de banda desenhada europeia. Imprescindível!


NOTA FINAL (1/10):
9.6



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



-/-


Ficha técnica
Spirou - A Esperança Nunca Morre... - Primeira Parte
Autor: Émile Bravo
Editora: ASA
Páginas: 88, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 240 x 320 mm
Lançamento: Novembro de 2022

Sem comentários:

Enviar um comentário