quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Análise: Caravaggio I e II



Caravaggio I e II, de Milo Manara 

Milo Manara é sobejamente conhecido pela sua obra, de cariz erótico, que tanto marcou milhões de leitores em todo o mundo. Mas nestes dois álbuns dedicados ao pintor renascentista Caravaggio, Manara está mais preocupado em contar-nos a história do pintor, cobrindo os principais acontecimentos da sua vida e dando-lhes cor com algum romance ficcional à mistura, do que, propriamente, em dar-nos episódios eróticos. Não obstante, e mesmo não sendo o principal destaque da obra, as lindas mulheres de Manara continuam a habitar estes livros, embelezando-o com a sua presença. 

O destaque da obra é todo ele atribuído a Michelangelo Merisi da Caravaggio, um pintor que poderia ser comparado a um rockstar, dado o estilo de vida que levou. Muitas festas, muito álcool, muitas mulheres, muitas provocações e muita luta. De facto, o nome do primeiro tomo O Pincel e a Espada não poderia ser mais bem escolhido. Se é verdade que Caravaggio foi um dos mais importantes pintores da história da arte, com um estilo que rompeu alguns padrões e técnicas da época, com particular destaque na produção de retratos e na utilização inteligente da luz; também é verdade que o pintor utilizava com mestria a sua espada, sempre que alguma situação o invocava. Muito irritável e um autêntico rufia, o pintor não resistia a qualquer provocação, por pequena que fosse, e envolvia-se em brigas e conflitos muito facilmente. Estes dois condimentos, atribuem automaticamente um interesse grande a esta obra de Manara. É que os livros não são apenas baseados nos feitos de Caravaggio enquanto pintor, mas também na sua vida, muito interessante e com muitos episódios dignos de uma história de cavaleiros. Ganha assim um equilíbrio muito interessante: não é um livro apenas recomendável para os admiradores da arte, ou da Renascença, ou de Caravaggio. É, igualmente, um livro bastante interessante para os adeptos da banda desenhada histórica, ou de época. Mais taxativamente até, diria que é uma obra recomendável a todos aqueles que apreciam uma história bem construída e bem desenhada. 


No meu 10º ano de escolaridade, lembro-me que tive um professor de história que nos dava as aulas com uma tal eloquência e dedicação, tornando aquilo que poderia ser chato em algo interessante e entusiasmante, que, naturalmente, captava a atenção de todos e fazia-nos estar vidrados nas suas palavras. E, de certa forma, olhando para a sua obra Caravaggio, Milo Manara assume essa função de professor cool. Conta-nos a história de forma cuidada e equilibrada, permitindo-nos um breve olhar às características inerentes ao pintor, à sua arte e às técnicas que aperfeiçoou e inovou mas, para além disso, revela-nos toda uma vida do pintor, bem constituída por encontros e desencontros, por sucessos e insucessos que moldaram a sua existência. Desde as suas origens até aos seus derradeiros momentos. Respeitando os pontos chave, embora adornando-os com um pouco de ficção que - qual Big Fish, de Tim Burton - torna qualquer história mais cativante. Se Manara é muito conhecido pelas suas ilustrações, devo dizer que onde esta obra me surpreendeu mais foi, curiosamente, na excelente construção do argumento. Com a dose certa de tudo aquilo que faz um bom argumento. 

No primeiro livro, tomamos conhecimento de um jovem Caravaggio que chega a Roma com o intuito de se tornar o maior pintor de Itália. Mas os primeiros momentos não são fáceis e acaba por ser com a ajuda de amigos, que vai fazendo pelo caminho, que começa a estabelecer contactos pertinentes. Rapidamente todos ficam admirados pelos seus talentos de pintor mas, ao mesmo tempo, também faz inimigos com muita facilidade devido a ser uma pessoa bastante conflituosa. E é essa natureza conflituosa que o leva a praticar um acto irrevogável que fará com que abandone a cidade de Roma, no final do primeiro tomo. 


No segundo livro, O Indulto, continuamos a acompanhar as suas aventuras, em Nápoles, em Malta e Sicília. Caravaggio mantém-se com a capacidade de impressionar tudo e todos, com os seus dotes de artista, mas também continua a colecionar inimigos que, uma vez mais, o levarão a insucessos e desgraças. Com a sua veia de artista inovador, choca muita gente por utilizar mendigos e prostitutas nas suas criações de arte sacra. Ao longo do seu caminho, vamos conhecendo personagens – algumas delas, históricas – que estão muito bem construídas e desenvolvidas por Manara. 

Algo muito bem conseguido – e, possivelmente, de extremo interesse para os admiradores de Caravaggio – é que, ao longo de ambos os livros, vários dos quadros mais conhecidos e marcantes do pintor renascentista vão sendo introduzidos na narrativa, de forma a que possamos conhecer algumas das condições e experimentações com que as referidas obras foram produzidas. E isso está extremamente bem feito, aumentando o cariz didático da obra embora, fazendo-o, tal como o meu professor de história do 10º ano, de forma subtil. Estamos a aprender sem parecer que nos estejam a pedir para aprender. O melhor dos dois mundos, portanto. 


Quanto à arte ilustrativa, temos um livro maravilhosamente ilustrado pelo mestre Manara. Não será uma surpresa para ninguém, tendo em conta a qualidade do autor enquanto ilustrador mas, neste livro, seja pela excelente utilização das cores (para as quais Milo Manara contou com a ajuda e colaboração da sua filha, Simona Manara); seja pelos desenhos das personagens, cuidadosamente ilustradas com elegância; seja pelos locais, magnificamente bem ilustrados; esta é uma obra que carece de defeitos na ilustração. É praticamente perfeita. Não há – ou haveria – muito espaço para melhorá-la. 

As várias grandes vinhetas, que ocupam um terço da página, e que geralmente são utilizadas para nos apresentarem um novo local para onde Caravaggio rumou, merecem destaque pois são de uma beleza singular, parecendo, elas próprias, impressionantes frescos. 

E claro, ainda existem as mulheres que abundam na história. Fiel ao seu traço, Manara continua a criar mulheres com que os leitores sonham, dada a beleza, praticamente inatingível, que elas possuem. Será que Manara não consegue desenhar mulheres feias? Todas as que aparecem nesta história estão carregadas de erotismo e beleza que são a cereja no topo do bolo desta obra. 


Se há algo que me entristeceu nesta brilhante obra é que, quando cheguei ao final do segundo livro, a viagem histórica me pareceu rápida demais. Talvez em vez de ser um álbum duplo, pudesse ser um álbum triplo - ou quadruplo - , para que esta viagem não terminasse tão depressa? Estão a ver aquele filme magnífico que acaba depressa demais? E que apetece repetir? Ou que nos leva a desejar que demorasse mais tempo? É assim este Caravaggio, da Manara! São pouco mais de 100 páginas mas, com a qualidade multidisciplinar que aqui existe, bem podiam ser 200 ou 300 páginas. Mas, lá está, isto sou eu a divagar com uma crítica ínfima. O que nos é dado, está muito bem conseguido e é isso que importa. Podia ser mais comprido mas também não é curto. São dois livros, afinal. 

Este foi o primeiro livro que a editora Arte de Autor lançou em Portugal. Com uma edição de qualidade para uma obra tão boa, diria que a editora portuguesa não poderia ter entrado melhor no mercado da banda desenhada. A qualidade é, aliás, palavra de ordem desta editora, quer na escolha das obras, quer na edição dos seus livros. Não estranha por isso que, rapidamente, tenha conquistado o seu lugar como uma das melhores editoras do nosso país. 

Concluindo, não há muito mais a dizer sobre esta obra obrigatória para qualquer (“bom”) fã da 9ª arte. Os desenhos, as cores, os locais, os ambientes, as mulheres, os trajes, as personagens, as expressões, o argumento, a figura interessantíssima que é o pintor Caravaggio… enfim, tudo o que este livro nos dá, é de qualidade superior. Uma verdadeira obra de arte. 


NOTA FINAL (1/10):
9.4


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



Fichas técnicas 
Caravaggio- Primeira Parte: O Pincel e a Espada 
Autor: Milo Manara 
Editora: Arte de Autor 
Páginas: 64, a cores 
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Outubro de 2015 


Caravaggio – Segunda Parte: O Indulto 
Autor: Milo Manara 
Editora: Arte de Autor 
Páginas: 56, a cores 
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Janeiro de 2019

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